Era um mendigo seresteiro, um misto de coitado e boêmio, que bebeu um pouco mais e ficou alegre. Ora, a alegria de um mendigo resume-se num canto romântico misturado aos palavrões de revolta, único lenitivo para suas amarguras.
Os mendigos, em geral, não dizem palavrão, porque vivem da caridade pública. Mas este, de Salvador, Cidade de São Salvador, Bahia, tinha bebido umas e outras, talvez com outros humildes como ele, no Cais dos Saveiros, talvez numa tendinha da beira da praia. Isto não ficou esclarecido.
Sabia-se apenas que era um mendigo que — de repente — virou seresteiro e saiu cantando pelas ruas de Salvador, subindo e descendo suas ladeiras, momentaneamente alegre:
— "A Deusa / da minha rua / tem uns olhos onde a Lua / costuma se embriagar" — cantava ele.
Depois parava, meditava sobre o que cantara, sorria e dizia o seu sonoro e honesto palavrão: — Quem costuma se embriagar sou eu, ora... — e arrematava com o palavrão. E lá ia cantando:
— "Nos seus olhos eu suponho / que o sol / num doirado sonho / vai claridade buscar".
Cantando, o mendigo chegou a uma praça e parou encantado em frente a uma casa. Era uma casa muito grande, parecia um palácio e todo bêbado é um rei. Ele deve ter imaginado uma seresta para sua rainha e cantou:
— "Na rua / uma poça d'água / espelho da minha mágoa / transporta o céu para o chão".
Outra vez sorriu e outra vez praguejou seus palavrões. Foi então que um homem, vivendo ali seus dias e suas noites, isolado das misérias do mundo, sem mais um resto de temperança, de compreensão, achou que o mendigo estava lhe faltando com o respeito e chamou a polícia.
Pombas! A polícia. Esta mesmo é que não ia compreender nunca o sonho do mendigo-rei. Chegou e tentou agarrá-lo à força.
— Assim não — gritou o intrépido monarca: — Assim não.
Mas o policial insistiu e deu-lhe um tranco. O rei foi magnífico na sua dignidade, esfregando um bofetão certeiro e merecido nas fuças do policial. Um companheiro do esbofeteado sacou da arma e fez fogo. Morreu o rei, morreu o seresteiro, morreu o mendigo.
Caiu desfalecido na calçada, veio-lhe uma estranha impressão e ele morreu:
"Na rua / uma poça d'água / transporta o céu para o chão" — cantara ele ainda há pouco. Mas desta vez não. A poça era de sangue.
Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
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