domingo, 21 de agosto de 2011

Balzac

Patrono do romance no Ocidente, Balzac é também, ao mesmo tempo, um historiador de costumes: sua minúcia documentária coloca-o na posição de precursor do realismo literário. O realismo, embora perpassado de elementos românticos e efeitos melodramáticos, é a característica central de sua obra e tanto os tipos sociais quanto o meio ambiente fornecem à matéria romanesca a dimensão histórica que lhe serve de apoio.

Romancista francês, Honoré de Balzac nasceu em Tours em 20 de maio de 1799. Após estudos no colégio dos oratorianos em Vendôme, decidiu em Paris, por volta de 1818, dedicar-se apenas à literatura, contrariando o desejo da família, que queria vê-lo advogado.

A primeira peça que escreveu, Cromwell  (1820), não chegou a ser encenada. Insistiu porém na escolha e continuou a escrever, preferindo agora a ficção, graças sobretudo ao estímulo de Laure de Berny, uma das muitas mulheres da alta sociedade que ao longo de sua vida prestaram-lhe apoio moral e financeiro.

Nos anos seguintes publicou, sob os pseudônimos de Lord R'Hoone e de Horace de Saint-Aubin, uma série de romances menores, posteriormente agrupados sob o título geral de Romans de jeunesse (Romances da juventude). Tais livros, embora se submetessem à moda dos folhetins e a influências diversas, já revelavam um incipiente talento.

A partir desse início, suas obras iriam suceder-se em velocidade espantosa: num período de vinte anos, Balzac publicou cerca de noventa romances e novelas, trinta contos e cinco peças de teatro. Paralelamente levou vida mundana, freqüentando os salões parisienses, viajando muito e procurando em vão um meio de enriquecer, objetivo que perseguiu pela vida ante o assédio permanente de seus credores.

De 1825 a 1828, sempre na expectativa de enriquecer, Balzac se lançou aos negócios: associou-se a um livreiro, comprou uma tipografia e se fez editor. Em 1829, após uma série de fracassos editoriais que acentuou suas dificuldades financeiras, conheceu enfim o sucesso com o primeiro romance que lançou com seu verdadeiro nome, Le Dernier Chouan (O último chouan), sendo "chouan" o nome dado aos insurrectos da Vendéia e da Bretanha em 1800.

Vislumbrou por essa época uma carreira política, esposando opiniões monarquistas e católicas. Em janeiro de 1833 principiou sua correspondência com a condessa polonesa Éveline Hanska, conhecida como l'Etrangère, que o admirava e com a qual se casaria mais tarde.

O fluxo criador de Balzac pode ser desdobrado em três etapas: a primeira, que se estende até 1829, foi um período de aprendizagem; a segunda, de 1834 a 1842, de consolidação de seu sistema novelístico; e a terceira, de 1842 a 1850, de unificação desse universo literário sob o título geral de La Comédie humaine (A comédia humana), alusivo à Divina comédia de Dante.

O êxito do primeiro romance foi confirmado nos anos que se seguiram por títulos como La Peau de chagrin (1831; A pele de onagro), Le Chef-d'oeuvre inconnu (1832; A obra-prima desconhecida), La Recherche de l'absolu (1832; A busca do absoluto), Eugénie Grandet (1833) e, sobretudo, Le Père Goriot (1834; O velho Goriot), onde começam a reaparecer personagens de livros anteriores, com o fim específico de conferir à obra encadeada o caráter global de espelho da sociedade francesa, em particular parisiense, na primeira metade do século XIX.

O mundo novelístico de Balzac é a primeira expressão coerente das potencialidades oferecidas pela revolução francesa e que então se concretizavam no plano social, econômico, político e individual, principalmente pelas transformações ocorridas na propriedade das terras, o que explica o interesse do romancista pela nova burguesia e pela decadência da aristocracia; o grande papel dos notários em sua obra; e a ausência da classe operária, que não participava desse processo.

O pano de fundo dos enredos são as estruturas e instituições advindas do império napoleônico e da irrupção dominante da burguesia. Paradoxalmente, foi o monarquista e legitimista Balzac quem revelou à Europa e ao mundo ocidental as conseqüências irreversíveis da revolução francesa.

Já nos romances da fase intermediária, que são a base de sua reputação, Balzac mostra obsessão pelos detalhes: seus heróis são seres de carne e osso que comem, bebem e se relacionam sob o domínio de paixões fortes. Deles se fica conhecendo exaustivamente o físico, o vestuário, o prestígio, a fortuna, a posição social e o domicílio.

A criação dos romances obedece a uma progressiva diversificação de situações, de personagens, de destinos humanos. Por suas qualidades, pela amplitude da área social tratada, pela técnica de que se vale o autor para a liberação das forças psicológicas nos personagens que movimenta, é forçoso admitir que, como gênero literário, a história do romance no Ocidente se divide em duas metades: antes e depois de Balzac.

Organização da "Comédia humana". A idéia de agrupar num todo a extensa obra narrativa, sob um só título genérico, levou tempo para ser posta em prática, embora fosse antiga nas cogitações do escritor. A primeira edição da Comédia humana, com o título escolhido por Balzac em 1842, começou a ser publicada, nesse mesmo ano, em 17 volumes.

Em 1845, para a segunda edição, foi adotado o plano, seguido pelas edições mais modernas. Nele, o agrupamento das obras obedece ao seguinte esquema: (1) Estudos de costumes no século XIX: (a) cenas da vida privada; (b) cenas da vida de província; (c) cenas da vida parisiense; (d) cenas da vida política; (e) cenas da vida militar; (f) cenas da vida rural. (2) Estudos filosóficos. (3) Estudos analíticos.

São inúmeras, nesses três grupos em que estão ordenadas, as obras-primas geradas pela fecundidade criadora de Balzac, como, além das já citadas, La Maison du chat qui pelote (1830; A casa do gato que brinca), La Bourse (1832; A bolsa de valores), La Femme de trente ans (1831-1834; A mulher de trinta anos), Illusions perdues (1843; Ilusões perdidas), Les Paysans (1845; Os camponeses).

Através dos vários romances da Comédia humana, conforme o rumo adotado desde Le Père Goriot, os personagens -- mais de dois mil ao todo -- aparecem e reaparecem segundo os vários níveis de suas vidas, num percurso contínuo que cobre todas as áreas sociais. A idéia central é que o dinheiro é o móvel fundamental da vida humana, sobrepondo-se sua busca a quaisquer outros interesses, sejam políticos, religiosos ou familiares.

