De repente, ela começou a se interessar pelos passarinhos que via nas árvores, em cima do muro e pousados nos fios telefônicos. Quando saíam os dois, marido e mulher, de braço, ela estacava de repente:
— Ah, que amor!
E ele:
— O quê?
Apontava:
— Aquela cambaxirra.
Às vezes, não era cambaxirra; era pardal ou coisa que o valha. Outras vezes, Lúcia não via, mas ouvia um bem-te-vi. Começava a procurar. E se, por acaso, descobria o pássaro, puxava o marido pela manga do paletó e fazia questão fechada que ele olhasse também:
— Ali, meu filho, ali!
— Onde?
— Em cima daquela árvore, assim, assim.
Malvino era míope e, além de ser míope, tinha um prosaico e irremediável desinteresse pelos pássaros, sem exceção de cor, feitio e nome. Para fazer a vontade da mulher, acabava admitindo:
— Agora estou vendo.
Ela, inflamada, continuava no mesmo lugar, interessadíssima, vendo o bichinho pulando de galho em galho. De repente, o bem-te-vi batia as asas, desaparecia, e Lúcia, ainda excitada, tinha pena de ir embora, na secreta esperança de que o pássaro voltasse. E, um dia, depois do jantar, mexendo o café, fez a comunicação:
— Sabe de uma coisa, meu filho?
— Que é?
— Vou comprar uma gaiola amanhã.
Malvino achou aquilo sem pé nem cabeça; e fez o natural espanto:
— Gaiola, sem passarinho?
A própria Lúcia, por um momento, ficou meio sem jeito, como que percebendo o absurdo da própria idéia. Afinal, explicou:
— O passarinho se arranja!
O CANÁRIO
Malvino não ligou muito. Estava em vésperas de um clássico do futebol carioca e ele não pensava senão no jogo que se aproximava. Botafogo fanático, esfregava as mãos, antegozando as alternativas do match:
— Vai ser uma barbada! Vamos papar o Flamengo direitinho!
E fazia o gesto respectivo, querendo significar que iam fazer a barba e o bigode do Flamengo. De noite, sonhava com os gols do Botafogo; uma vez por outra amargava pesadelos medonhos, no decorrer dos quais o juiz marcava pênaltis contra seu time. Ao acordar, batia na madeira:
— Isola!
Ora, um torcedor passional não tem discernimento para observar e interpretar umas tantas modificações da vida conjugal. Por exemplo: a mulher trouxera da casa dos pais uma gata, por quem nutria verdadeira paixão. Chamava-se Bonifácia, não sei por que cargas-d’água, e era o ai-jesus de Lúcia. Ela chegava ao exagero de querer dormir com o bicho. E, no princípio, Malvino tivera que achar ruim e fazer prevalecer sua autoridade de marido:
— Ah, não, tem paciência. Esse bicho não dorme na cama, não, que esperança!
E Lúcia:
— Que mal há, meu bem? Sempre dormiu comigo!
— Dormiu, enquanto você foi solteira! Agora a coisa mudou de figura! E tinha graça!
Pois bem. Passou-se o tempo, até que sobreveio, em Lúcia, a mania súbita, intempestiva e sem precedente, pelos pássaros. Malvino, se não andasse tão absorvido pelo campeonato, poderia, perfeitamente, estranhar e perguntar: “Que negócio é esse? Você nunca, na sua vida, se interessou por passarinho!”.
Mas achou, talvez, que aquilo era uma mania passageira; e não viu que Lúcia já não ligava para Bonifácia. Há quinze dias, com efeito que ela não levava, em mão, o pires de leite para a gata. Esta miava, de vez em quando, numa saudade justificada do antigo afeto e da antiga assistência.
Um dia, Malvino chegou do emprego e deu com a mulher na cozinha, muito entretida com uma gaiola. Ele caiu das nuvens:
— Que é isso?
E ela, radiante:
— Você não está vendo? A gaiola, meu filho!
Sim, comprara a gaiola, alpiste, o diabo. De martelo em punho, bateu um prego na parede. E, trepando num banquinho, pôs lá a gaiola. Então, Malvino fez o único comentário que a situação comportava:
— Você é maluca, é? Onde já se viu! Uma gaiola com alpiste e sem passarinho? Mulher é um bicho engraçado.
Lúcia insistiu em que o passarinho se arranjava e o assunto passou, porque era hora da resenha esportiva e Malvino ligou o rádio. No dia seguinte, encontrou Lúcia, na cozinha, em cima do banquinho, a cara quase dentro da gaiola, no interior da qual estava instaladíssimo um canário de papo de ouro. O espanto de Malvino não teve limites.
— Onde é que você arranjou esse bicho?
Ela, dependurada, ignorou-o.
