- Dito! – perguntou ele a um dos crioulinhos de seus doze anos – ocê sabe porque é que os home e as muié não tem a mesma cor?
- Nha- não.
- Puis eu vô contá; botem bem o sentido...
No escuro, deitado na rede, descanço, a ver as sombras bailando nas paredes, ao labaredear do fogo aos estalos, escutando a "história".
- Puis é. Nosso Sinhô, despois de criá tudas as coisa, garrô num pelote de barro e garrô damninhá, por não ter o que fazê. Damninhô, damninhô, e feis um home chamado Adão; deu um assopro e ele virô gente.
Despois Adão garrô a ficar esquisito: hora tava triste, ora tava assanhado, cantadô divirtido e contente. Deus pensô: "Tudas as coisa tem muié... Chamô Adão:
- Venha aqui!
Grudô e rancô u’a costela dele e feis Eva p’ra casá co’ele. Ante de Adão e Eva já tinha gente, mais não erum fios de Deus, porque eles não forum assoprado co Esprito Santo e quem soprô eles foi o Cuzarruim – e é purisso que hai gente rúim na terra; são os tar que não recebero o Esprito-Bão. – Mais isso ocês num intende.
Adão casô cum Eva e nascero os fio e crescero e acharo muié e casaro e o mundo umentô in quistan de pocos anno. Moravum tudo no mesmo sítio, um lugá como num hai de havê otro iguá; só no céo. O sítio chamava Paraízo. Naquele tempo tudos os home e muié erum preto...
Neste ponto Nhô Thomé descreveu a vida de então. Adão, depois do casamento, perdeu a alegria: tornou-se ajuizado, pois entendia que ser alegre e brincalhão como em solteiro não era próprio de homem casado... É um descrédito ser divertido e alegre.
A vida era fácil: frutas por toda a parte sazonavam o ano inteiro, ora esta, ora aquela, sem ser preciso plantar e tudo era "reiuno", não pertencendo a ninguém e a todos pertencendo.
- Ocês num vê que ninguém prantô fruitêra no mato? E ótras fruita? Ponhema, guabiroba, pitanga, jaracatiá, arixicú, vapacary, amora, cambucy, joá, jovéva, cabeça-de-negro, castanha-de-ioçá, figo-manso, caju, banana, coquinho...
- Mandioca tamém é fruita ? – interroga um dos pequenos.
- É... – responde bonachão e sossegado o velho.
- I batata-doce? – perguntou outro.
- Tamêm...
- I batata-roxa?
- Tamem... tamêm... Mais iscuitem!...
Despois o Cuzarruim botô veneno nu’a proção de culidade de fruita, p’ra judiá de nóis; mas Deus, que é muito bão, deferençô u’a das ôtra e criô os passarinho p’ra insiná nóis a quar que não fais mar. O Cuzarruim intãoce inxeu a cabeça de uns home e de u’as muiá, insinô p’re’eles os venenoso e eles viraro fiticêro, esses praga que custumum a botá as coisa-feita nos ôtro.
Eu, na rede, espero ansioso a explicação sobre as diversidades de cores nos homens, mas Nhô Thomé, como todos os contadores de histórias para crianças, parece "não ter fim".
- Mais, cumo ia dizeno, Nosso Sinhô garrô a repará: puis sa as fror, as arve, os alimar, os passarinho, a terra, o céo, tudo tinha cor deferente um dos ôtro, mórde o quê que os home e as muié só havéra de sê preto, tudo preto, sem graça, iguá, pareio, que inté injuava a vista?
Intãoce Deus mandô pubricá p’ro mundo intero, que era o Sítio, que quem fosse se lavá nu’a lagoa, ficava branco. Aquilo foi um corre-corre que Deus nos acuda!
Animou-se o pé-do-fogo! Curiosos os pretos arregalam os olhos e os mulatinhos ficam de "olhos compridos" no velho.
- Os mais ligêro, mais vivo, mais ladino, avuaro p’ra lá. Um bando de homes e muié, na correria, da desparada, p’ra chegá premêro, machucava e matava os que ascançava:
- Os premêro chegado ficaro arvo – são os alamão.
- Os seguinte acharo aua meio sujo – são os branco.
- Os ôtro acharo aua turva – são os moreno.
- Ôtros acharo aua escura, a lagoa tava secano – são os triguêro.
- Ôtros acharo um fiapico d’aua vermeia misturada cum táuá – são os cabocro.
- E os turco? – interrompeu o Dito.
- Isso mêmo... Isso... Eles garraro a brigá e gritá tudo no mermo tempo e é purisso que eles faum tudo trapaiado.
Não me seguro... Solto uma gargalhada gostosa!
- Uéi! Pensei que mecê tava drumino... Tô contano aqui u’as patacuada p’ros crioulinho...
- Continue, Nhô Thomé: estou gostando.
- Intãoce os turco sujaro demais o restico d’aua e levantô um tijuco mais escuro e a aua garrô minguá tanto, que os ôtro que chegaro naquele mingau, sahiro mulato, cumo ocês tão sahino.
- E os ôtro?
- Os ôtro, os priguiçoso, os bobo, os durminhoco que vivia cuchilano no pé-do-fogo e no sór e arguns que num tivero jeito de chegá mórde os da frente, esses quano chegaro acharo sú um tiquinho de umidade, que mar deu p’ra moiarem as sola dos pé e as parma da mão... Arreparem nas mão de Tia Pulicena e de suas mãe...
E os pequenos, de boca aberta, assustados, exclamam uns em seguida aos outros, olhando para as mãos de Tia Polycena que, bondosa e sorridente, as mostra.
- É meeeeemo!!!
- Os que ficaro preto num desanimaro e é purisso que preto num póde vê biquinha d’aua nem tornera, nem reberão, que não vá ligêro lavá as mão, a cara, o pescoço e os pé, que dão sempre na vista.
Depois, Nhô Thomé, chegando o "isqueiro" ao cigarro, tosse e termina, malicioso:
- Ocêis sabe mórde o que que ocês tão sahino tudo mulatinho? É que Chica, Zabé e Chistina custumum lavá rôpa lá no reberão craco do Manéco Portuguêis...
P’ra mim aquela aua é virtuosa...
- Aá... Maria credo! Sinhô tem cada lembrança! – bradou Tia Polycena, rindo, enquanto a Chica, a Zabé e a Christina correm para a cozinha. E, daqui da rede, depois de esplêndidas gargalhadas, ouço-as comentando:
- Sinhô tem cada uma! O moço tá lá na rede que num pode mais de tanto sirri...
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por Cornélio Pires
Fonte: Jangada Brasil - (Pires, Cornélio. Conversas ao pé do fogo).
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