Induzido pela voga científica da época, Balzac pretendeu aplicar às descrições de pessoas, com seus hábitos e sentimentos, seus ideais e paixões, o mesmo espírito analítico com que os cientistas descreviam os animais e as plantas. Foi o primeiro a reunir num ciclo de romances o estudo da vida social inteira, processo que seria seguido, entre outros, por Zola.

Em 1850, já gravemente enfermo, Balzac se casou com Éveline Hanska, e em 18 de agosto desse mesmo ano faleceu em Paris. A edição definitiva da Comédia humana, que saiu postumamente entre 1869 e 1876, constava de 137 romances, cinqüenta dos quais tinham ficado incompletos.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Balé de mulheres bruxas

Depois de haverem chupado muito sangue de inocentes criancinhas, sem serem molestadas por benzedeiras, armadilhas e outros, esta caterva de mulheres resolveram comemorar a vitória diabólica, com uma dança de balé bruxólico no Morro do rapa no exremo norte da Ilha de Santa Catarina, sobre a batta rubra do ex-anjo Lúcifer.

Afirma a Madame Estória, que as mulheres bruxas possuem uma inteligência excepcional, a qual elas usam sempre para ludibriar o homem de argila humana crua.

Por isto, elas vivem às turras com benzedores, armadilhas e outros, desde os séculos dos séculos.

Madame Est'toria vê,
O sinistro Lucifer
Bispando o lote de bruxas,
Que está dançando balé.

Após haverem chupado
Muito sangue de criança,
Estas bruxas elegantes,
urdiram esta Festança.

O balé que elas usam.
É o balé da bruxaria.
Marcado nas horas mortas,
Quando vem o fim do dia.

Hó! minha Ilha encantadora,
Meu fraco é sempre te amar.
Pois tu és catita bruxinha
Que repousa sobre o mar

Franklin Cascaes

Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com

Balanço bruxólico

"Contou-me a seguinte estória acontecida na Ilha de Santa Catarina - Ilha dos trezentos engenhos de fabricar farinha de mandioca - o Sr. José Silveira residente no Canto da Lagoa da Conceição: que seus antepassados fizeram uma derrubada no Morro da Lagoa prá mode fazerem uma plantação de mandioca e milho.

Aconteceu - continuou o narrador - que na margem da roça derrubaram um grande tanheiro, bem vazado, que ficou caído ao pé de uma grande árvore que tinha em si um cipó enroscado e que de lá do alto das ramagens deixava cair um grande seio em forma de balanço.

Quando começaram a fazer a plantação, sentiram cheiro de fumaça de querosene, que saía de dentro do vazado do tanheiro, e também porque ali faziam a comida, notaram que as panelas amanheciam sujas e as ferramentas atiradas pelo chão, como se alguém dentro da noite lá aparecesse somente para fazer malvadezas.

Desconfiados com a situação, passaram a vigiar o lugar e constataram que dentro da noite a ramagem da árvore que tinha o balanço, era tomado por luzes de várias formas e tamanhos e que se movimentavam para direções diversas.

Encorajados por uma mulher benzedeira muito entendida e poderosa destas coisas dos outros mundos, subiram o morro protegidos com bentinhos, breves, figas, mostarda, arruda, cisco das três marés, água benta, vela benta, folhas de guiné, que são verdadeiras armas contra o poder diabólico destes trasgos dos infernos.

O que encontraram e viram era horripilante para os olhos humanos. As árvores tinham na base formas de pés de vários animais, lamparinas dançavam metamorfoseadas em forma humana; na boca do tanheiro derrubado estava um bicho em forma de morcego; no alto da árvore a canga do carro de boi estava pousada, ao lado de uma lamparina; um pouco abaixo uma coruja com cara de roda de carro de boi enfeitada com um par de antolhos; e no centro de tudo, de toda fantasmogênese uma bruxa se balançava no cipó fantasiada de cabeça de boi com pernas traseiras e mãos dianteiras, também de boi, e sendo a cabeça uma roda de carro de boi.

Todas as pedras que ali viviam estavam metamorfoseadas em atitude de exorcismo.

A coruja que aparece metamorfoseada no meio da árvore, se destaca como um observador cultural, deste tipo de cultura que o Povo antigo conduz em sua bagagem tradicional ..."


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com

A bruxa metamorfoseou o sapato

O Sabinano da Ponta das Canas, tinha uma filhinha embruxada, que até metia dó à própria bruxa que a vinha sacrificando há muitos meses.

Aconselhado por amigos, ele passou a tratar a criança com um benzedor que morava na praia dos Ingleses.

O benzedor chamava-se Sotero das Capivaras e era um famoso curador de doenças dos outros mundos. Mas o tratamento que ele vinha aplicando para a criança do Sabiano não estava a produzir resultados satisfatórios.

O dia marcado para ele voltar a casa do benzedor foi uma sexta-feira.

De manhã bem cedo, o Sabiano levantou-se arrumou o gado no potreiro, tomou cafe, lavou os pés na gamela promode os havia sujado, enxugou-os, e pediu à mulher que lhe apanhasse os sapatos que estavam pendurados nos caibrosdo telhado da varanda.

A mulher dele, a Sotera, foi apanhá-los, mas só encontrou o sapato do pé direito, o outro não estava.

Procuraram em toda a casa, mas cuáli nada, não tava em nenhum lugar.

Pensou consigo: deve ter sido o cumpadre Zé Maratato.

Aquilo anda sempre pricurando coisas mode fazer das suas...

O tempo tá seco e o mihió memo prá mode a gente caminhá é descalço.

Apanhou uma cesta tecida de folhas de tabua, botou um vidro branco dentro e rasgou os pés no caminho, na direção dos rios das Capiras dos Inglêses.

Consultou o doutro curandeiro, apanhou o remédio e mandou-se de volta a caminho de casa.

Já havia caminhado um bom pedaço, quando algo chamou-lhe a atenção.

Olhou na direção da Ilha Mata Fome, e se deparou com um quadro curioso e horrível: uma bruxa passando pelo mar com o sapato dele transformado num barco, com uma vela bem enfunasa quiném lancha baleeira, passeando mui calmamente.

Apavorado com o que vira, retornou a casa do benzedor e narrou-lhe o fato.

O doutro benzedor apanhou um dente de alho com casca e mandou que ele o colocasse na boca e voltasse descançado para casa. Quanto à bruxa, ele a faria perder o estado fadórico, e consequintemente, o encanto, dentro de poucos minutos.

