Gol de Didi contra o Peru. Sua primeira "folha-seca" |
A bola, chutada quase da intermediária, subiu demais, passando por cima da barreira formada a uma distância de 10 metros. Se continuasse nessa trajetória, iria fatalmente para fora do campo. De repente, porém, a bola fez uma curva no ar e pareceu perder força, surpreendendo o goleiro, que nem sequer teve tempo de corrigir seus cálculos e saltar antes que ela caísse suavemente dentro de suas redes. O gol, aos 27 minutos do segundo tempo no jogo com o Peru, classificou o Brasil para a disputa da Copa do Mundo de 1958, na Suécia. O resto da história todo mundo conhece: Brasil, campeão mundial de futebol revelando ao mundo um meia-esquerda apelidado Pelé.
Mas o gol que levou o Brasil à Suécia nasceu dos pés de um meia-direita. O goleiro peruano foi traído pela folha-seca — a grande especialidade de Valdir Pereira dos Santos, do Botafogo do Rio de Janeiro, conhecido como Didi. É provável que ele não soubesse disso, mas dois fenômenos aerodinâmicos são responsáveis por aquele e dezenas de outros gols parecidos que marcou: a força ascensional, a mesma que.ajuda os aviões a voar, e o chamado efeito Magnus, de onde se originou a expressão tiro com efeito, para designar os chutes enviesados que fazem o desespero dos goleiros.
Atuando sobre um avião em vôo, a força ascensional se manifesta quando o ar que passa ao redor do aparelho alcança uma velocidade maior na parte superior das asas. Isso acontece justamente por causa da forma especial do perfil das asas nos aviões. Segundo uma lei formulada pelo físico e matemático suíço Daniel Bernouilli, no século XVIII, a pressão sobre um gás ou uma superfície será menor quanto maior a velocidade do fluido. Por isso, a pressão na parte superior da asa é menor que na parte inferior. Essa diferença de pressão gera uma força que fornece ao avião seu empuxo aerodinâmico. A força ascensional aerodinâmica pode aparecer também aliada ao efeito Magnus no vôo de uma bola — quando, além de subir, ela gira ao redor de seu próprio eixo. Os jogadores de futebol costumam dizer então que a bola está “envenenada”.
Ao girar sobre seu próprio eixo, a superfície da bola sofre o atrito do ar. Isso influi na velocidade com que o ar passa ao seu redor: na parte superior da bola, o ar é mais rápido; na inferior, mais lento. Devido a essa diferença de velocidade — assim como no caso das asas do avião —, ocorre uma diferença de pressão entre a parte de cima e a de baixo; em conseqüência, chutada embaixo, a bola sobe, numa trajetória também determinada pela força de gravidade e a resistência do ar.
Já a intensidade do efeito Magnus e sua influência na trajetória da bola dependem de vários fatores. A superfície áspera da bola e a grande velocidade do giro sobre o próprio eixo, em relação à velocidade de vôo, aumentam o efeito. Já a influência na trajetória aparece principalmente nas bolas mais leves. O efeito Magnus foi observado pela primeira vez em 1852 pelo físico alemão Gustav Magnus — daí o nome —, a pedido da Comissão de Provas da Real Artilharia Prussiana. Pouco a pouco, essas observações começaram a ser aplicadas em vários campos da ciência.
Mas não apenas os cientistas recorreram às descobertas de Gustav Magnus. Desde muito cedo, na história moderna do futebol, também os jogadores aprenderam na prática a chutar com efeito. Os princípios são simples: se a bola é chutada na parte de cima, tende a sofrer uma queda mais acentuada; se o chute é aplicado na parte de baixo, a bola volta para trás — um recurso muito usado na jogada conhecida como “bicicleta”, que o atacante brasileiro Leônidas da Silva celebrizou, na década de 30.
Bater na bola lateralmente faz com que, em função do giro sobre seu próprio eixo — para a direita ou para a esquerda —, ela se desvie da trajetória normal. Chutando corretamente a bola — na parte de cima ou de baixo, na lateral direita ou esquerda — é possível fazê-la descrever curvas numa trajetória aparentemente imprevisível. Os jogadores mais habilidosos até conseguem marcar gols em cobrança de escanteio, quando a bola parte da mesma linha onde estão fincadas as traves. E o gol olímpico, assim chamado por ter sido obtido pela primeira vez pela Seleção do Uruguai nos Jogos Olímpicos de 1924.
No Brasil, quem não se lembra das cobranças de falta de Nelinho, no Cruzeiro de Belo Horizonte ou na seleção, há seis anos? “Ele foi o mais impressionante cobrador de faltas que já conheci”, lembra o cronista esportivo Vital Bataglia. “Alguns, como Pepe, do Santos, ou Miranda, do Corinthians, até chutavam mais forte; outros, como Ailton Lira, do Santos, e Mário Sérgio, do Grêmio de Porto Alegre e depois do São Paulo, eram virtuoses do efeito. Mas nenhum deles, como Nelinho, combinava perfeitamente as duas coisas a ponto de dar a impressão de que a bola mudava de rumo três vezes no ar.”
Para contrabalançar a vantagem que os chutes de Nelinho davam ao time do Cruzeiro, seu arquiinimigo no futebol mineiro, o Atlético, contava com o ponta-esquerda Éder, também ele um artista na cobrança de faltas, com seus chutes fortes e cheios de efeito. Éder, Nelinho e o flamenguista Zico substituíram, na Seleção Brasileira, outros especialistas na arte de envenenar a bola: Gérson e Rivelino, estrelas da seleção que conquistou o tricampeonato mundial em 1970.
A maior dificuldade nesse tipo de chute está em bater na bola com força suficiente para obter uma mudança significativa em sua rota normal. Uma bola oficial de futebol tem um peso relativamente alto — entre 453 e 534 gramas — e não é fácil fazê-la descrever uma curva no ar.
Quem já chutou uma bola de praia sabe como ela descreve as mais estranhas curvas. Isso acontece porque, sendo muito leve, lhe é muito difícil vencer a resistência do ar. Ao ter o movimento de rotação sobre seu próprio eixo interrompido pelo ar, ela muda bruscamente de direção. Alguns jogadores têm um domínio tão grande dos chutes de efeito que não o utilizam apenas na cobrança de faltas, mas também para lançamentos de longa distância aos companheiros.
O mestre de todos eles, Didi, aprendeu a arte com outro gênio em bolas envenenadas: Jair Rosa Pinto, Mestre Jajá, como era chamado, não chegava a impressionar os adversários. Mas de seus pés pequenos, calçados com chuteiras número 37, saíam bolas que ele colocava onde desejava, depois de fazê-las descrever graciosas curvas no ar. Observando Jair Rosa Pinto, Didi desenvolveu sua folha-seca.
Embora teoricamente não tenha segredo para os profissionais do futebol — que o chamam de “três dedos”, pela forma com que o pé bate na bola —, o chute de Didi ainda não foi imitado. Elegante, boêmio e sem paciência para as longas sessões de treinamentos físicos — “no futebol, quem deve correr é a bola, não o jogador”, dizia —, Didi batia na bola com impulso suficiente para fazê-la chegar até perto do gol adversário, para então perder força, descrever uma curva e cair suavemente, como uma folha seca levada pelo vento.
Fonte: http://rogsil.wordpress.com.
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