Puxou outro banco, trepou e, por alguns momentos, ficou também entretido, namorando o canário. A mulher, para excitar o bichinho, assoviava. O canário, porém, conservava-se num mutismo intransigente. Malvino perguntou:
— Não canta?
— Canta, sim. Canta até muito.
E começou uma nova fase na vida do casal. De manhã, o pássaro inaugurava o dia com verdadeiras árias. De fato, cantava muito, cantava talvez demais. Lúcia, na obsessão do canário, acordava mais cedo, vinha vê-lo. Mudava a água, renovava o alpiste e trazia a gaiola que era um brinco. Alta madrugada, acordava e vinha espiar. Seu medo constante era de que a gata pudesse derrubar a gaiola e devorar o bichinho.
Certificava-se de que o canário estava intacto e, mais tranqüila, voltava para o quarto. O pior era quando o passarinho, por um motivo ou outro, emburrava, deixava de cantar e se metia num canto, triste, como se estivesse doente. O pânico de Lúcia era uma coisa de irritar pelo exagero:
— Ele tem alguma coisa! Ah, tem, sim!
— Tem o quê, mulher! Tem coisa nenhuma! Que mania!
No fim, já Malvino fazia blagues amargas:
— Minha mulher não me liga mais! Dá muito mais importância ao passarinho!
Não deixava de ter sua razão, porque o canário era a paixão, a mania, a doença da mulher. Não tinha outro assunto e já não queria sair, não ia mais ao cinema, com medo que, na sua ausência, a Bonifácia papasse o canário. Por conta dessa possibilidade vaga, enfurecia-se:
— Ah, eu matava essa gata!
A REVELAÇÃO
Até então, não ocorrera a Malvino interessar-se pela procedência do passarinho. De fato, que maldade pode haver na aquisição de uma avezinha? E existem, na cidade, casas que negociam com aves de todos os gêneros. Há também os vendedores a domicílio. Um dia, porém, apareceu em casa de Malvino uma vizinha, uma autêntica jararaca. Era uma senhora geralmente mal-quista e temida, em função de sua maledicência. Via maldade em tudo e dissimulava o seu veneno por detrás de uns modos melífluos, que irritavam. Nem Malvino, nem Lúcia gostavam dela, mas a respeitavam. D. Lourdes conversou sobre vários casos de infidelidade. De repente, disse, com o ar mais inocente do mundo:
— Dona Lúcia, sabe quem tinha um canário igualzinho ao seu? O doutor Linhares! Ah, ele também é louco por tudo que é passarinho! Tem um viveiro que é uma maravilha!
Lúcia não fez comentário nenhum. E, depois, d. Lourdes saiu, muito amável.
Ainda disse, no portão: “Apareça”. Já era tarde e o casal estava com sono. No quarto, antes de apagar a luz e num bocejo, Malvino perguntava:
— Eu conheço esse doutor Linhares? Conheço?
Ficou sabendo que ele morava no fim da rua e que, realmente, gostava muito de passarinho. No domingo seguinte, o Botafogo perdeu e Malvino, ao voltar do jogo, num mau humor execrando, viu uma senhora cumprimentar um cavalheiro; e dizia a senhora: “Como vai, doutor Linhares?”.
Malvino olhou e constatou que era, insofismavelmente, um belo tipo de homem. Imediatamente houve nele uma associação de idéias, pois lembrou-se da alusão que d. Lourdes fizera ao passarinho do dr. Linhares. Já estava furioso com a derrota e semelhante estado psicológico facilitou uma meditação sobre o canário, a mulher, d. Lourdes e o bonitão.
Entrou em casa e foi encontrar a mulher, trepada no banquinho, assoviando para o pássaro. Não disse nada ou, por outra, rosnou apenas:
— Esse passarinho já está me enchendo!
O INOCENTE
Até que, quinze dias mais tarde, recebeu no escritório uma carta sem assinatura: “O dr. Linhares está com tudo e não está prosa”. Ele virou, revirou o papel; leu aquilo muitas vezes. Ao sair do emprego mudou de itinerário e passou pela casa do dr. Linhares. Olhou o viveiro de pássaros. E tomou sua decisão.
Entrou em casa sem beijar a mulher. Foi à cozinha, enfiou a mão na gaiola e trouxe o pássaro vivo. A mulher, atônita, não esboçou um gesto, nem disse uma palavra. E ele, também em silêncio, fez apenas isto: torceu e arrancou o bico do canário. Então a mulher teve um verdadeiro ataque.
Gritava, como uma possessa, para que todos os vizinhos ouvissem:
— Pois é verdade, ouviu? É verdade, sim! Eu gosto é do Linhares!
Ele, então, saiu de casa. Durante muitas horas andou pelas ruas. De repente, sentiu uma coisa na mão: era, ainda, o passarinho sem bico.
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Nenhum comentário:
Postar um comentário