Ele atendeu a ordem do benzedor e calçou os pés no areião do caminho, de volta prá casa.

Quando chegou no terreiro, a Sotera já estava com a notícia bruxólica na pontinha da língua quase escapulindo.

_ "Sabiano, o teu sapato apodreceu nos caibros da varanda, molhado, sujo de areia da praia, e com um furo bem inrriba do bico."

_ Logo vi que aquela ègua ia dar-me prejuizo.

Ela furou o meu sapato prá mode meter o mastro da vela.



Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com

Namorada caolha

No meio da festa, seu amigo fez o convite:

— Vem beber, vem!

Geme:

— Não posso.

E o outro, que era um pau-d’água irremediável:

— Por quê?

Enfiou as duas mãos nos bolsos; e foi dizendo com um humor misturado de melancolia:

— Beber, só se for água de bica e olhe lá! Mas não posso mesmo. Sou um caso sério. Eu me embriago até com água mineral.

Não mentia, era fraquíssimo para bebida. Jeová, porém, insistiu: “Deixa de ser chato! Vamos, sim!”. E fez a proposta: “Tu bebes um copo só, de chope, e pronto!”. Acabou indo. No fundo do quintal, onde foram colocados dois barris com o respectivo gelo, bebeu o primeiro copo.

Começou a tornar-se inconveniente, pois a embriaguez assumia, nele, as formas mais desagradáveis e agressivas. Na altura do décimo copo, Xavier, já fora de si, dá um uivo súbito. Querem agarrá-lo, mas ele se desvencilha num rapelão selvagem. Corre, gritando. Perfura os grupos sucessivos de convidados; pisa nas senhoras; empurra os homens. E, finalmente, na sala de visitas, cai de joelhos aos pés da filha do dono da casa e abraça-se às suas pernas soluçando:

— Casa comigo! Casa comigo! Eu te amo, te amo e te amo!

Foi um escândalo tremendo.

A ESTRÁBICA

Serenado o ambiente, seu Baltazar, que era o pai de Galatéia, chamou-a a um canto, ante a perspectiva nupcial que o incidente comportava. Seu Baltazar quis saber: “Esse rapaz gosta de ti? Gosta?”. A garota estava comovidíssima da cabeça aos pés. Conhecia Xavier vagamente, de cumprimento, e caíra das nuvens como os demais. Com palpitações, falta de ar, admite:

— Parece que gosta, papai. O senhor não viu?

Xavier saiu de casa às carreiras. Foi direto ao emprego de Jeová, chega e desaba na primeira cadeira: — “Estou na maior tragédia da América Latina!”.

Refere-se à confusão criada com a bebedeira de véspera. Jeová quis ser otimista: “Ninguém liga para o que um bêbado diz!”.

Ele protesta:

— Não liga uma pinóia! A Galatéia ligou, ouviu? E agora meu Deus? Como é que eu vou sair dessa encrenca?

Jeová simplificava: “Não há drama, rapaz! Você diz que não, que estava bêbado e pronto!”.

Xavier senta-se de novo, aperta a cabeça entre as mãos, quase chorando:

— O pior você não sabe! O pior é que, desde garotinho, eu tenho uma pena tremenda de mulheres estrábicas. Eu não sou ninguém diante de uma estrábica!

O outro fez espanto: “E daí?”.

Xavier continua:

— Daí o seguinte: eu sei de antemão, sei desde já, que eu não terei coragem de desiludir Galatéia. Ela pensa que eu estou apaixonado. Pois bem. E eu nunca serei capaz de dizer: “Olha, Galatéia, eu não gosto de ti, eu te acho um bucho!”.

Jeová prefere achar graça:

— Isso é carnaval teu! Literatura!

COMPROMETIDO

No dia seguinte, Xavier acorda tardíssimo. Levanta-se e está no banheiro, escovando os dentes, quando aparece a irmã caçula: “Você está namorando a Galatéia?”. Toma um verdadeiro susto:

— Isola!

Toma o seu banho numa depressão medonha. Pouco depois, já pronto, ia saindo quando o telefone o chama. Era Galatéia. Numa atrapalhação mortal, ele gaguejou:

— Você me desculpe, Galatéia, mas é que ontem eu bebi demais...

Do outro lado da linha, a pequena está dizendo, com uma doçura atroz:

— Em absoluto! Desculpar de quê? — E baixa a voz: “Foi bom você ter bebido, só assim eu soube que você gosta de mim!”.

Houve uma pausa dramática. No seu pânico, Xavier emudecia. Podia ter desfeito logo o equívoco. Faltou-lhe, porém, coragem. Balbuciou inteiramente alvar:

— Pois é, pois é.

Mas, quando desligou o telefone, encostou-se à parede, com vontade de chorar. Virou-se para a mãe e as irmãs:

— Estou fritíssimo!

Certo dia, Galatéia recebe um telefonema anônimo. Uma voz feminina dizia-lhe: “Olha aqui, sua caolha: o Xavier não gosta de você coisa nenhuma. Tem pena. Não é amor, é pena, ouviu?”. Galatéia tem um choque tremendo. Xavier vai encontrá-la em lágrimas. Sempre que Galatéia se comovia, seu estrabismo tornava-se mais violento. Interpelou o namorado: “Você gosta de mim ou tem pena?”. Diante daquele pranto de menina feia, Xavier tomou-se de uma dessas penas convulsas e mortais. Jurou por todos os santos: “Eu te amo, meu anjo! Juro que te amo!”. Galatéia, numa histeria, exige: “Jura pela vida de tua mãe!”. E para convencê-la de vez foi além:

— Amanhã eu vou pedir a tua mão. Avisa a teu pai, a tua mãe, percebeste?

TRAGÉDIA

Ficaram noivos. Galatéia era, quase, a mulher mais feliz do mundo. Digo “quase” porque o telefonema anônimo marcara o seu espírito, criara nela o complexo do estrabismo. Por vezes experimentava uma espécie de alucinação e julgava ouvir uma voz feminina: “Caolha! Sua caolha!”. Passou a usar óculos escuros. Foi então que a mãe e irmãs de Xavier tiveram a idéia: “Por que você não procura um oculista e não opera? Quem sabe?”.

