Quando o irmão apareceu na porta do escritório, perguntou:
— Qual é o drama?
E Gervásio, arriando na cadeira:
— Preciso muito falar contigo.
Apanha um cigarro.
— Fala!
Então, já com os olhos cheios de lágrimas, o outro pede: — “Primeiro, fecha a porta”. Felipe sente que o irmão está arrasado. Surpreso, levanta-se e passa a chave na porta. Volta-se e pergunta:
— Mas o que é que há?
Gervásio tem um soluço imenso:
— Sou traído! Adélia me trai! Tem um amante!
Estupefato, Felipe balbucia:
— Não é possível! Não pode ser!
Repete:
— Me trai, sim! — E batia no peito: — Sou traído!
— Não acredito, só vendo!
ADÉLIA
A princípio, Felipe pensou num caso de ciúmes doentios. Mas o outro o desiludiu. Mandara seguir a mulher por um detetive particular. E agora sabia de tudo — nome, endereço, dias de encontros, horários. Na véspera, metera-se com o detetive num táxi e lá foram os dois, para a esquina do apartamento do pecado. Viram quando Adélia saltara de outro táxi e entrara no edifício. Gervásio podia ter uma atitude qualquer, de marido, de homem. Mas desde a véspera que se limitava a chorar. Gemia para o irmão: — “Sou um pulha, um tarado! Não fiz, nem vou fazer nada”. E súbito, no seu desespero, crispa a mão no braço do irmão:
— Agora compreendo tua situação. Imagino o que não sofre!
Felipe volta-se, espantado:
— Minha situação? — Sem entender, continua: — Mas que situação?
Gervásio passa as costas da mão nos olhos. Arqueja: — “Nós também somos irmãos em desgraça. Eu sou traído por um lado: tu és traído por outro!”.
Há uma pausa. Felipe instiga:
— Sou traído e...
— Pois é: — és traído e sabes, como eu.
Por um momento, Felipe não sabe o que pensar ou o que dizer. E, súbito, sem que o Gervásio possa prever-lhe o gesto, agarra-o pela gola do paletó e o sacode:
— Você vai me contar tudo, tudinho, seu cachorro! Quem lhe disse que eu sou traído e que sabia? Fala ou te arrebento.
Desconcertado, Gervásio debate-se:
— Mas que é isso? Não faça isso! Calma!
Felipe trincou os dentes:
— Quero a verdade, toda a verdade!
REVELAÇÃO
Sacudido por Felipe, que o ameaçava de quebrar a cara e até de lhe dar um tiro na boca, Gervásio confundiu-se todo:
— Eu pensei que você soubesse. Todos pensam que você sabe e perdoa!
Felipe interrompeu: — “Não quero comentários. Quero informações. Anda!”. Então, esquecido da própria tragédia, lá foi o Gervásio falando. O outro corta outra vez:
— Quero o nome do amante!
O irmão vacila, mas acaba tomando coragem:
— São vários!
Recua, desgovernado: — “Vários?”. E insiste: — “Mais de um?”. Gervásio confirma. Então, diz, com um meio riso hediondo:
— Tens mais sorte do que eu. A tua só tem um! Mas continua!
Gervásio contou-lhe o resto. Parentes, amigos, simples conhecidos sabiam de tudo. E ela não discriminava, não escolhia, como se o seu destino fosse trair, apenas trair. Felipe apertava a cabeça entre as mãos. Faz uma pergunta, que é um lamento: — “Por quê, meu Deus, por quê?”. Vira-se, com o rosto devastado:
— Quer dizer que todo o Rio de Janeiro sabia, menos eu?
Gervásio levanta-se. Felipe o acompanha até a porta. Bate-lhe nas costas, com um humor ignóbil:
— Parabéns, porque a tua só tem um e a minha vários!
O CHOQUE
Durante uma hora, uma hora e pouco, ele ficou só no gabinete, entregue a uma meditação ardente e vazia. Quando apareceu uma funcionária com uns papéis, explodiu: — “Vai-te para o diabo que te carregue!”. A moça fugiu apavorada. Por fim, ele levantou-se, pôs o paletó e apanhou o revólver na gaveta. Meia hora depois, chega em casa. Entra e, impassível, faz um sinal para a mulher:
— Vamos bater um papinho lá dentro.
Tranca-se à chave com a esposa. Ela pergunta: — “Alguma novidade?”. Rápido ele puxa o revólver. A esposa recua: — “Que é isso?”. Foi sumário:
— Soube isso assim, assim. É verdade? Responda.
Ergue o rosto:
— É verdade.
Há uma pausa. Ele, quase chorando, pergunta: — “Já que confessa, quero que me responda: — você merece a morte?”. Ela teve uma breve vacilação. Acabou respondendo, com uma firmeza não isenta de doçura:
— Mereço. Eu mereço a morte.
E ele:
— Escuta: — eu devia te matar como a uma cachorra. Mas há, nisso tudo, um mistério. Eu te perdoarei a vida se me disseres a verdade. Por que me traíste? Fala!
— Por quê?
O marido continua:
— Eu sempre te conheci fria, de gelo, de pedra, de morte. Já no namoro, tinhas horror de um simples beijo. No casamento, a mesma coisa. Sempre me disseste que odeias a parte física do amor. Responde: — não me disseste sempre?
Felipe está ofegante. Prossegue: — “A mulher fria é a única que não tem o direito de trair. Por que me traíste, por quê?”.
Durante um momento, os dois se olharam apenas. Ela se tornara para o marido a última das desconhecidas.
O marido insiste: — “Se me explicares, eu não te farei nada, juro!”.
Então, sem desfitá-lo, a mulher fala:
— Eu te traí na esperança do amor de que todos falam. Minhas amigas contavam maravilhas dos seus amores. Eu quis encontrar o meu.
— E daí? Encontraste?
Ela ficou calada. Finalmente respondeu:
— Nunca.
O DESFECHO
Sem uma palavra, ele abre a gaveta e guarda lá o revólver. Levanta-se e sai. Imóvel e silenciosa, vê o marido abrir a porta, atravessar a sala e sair. Então, sozinha, apanha um lápis e um papel e escreve, uma porção de vezes: — “A mulher que não pode amar também não deve viver”. Horas depois, tira da gaveta o revólver do marido. Já que ele não a matara, ela se matou — cansada de ser fria.
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A
coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... /
Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
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