A possibilidade de sanar o defeito deslumbrou-a. Pedindo segredo à sogra e às cunhadas, consultou um oculista. Este foi taxativo: “Tem remédio, sim. É até uma operação simples”. Galatéia volta para casa, desvairada. Ela desejaria, porém, poder fazer uma surpresa ao noivo. E, súbito, ocorre uma coincidência: por determinação da firma onde trabalhava, Xavier teria de passar um mês em São Paulo antes do casamento. Voltaria na véspera. Galatéia viu ali o dedo da Providência Divina.

Pois bem. Ele partiu um dia, às cinco horas da manhã, de automóvel; e, às dez horas, a pequena foi operada. Passa o tempo.

Xavier, que deveria passar apenas um mês em São Paulo, só pôde regressar, espavorido, na manhã do casamento. E mais: veio do aeroporto diretamente para a pretoria. Tem, então, a surpresa: viu diante de si uma Galatéia não mais estrábica, uma Galatéia de olhos normais. Assombrado, não sabe o que pensar, o que dizer. Súbito, explode: “Não me caso mais, ouviu? Não me caso mais!”.
Pensou-se, a princípio, numa pilhéria de péssimo gosto. Mas ele, fora de si, continua:

— Enquanto você foi caolha, eu tinha pena. Agora só tenho asco! Nojo!

Parecia ter perdido a razão. Desesperada, ela agarra-se ao noivo. Xavier se desprende num repelão feroz:

— Desinfeta!

Quiseram segurá-lo. Mas ele correu, sumiu. Mais tarde, o Jeová, aflito, vai encontrá-lo no café, meio bêbado. Dá-lhe a notícia à queima-roupa: Galatéia suicidara-se. Ele ri, sórdido:

— Ótimo, ótimo! Traz mais um chope, garçom!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Morrer como um cão

A rigor, só teve duas namoradas na vida. A primeira foi Helena, uma morena cheia de corpo, vistosíssíma, que chamava a atenção no meio da rua. E era tão bonita que os homens não respeitavam a presença do Amâncio. Onde quer que os dois aparecessem era um martírio. Assoviavam de todos os lados. Amâncio ficava branco. E Helena fazia, entredentes, o comentário:

— Mas que moleques sem educação!

O rapaz a cutucava:

— Não olha! Não dá confiança!

No fundo, Helena gostava de fazer sucesso, de inspirar assovios. Confidenciava para as amigas: — “Não sei o que é que eu tenho. O fato é que os homens ficam malucos!”. Morreria de tédio, de pena, de nostalgia, no dia em que lhe faltasse admiração masculina. E quem sofria com isso era o pobre Amâncio. Tinha, na ocasião, seus dezoito anos. Mas era pequeno, fraquinho e, além disso, asmático. Com seu tórax de enfermo, de candidato à tísica, não se atrevia a uma atitude contra os fulanos que mexiam com a pequena no meio da rua. Mas a humilhação doía na sua carne e na sua alma. E quando, por fim, Helena o trocou por outro, ele teve um consolo na sua desdita: — já não seria desfeiteado por causa dela.
A segunda namorada foi Lurdinha, que levava sobre a precedente uma vantagem considerável: — era uma pequena de graciosidade discreta, quase imperceptível. Era preciso olhar muito para ela, prestar bastante atenção, para descobrir o seu encanto secreto. Já Amâncio podia sair com a namorada, sem perigo de incidentes desagradáveis.

O CASAMENTO

Foi um namoro rápido. Em coisa de quinze dias, Amâncio levou a pequena para apresentar à família. Sua mãe, d. Flor, olhou Lurdinha de alto a baixo, serviu-lhe cafezinho com biscoitos e, em suma, tratou-a com uma cordialidade controlada, mas satisfatória. Mais tarde, Amâncio perguntava:

— Que tal, mamãe?

A velha, que estava com uma costura no colo, suspirou:

— Serve.

Ele ficou com cara de tacho e meio chocado:

— A senhora não gostou?

— Mais ou menos. — E acabou acrescentando: — “Não fede, nem cheira”.

A grosseria da expressão doeu no rapaz. Teve um desabafo:

— A senhora é um espírito de porco, hein, minha mãe?

Já o irmão de Amâncio, o Nonô, foi, se bem que sintético, mais positivo:

— Bonitinha.

Ora, o moço levava a opinião de Nonô na maior conta. Embora existisse de um para o outro uma diferença de vários anos, o fato é que se queriam como gêmeos e se consultavam para tudo. Sempre que Amâncio arranjava uma pequena, já sabe: pedia a opinião, o conselho, o estímulo do irmão. E vice-versa. Enfim, combinavam de uma maneira impressionante e eram os melhores amigos do mundo. Depois dessa primeira visita, Amâncio quis saber da pequena:

— Que tal meu irmão?

— Simpático.

Ele protestou, quase ofendido:

— Simpático, só? Um sujeito bonito, alinhado, parece artista de cinema!

Lurdinha, espantada com a veemência, ainda brincou:

— Eu não quis ofender. Teu irmão é uma uva, pronto!

Seis meses depois, estavam casados. Por exigência de Amâncio, Nonô, sempre que se encontrava com a cunhada, a beijava na face. Amâncio impunha:

— Faço questão que vocês sejam amicíssimos!

HOMEM BONITO

E, de fato, o que tinha Amâncio de sem graça, como homem, tinha o outro de bonitão. As pequenas viviam assim em cima dele. Umas perguntavam: “Por que você não entra para o teatro? Para o cinema?”. Ele ria e fazia o comentário impatriótico:

— Não acredito em cinema brasileiro.

Quanto a casamento, não queria nem ouvir falar. Batia na madeira: “Isola!”. E, se insistissem, argumentava: “Prefiro a mulher dos outros!”. Mas era mentira. Fugia das mulheres casadas. E, sério, quase triste, dava em definitivo sua opinião:

— Não tiro a mulher de ninguém! Deus me livre!

Depois do casamento do irmão, com efeito, sossegara. Achavam graça: “Que negócio é este? Seu irmão casou e quem ficou sério foi você?”. Fazia blague: “Sempre fui sério!”.

Jantava todos os dias na casa da cunhada. Conversavam muito, ele e ela coincidiam nos gostos e opiniões. Amâncio esfregava as mãos, radiante: “Meu irmão e minha mulher são unha e carne!”. Essa amizade o enternecia. Ficava horas ouvindo a conversa dos dois; e, por vezes, cochilava, enquanto os dois palestravam. Às vezes era o próprio Amâncio quem telefonava do escritório:

— Olha! Hoje eu tenho serão, Ouviste? Vai lá pra casa fazer companhia à minha mulher.

Lá ia o Nonô. O outro chegava à meia-noite ou mais; encontrava os dois ouvindo música, na vitrola. E foi numa dessas noites de serão que, mudando um disco, Lurdinha teve a curiosidade súbita:

— Você nunca deu em cima de mulher casada?

— Nunca.

E ela, colocando o disco, de costas para ele:

— No duro?

— Batata!

Começaram a ouvir a música, que era um bolero, e, então, embalado pelo disco, Nonô ergueu-se, enfiou as duas mãos nos bolsos, foi até a janela; e, voltando, perguntou:

— Sabe qual é a única mulher casada que até agora me impressionou?

Estavam os dois face a face. Ela antecipou-se: “Não precisa dizer, eu sei”.

Ficaram em silêncio algum tempo. Quando chegou a vez de mudar o disco, Lurdinha ergueu-se; de costas para ele, substituindo a agulha na vitrola, disse: — “Você não tira os olhos de mim”. — E fez a pergunta: “Não tem medo que os outros desconfiem?”. Aquela conversa foi, para eles, um tormento delicioso. Nonô pensava: — “É um crime o que eu estou fazendo”.

DESTINO

Quando o inevitável aconteceu, ambos tiveram a mesma explicação: “Foi o destino”. Que remorso havia no fundo daquela felicidade! De vez em quando, Nonô a beijava com uma espécie de ódio: — “Você não tem cara disso!”. Ela achava graça: “Disso o quê?”. Nonô ia especificar: — “Cara de adúltera” — mas o pavor à palavra o emudeceu. Suspirou: — “Nada”. E a naturalidade com que ela ia aos encontros, com que se atirava nos seus braços, o aterrava. Tinha a exclamação:

— Mulher é um caso sério. Mas olha! Amâncio não pode saber nunca!

Foi por essa época que Amâncio, que queria um aumento de ordenado, deu para levar o patrão, o dr. Gustavo. Era um senhor, já de idade, que padecia de dois males: a esposa, que lhe amargurava a existência, e uma dispepsia, que era o inferno de suas refeições. Amâncio telefonava para a mulher: “Vou levar o chefe. Faz uma comida gostosa!”. Outra recomendação era a seguinte: “Trate o homem bem, que eu vou entrar com o pedido de aumento”. O homem apareceu uma vez, duas, três, quatro. Por fim, estava lá todas as noites. Praticamente, o dr. Gustavo separara-se da mulher. No segundo ou terceiro jantar em casa de Amâncio, teve um desabafo irreprimível e gemeu:

— Pois eu, minha senhora, não tenho lar! É a dura realidade!

Lurdinha foi de uma habilidade exemplar; com muita doçura e feminilidade, aproveitou o ensejo:

— Então, por que é que o senhor não vem jantar todos os dias aqui?

Ela fazia, para o patrão do marido, pratos especiais, que não tivessem muita gordura, nem temperos fortes. Vinha lá de dentro, trazendo um prato fundo: — “Essa canjinha o senhor pode comer”. Tantas atenções o envolviam e deslumbravam. No escritório, chamava o Amâncio: — “Seu Amâncio, você tem uma mulher que é um anjo!”. No fim de quinze dias, deu-lhe um aumento. Prometeu-lhe outro para o fim do ano.

O CIUMENTO

Patrão e empregado eram agora íntimos. Dr. Gustavo fazia confidências ao Amâncio: — “Eu tenho um defeito, sou ciumento, tenho ciúmes de tudo!”. Rilhava os dentes ao dizer isso; e foi mais além: — “Te juro que, por ciúmes, sou capaz de dar tiro!”. Impressionado, o Amâncio ia para casa contar para a mulher: “O patrão não é sopa!”. Quem não gostava era o Nonô. Queixava-se amargo e ressentido à pequena: — “Esse patrão do teu marido é uma boa besta”. E, um dia, o Amâncio encontra, na sua mesa do escritório, um envelope. Abre e toma um choque: era uma carta anônima. Leu e releu; e guardou aquilo. Mas as palavras estavam guardadas no seu cérebro: — “Você é um idiota muito grande. Sua mulher tem dois. O Nonô e o Gustavo”. Dois dias depois nova carta: “Abre o olho, seu cretino!”. Vieram ainda uma terceira e quarta cartas, com endereço e horário dos encontros de Lurdinha com Nonô e o patrão. Ele, branco e com o coração disparado, rasgava aqueles papeluchos infames em mil pedacinhos.

Um dia, foi espiar, de dentro de um táxi e pelo vidro, o encontro de Nonô e, no dia seguinte, viu o patrão e a pequena entrando no mesmo edifício. Ele não disse nada, nem soube o que fazer. Passou uns quinze dias com o problema na cabeça. Quando observavam sua tristeza indisfarçada, desculpava-se: “Estou indisposto”. Um dia, porém, saiu animado para o escritório e entrou no gabinete do patrão. Foi direto ao assunto: — “Doutor fulano, eu acho que minha mulher me engana”.

O outro pulou da cadeira: — “Mas como?”. E ele: — “Tenho provas, doutor fulano”. Baixou a voz e concluiu: — “Com o meu próprio irmão”. O patrão estava roxo; fez a pergunta: — “Tem certeza?”. E Amâncio: — “Absoluta!”. Deu detalhes, forneceu hora e endereços. E, por fim, saturado de tanta infâmia, arriou numa cadeira e soluçou como um menino. Em meio do pranto, teve um repelão feroz e inofensivo: “Eu se fosse homem, se tivesse vergonha na cara, matava esse cachorro”. O dr. Gustavo não esboçou um gesto, não disse uma palavra.

Nessa noite, antes de dormir, Amâncio fez um comentário enigmático para a mulher: — “Eu acho que um sujeito que tira a mulher dos outros devia morrer como um cão!”.

No dia seguinte, quando Nonô vai entrando no edifício com Lurdinha pelo braço, ouve um “psiu”. Vira-se instintivamente e vê, então, a poucos metros, o dr. Gustavo. Este empunha um revólver e atira uma vez, duas, três, quatro vezes. Nonô tentou correr, escapar, mas, atingido mortalmente, foi cair adiante. Teve breve agonia, e morreu ali mesmo, de face voltada para o alto do edifício.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Margarida

Durante os meses de gravidez, houve toda sorte de palpites quanto ao sexo da criança. Menino? Menina? A mãe agarrou-se à parteira. Mas esta quis tirar o corpo fora. Tanto insistiram que ela sempre deixou escapar alguma coisa, embora com uma ressalva:

— Não é certo, não. Mas, pelas batidas do coração, deve ser menino.

Suspiro materno:

— Ah, eu queria tanto uma menina!

Protestavam: “Mas que bobagem! O primeiro filho deve ser homem!”. Edgardina era obrigada a explicar: “O negócio é o seguinte: menina faz mais companhia!”. O pai, Amadeu, não tinha preferência: “Tanto faz, tanto faz. Eu topo tudo”. E, no dia do parto, foi até interessante. Amadeu, no corredor, gemia de dor de dente. De repente, abrem a porta, ele se arremessa e recebe o impacto da notícia:

— Menina!

Estacou sem coragem de entrar: as lágrimas corriam grossas e fartas e o rapaz abriu os braços para o teto: “Oh, graças, meu Deus; graças!”. No quarto, cansada de muito sofrer, a mulher pediu: “Beija-me”. Adiante, nuazinha, em cima de uma toalha felpuda, estava a menina, E, de repente, Amadeu tem a exclamação:

— Ué! Minha dor de dente passou!

MARGARIDA

Durante vários dias, parecia bobo, de tanta felicidade. Confidenciava no emprego: “Tem a minha cara!”. De vez em quando, porém, mergulhava em meditação e desabafava: “Estou pensando no dia em que minha filha namorar”. Era enérgico e reacionário: “Não topo namoro de portão, esquina ou cinema; tem que ser dentro de casa”. Os colegas achavam graça:

— Toma jeito!

Finalmente, no terceiro ou quarto dia, bate o telefone. Era Edgardina: “Vem correndo, Amadeu. Tua filha está morrendo!”. Atirou-se, em mangas de camisa; e, como o elevador demorasse, veio mesmo pela escada, como um louco. Quando entrou em casa, era tarde. Nunca se soube ao certo como foi aquilo. A menina, com quatro dias de nascida, teve uma agonia breve, quase imperceptível. Mal se sentiu quando morreu.

Os pais quase enlouqueceram. Edgardina recuperou-se mais depressa. As vizinhas, as parentas se debruçavam em cima de sua dor; usou-se muito o seguinte argumento: “Deus sabe o que faz”. Mas o que realmente a impressionou foi o que lhe disse uma tia, senhora de muita experiência.

— Quem sabe se, mais tarde, ela não ia sofrer muito? Quem sabe?

Em redor, houve o coro das comadres:

— Mulher sofre tanto!

O marido, porém, foi mais difícil de convencer. Queria sofrer, fazia questão de cultivar a própria dor. Depois do enterro, deu a ordem: “Manda todos os ternos para o tintureiro”. E ninguém o dissuadiu do luto fechado. A própria Edgardina sugeriu, a medo: “Mas eu sempre ouvi dizer que não se punha luto para recém-nascido”. Foi categórico:

— Se ninguém põe, eu ponho. Graças a Deus, tenho sentimento!

Ao mesmo tempo, anunciou que queria um novo filho, isto é, uma nova filha. A mulher quis achar que ainda era cedo etc. etc. Amadeu cortou as suas ponderações: “Não, senhora, em absoluto! Se Deus quiser, dentro de nove meses, eu terei outra filha, com o mesmo nome”. Na verdade, o que ele admitia, no seu desespero, é que a próxima filha seria a mesma, renascida.

A TRAGÉDIA

Nove meses depois, nascia um menino. A princípio, Amadeu não quis compreender: “Menino?”. Estava tão certo de que seria menina que experimentou um desgosto medonho. Quase blasfemou: “Não é possível, meu Deus, não pode ser!”. A família, vendo a sua dor obtusa, já admitia a hipótese de uma psicose; houve resmungos: “Ora veja!”.

Começou, então, a luta contra a natureza, contra a fatalidade, talvez contra o demônio. Ano após ano, nascia uma criança naquela casa; e sempre menino. Amadeu encarniçava-se: “Hei de ter uma filha nem que o mundo venha abaixo!”.

Pouco a pouco, tomava-se de surdo rancor contra Edgardina, como se a mulher fosse responsável pelo sexo dos filhos. Ele esbravejava na presença das visitas: “Se a primeira foi mulher, por que os outros não são, meu Deus?”. A mãe, em voz baixa, confidenciava a queixa para as conhecidas:

— Gozado! E eu é que pago o pato!

Ela, com efeito, enchia-se de horror da maternidade. Sempre que tinha um filho, fazia, na hora, a pergunta: “Menino ou menina?”. A resposta não variava: “Menino”. Só faltava morrer. Finalmente, o sétimo filho foi uma menina. Assim que constatou o sexo da criança, Amadeu foi com um cortejo de vizinhos para o boteco da esquina. Com o lábio trêmulo, o olhar de alucinado, berrou:

— Pode beber todo mundo, que eu pago!

Tomou um pileque tremendo e comemorativo.

A NOVA MARGARIDA

Foi um descanso para todo mundo e, sobretudo, para Edgardina. Avisou em alto e bom som: “Esse negócio de filho, já sabe. Stop. Nunca mais, que eu não sou máquina de filhos, ora essa!”. Quanto ao Amadeu, era outro homem. Realizara o desejo que era sua obsessão e podia piscar para os amigos: — “Já tive a filha. Agora vou viver a minha vida”.

Estava, porém, envelhecido. Casara-se tarde e as atribulações dos últimos anos o encheram de rugas e cabelos brancos. Celebrara, há pouco, o quadragésimo quinto aniversário. Os amigos mais íntimos o chamavam de “o velho” e diziam, às gargalhadas: “Você não dá mais no couro”. Era uma blague, mas que tinha um fundo de verdade melancólica.

Em casa, olhando para a mulher, gorda, desleixada, sentia um gosto amargo na boca. Mas talvez continuasse na rotina implacável se, um belo dia, não encontrasse uma alegre conhecida dos seus tempos de solteiro. Era madame Ziza.
Muito dada e espalhafatosa, ela foi dizendo: “Tomaste um banho de desaparecimento?”. Contou que estava estabelecida, num lugar assim, assim, e prosperava de uma maneira desenfreada. Baixou: “Sabes qual foi meu grande golpe?”. Ele quis saber e madame Ziza soprou a revelação:

— Os brotinhos! Só trabalho com brotinhos!

— No duro?

— Palavra de honra!

Despediram-se, afinal; e madame ainda insistia: “Aparece, aparece!”. Durante dias, meses e até anos, ele pensou, com deslumbramento e náuseas, nesse lugar onde meninas de família, simples colegiais, quase crianças, tinham a primeira experiência de amor infame. Por vezes, o assaltava a idéia de procurar madame. Mas pensava na própria filha. Confessava aos amigos: “Se eu fosse a um lugar desses, não teria mais coragem de beijar minha filha”.

“Deixa de ser burro. Então, me dá o telefone de madame, dá?” Acabou dando. E dois ou três amigos que, em épocas diferentes, foram lá vinham fora de si. Contavam maravilhas: “Madame me arranjou uma menina de quinze anos, imagina!”. Surgiam outros detalhes: “Menina de família, filha de um pro¬essor!”.

Durante horas e horas, Amadeu ficava ouvindo as minúcias mais vis. Insistiam com ele: “Vai lá, vai lá!”. Embora sentindo a tentação nas profundezas do ser, reagia:

— Isso é uma indignidade! Onde já se viu? Uma menina de quinze anos!

A INFÂMIA

Correu o tempo. E, afinal, chegou o dia em que Margarida fez quinze anos. Segundo as vizinhas, muito exuberante, era bonita como uma pintura. Outros diziam: “uma adoração de pequena”. Sobretudo os olhos chamavam a atenção, por causa do azul extraterreno. Houve uma grande festa de aniversário e quem visse a menina, na sua graça frágil e intensa, não esqueceria, jamais, sua imagem.

No dia seguinte, na cidade, Amadeu dá de cara com madame. Muita festa, de parte a parte, e, no fim, ela convida, formalmente: “Vem que eu tenho, pra ti, um broto espetacular! Uma coisa por demais!”. E insistiu: “Fabulosíssima!”. Amadeu, transpirando, duvidara: “Pode não fazer fé com minha cara”. A outra foi categórica: “Deixa de ser bobo. Faz fé com qualquer um. Eu mesma, te juro que fiquei besta. Uma vocação, meu filho”.

Então, aquele pobre velho, que praticamente só conhecia a rotina conjugal, experimentou uma espécie de embriaguez. A aventura o seduziu pelo que oferecia de inédito, de sórdido, de abjeto. Deixou-se levar; sentia-se dominado por um delírio lúcido e terrível.

Subiu umas escadas, percebeu um cheiro de flores e, por fim, estava numa sala. Madame soprou-lhe: “Dois mil cruzeiros, hein? Tabela especial. Mas o artigo vale muito mais”. Ele esperou, em pé, com os ombros vergados ao peso de uma velhice subitamente maior e inapelável. Vem alguém, com passos macios, no corredor. É ela, só pode ser ela. Aparece, agora, e ele tem uma espécie de uivo.

Não pode ser e, no entanto, está diante dele, com um pijama cinza, finíssimo, sua filha Margarida. A menina corre, foge. Ele segue no seu encalço e a segura no corredor. Ela pensa que o pai vai matá-la. Espera a morte e quase a deseja. E, súbito, Amadeu perfila-se. Diz-lhe, sem ódio, com uma ternura que resistiu a tudo:

— Eu não quero, Ouviste? — E repetiu, duas vezes, sem desfitá-la: — Nunca mais, nunca mais!

Matou-se, ali mesmo, a seus pés. Desde então, sempre que madame a chamava, Margarida experimentava uma brusca e aguda nostalgia do pecado. Queria dizer “sim”. Mas aparecia, diante dos seus olhos, uma cabeça grisalha e ensangüentada; e a menina gritava, ao telefone, três vezes “não”.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Doente do pulmão

Certa manhã, quando foi apanhar o leite, encontrou aquilo no chão, junto da porta. Era um envelope branco, fechado. Por fora, estava escrito: “Para d. Clélia”. Balbuciou:

— Pra mim?

E, então, no seu quimono rosa por cima da camisola, os pés calçando as chinelinhas, abriu o envelope. Teve uma surpresa ainda maior ao desdobrar o papel: versos! Leu, releu, tresleu, como se o soneto, que lhe pareceu fabuloso, estivesse escrito em latim, grego ou chinês. E não havia dúvida: a destinatária era ela.

Imersa na releitura, não sentiu a aproximação do marido. Geraldo espichava o pescoço e lia também, por cima do seu ombro.

Clélia tomou um susto. Vira-se instantaneamente e seu primeiro impulso, instintivo e irresistível, foi esconder o papel. Mas Geraldo estendia a mão, exigindo: “Dá isso, aqui, anda!”. A pequena obedeceu, vermelhíssima. E ele, num espanto mudo, virava e revirava o papel, cheirava-o. Interpelou Clélia: “Quem mandou?”. Ela, ainda perturbada, respondeu:

— Sei lá!

Preparado para sair, num terno branco engomadíssimo, ele rosna:

— Ah, se eu descubro o engraçadinho que fez isso, parto-lhe a cara!

O MISTÉRIO

Para Clélia, o poeta anônimo, que irrompia na sua vida, era alguma coisa de insólito, de sem precedentes. Casada há três anos, sua existência matrimonial não oferecia uma variante, uma novidade, uma emoção especial. A rigor, a única compensação que lhe restava era o rádio. Adorava as novelas e os programas humorísticos. Aos sábados, ia ao cinema, sessão das oito. Só. Fora disso, era o tédio, a rotina, a vida que se repetia. O soneto, que o autor passara por debaixo da porta, significava uma experiência inédita.

Mal o marido saiu, indignado, falando em “quebrar caras”, ela foi, de porta em porta, anunciar o acontecido. Imediatamente formou-se, na calçada, um grupo feminino. Aquelas mulheres, falando pelos cotovelos e, ao mesmo tempo, num mexerico deslavado, faziam pensar em galinhas de desenho animado. Uma delas, de seio imenso, as pernas ilustradas de varizes, foi enfática:

— O que vale é que meu marido não faz versos!

Outra atalhou:

— Nem o meu!

As mãos nos quadris, atribulada, Clélia pergunta:

— Quem terá sido?

Súbito, d. Silene, que era uma língua de trapo tremenda, anuncia: “Já sei!”.

Baixa a voz:

— Quem é que faz versos aqui na rua? Quem? — Silêncio expectante; ela própria responde: — O Silveirinha! É ou não é? Batata!

Clélia e as demais caíram das nuvens:

— É mesmo!

O POETA

Talvez existisse, na rua e no bairro, um outro poeta, mas rigorosamente incubado, rigorosamente inédito. Conhecido mesmo, só o Silveirinha, rapaz esquálido e sebento, de calças cerzidas nos fundilhos. Na sua figura anti-higiênica, lamentável, só havia mesmo um único traço de distinção e bom gosto: o pobre-diabo fumava de piteira. O cigarro podia ser, e era, um mata-rato brabíssimo. Mas a piteira, muito longa, muito aristocrática, parecia infundir um quê de fatal e, mesmo, de satânico à sua pessoa.

Acresce que, recentemente, ele andara num sanatório gratuito da prefeitura. Após uns seis meses, retornara à rua. E coisa curiosa: obtivera alta, mas voltara mais escaveirado do que nunca, tossindo que Deus te livre e com um tom esverdeado de cadáver. E mais: não fosse a mãe viúva, que o sustentava, o miserando Silveirinha teria morrido, há muito tempo, de fome.

Identificado o poeta, Clélia pensa na tísica, que o consome, na aparência pessoal tão desagradável e patética. Sem querer, deixa escapar exclamação apiedada:

— Coitado!

Foi o bastante. Há em torno um burburinho: “Mas, oh, dona Clélia!”. D. Silene dramatiza: “A senhora se esquece que é casada!”. Ela cai em si:

— Claro! É evidente! É muito desaforo!

Geraldo chegou à noitinha, com um humor cordialíssimo. Esquecera por completo os versos enfiados por debaixo da porta. Encontrou, porém, a esposa exaltadíssima. Com o espírito trabalhado pelas vizinhas, ela recebe triunfalmente o marido:

— Sabe quem foi o cachorro?

Ele, tirando o paletó, faz espanto:

— Que cachorro?

— Você já se esqueceu, é? — Explode: — Logo vi! Você não pensa em mim, não me liga, não me dá nenhuma pelota! Falo do cachorro que me mandou os versos!

O marido bate na testa, envergonhado do lapso: “Sim! Os versos!”. Pigarreia e indaga: “Quem foi?”. E ela, num berro: “O Silveirinha!”. Geraldo quer saber: “Tem certeza?”.

E, então, na base da dedução lógica e infalível, ela demonstra que só pode ter sido o único poeta existente num raio de vários quilômetros. O raciocínio impressiona Geraldo. Clélia continua:

— Toda a rua está de olhos em ti, esperando tua reação. E eu vou te pedir um favor.

— Qual?

Diz:

— Tu vais me dar um tiro nesse descarado!

O marido recua, de olhos esbugalhados. “Tiro?” Clélia teima: “Perfeitamente. Tiro!”. Geraldo reage: “Sossega, leoa! Você está pensando que esse negócio de tiro é assim? Você é minha amiga ou da onça?”. Essa resistência, que não entrara nos seus planos, enfurece Clélia. Investe sobre o marido:

— Você não me ama! Se me amasse, matava esse miserável! E das duas uma: ou você dá o tiro ou toda a vizinhança vai saber que você não gosta de mim, nem se incomoda comigo! Você tem que mostrar que é homem!

E a verdade é que ela temia mais o comentário dos vizinhos que o Juízo Final. O desconcertado Geraldo apela até para as razões de saúde: “O homem é tuberculoso, ora bolas!”. Clélia exulta: “Você acha o quê? Que o tuberculoso pode desrespeitar a esposa dos outros?”. O marido embatuca. Ela termina historicamente:

— Você usa calças pra quê? Seja homem!

Em seguida, houve uma romaria de vizinhos. Todos, solidários e ferozes, eram de opinião que o Silveirinha merecia uma lição. Disseram horrores do poeta, inclusive uma coisa que ocasionou várias náuseas, ou seja, que ele escarrava no lenço. Então, cercado por todos os lados, submetido a uma pressão tremenda, Geraldo não teve outro remédio.

No fundo, era um pacífico, um bom. Mas acabou numa espécie de indignação artificial, de cólera fabricada, que a mulher e as vizinhas impunham. Prometeu não o tiro, mas uma sova. Já feroz, já heróico, rilhava os dentes.

TOCAIA

A esperança de Geraldo era que não houvesse um segundo soneto. Mudando a roupa no quarto, mais tarde, ele vira-se para a mulher: “Agredir tuberculoso é espeto! Imagina se o homem tem uma hemoptise?”. Clélia enfia a camisola, e simplifica:

— Azar o dele!

Geraldo dormiu. Clélia, não. Ficou em claro, de tocaia. Alguma coisa lhe dizia que o poeta tísico viria, na calada da noite, introduzir por debaixo da porta uma nova e desvairada poesia. Apanha o soneto da véspera e imerge na sua leitura. Era um grito ou, por outra, um uivo de paixão. Silveirinha falava em “braços de marfim”, “colo de alabastro” e “seio de neve”. Tratava-se do pior soneto do mundo e com várias pistas de vantagem.

Pois bem. Clélia continua a vigília, junto à janela entreaberta. Na altura das três horas, vê, à distância, um vulto que, no outro lado da calçada, caminha rente à parede. Era o bandido! Numa euforia medonha, ela acorda o marido: “Evém! Evém!”. Instiga-o: “Quero ver se você é homem!”. Geraldo desce. E, então, aconteceu o seguinte: no exato momento em que, de cócoras, o Silveirinha enfiava um novo envelope, com um novo e tenebroso soneto, talvez pior que o primeiro, Geraldo abre espetacularmente a porta. Ao mesmo tempo, Clélia punha-se a gritar, conclamando os vizinhos:

— Socorro! Socorro!

Dir-se-ia que estava todo mundo acordado. Imediatamente, as sacadas apinharam-se. Homens de pijama irrompiam das casas próximas. Criou-se uma platéia.

Assistido e estimulado por uma espécie de torcida, Geraldo bateu além da medida. Sem se lembrar do estado pulmonar da vítima, dava-lhe socos, murros nas costas e no peito.

Justiça se faça ao Silveirinha. Apanhou sem reagir. Agachado, com as mãos cobrindo a cabeça a chorar, soluçava alto, soluçava forte. Então, Clélia, que assistia a tudo, grita, num desvario: “Basta! Chega!”.

Investe sobre o marido; agride-o pelas costas: “Covarde! Covarde!”. Geraldo recua, atônito, e realmente acovardado.

Clélia cai de joelhos na calçada. Abraçada ao tísico, chora também; beija-o, soluça:

— Meu marido é mau! Meu marido não chega aos teus pés!

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.