sábado, 20 de agosto de 2011

Cansada de ser fria

Quando o irmão apareceu na porta do escritório, perguntou:

— Qual é o drama?

E Gervásio, arriando na cadeira:

— Preciso muito falar contigo.

Apanha um cigarro.

— Fala!

Então, já com os olhos cheios de lágrimas, o outro pede: — “Primeiro, fecha a porta”. Felipe sente que o irmão está arrasado. Surpreso, levanta-se e passa a chave na porta. Volta-se e pergunta:

— Mas o que é que há?

Gervásio tem um soluço imenso:

— Sou traído! Adélia me trai! Tem um amante!

Estupefato, Felipe balbucia:

— Não é possível! Não pode ser!

Repete:

— Me trai, sim! — E batia no peito: — Sou traído!

— Não acredito, só vendo!

ADÉLIA

A princípio, Felipe pensou num caso de ciúmes doentios. Mas o outro o desiludiu. Mandara seguir a mulher por um detetive particular. E agora sabia de tudo — nome, endereço, dias de encontros, horários. Na véspera, metera-se com o detetive num táxi e lá foram os dois, para a esquina do apartamento do pecado. Viram quando Adélia saltara de outro táxi e entrara no edifício. Gervásio podia ter uma atitude qualquer, de marido, de homem. Mas desde a véspera que se limitava a chorar. Gemia para o irmão: — “Sou um pulha, um tarado! Não fiz, nem vou fazer nada”. E súbito, no seu desespero, crispa a mão no braço do irmão:

— Agora compreendo tua situação. Imagino o que não sofre!

Felipe volta-se, espantado:

— Minha situação? — Sem entender, continua: — Mas que situação?

Gervásio passa as costas da mão nos olhos. Arqueja: — “Nós também somos irmãos em desgraça. Eu sou traído por um lado: tu és traído por outro!”.

Há uma pausa. Felipe instiga:

— Sou traído e...

— Pois é: — és traído e sabes, como eu.

Por um momento, Felipe não sabe o que pensar ou o que dizer. E, súbito, sem que o Gervásio possa prever-lhe o gesto, agarra-o pela gola do paletó e o sacode:

— Você vai me contar tudo, tudinho, seu cachorro! Quem lhe disse que eu sou traído e que sabia? Fala ou te arrebento.

Desconcertado, Gervásio debate-se:

— Mas que é isso? Não faça isso! Calma!

Felipe trincou os dentes:

— Quero a verdade, toda a verdade!

REVELAÇÃO

Sacudido por Felipe, que o ameaçava de quebrar a cara e até de lhe dar um tiro na boca, Gervásio confundiu-se todo:

— Eu pensei que você soubesse. Todos pensam que você sabe e perdoa!

Felipe interrompeu: — “Não quero comentários. Quero informações. Anda!”. Então, esquecido da própria tragédia, lá foi o Gervásio falando. O outro corta outra vez:

— Quero o nome do amante!

O irmão vacila, mas acaba tomando coragem:

— São vários!

Recua, desgovernado: — “Vários?”. E insiste: — “Mais de um?”. Gervásio confirma. Então, diz, com um meio riso hediondo:

— Tens mais sorte do que eu. A tua só tem um! Mas continua!

Gervásio contou-lhe o resto. Parentes, amigos, simples conhecidos sabiam de tudo. E ela não discriminava, não escolhia, como se o seu destino fosse trair, apenas trair. Felipe apertava a cabeça entre as mãos. Faz uma pergunta, que é um lamento: — “Por quê, meu Deus, por quê?”. Vira-se, com o rosto devastado:

— Quer dizer que todo o Rio de Janeiro sabia, menos eu?

Gervásio levanta-se. Felipe o acompanha até a porta. Bate-lhe nas costas, com um humor ignóbil:

— Parabéns, porque a tua só tem um e a minha vários!

O CHOQUE

Durante uma hora, uma hora e pouco, ele ficou só no gabinete, entregue a uma meditação ardente e vazia. Quando apareceu uma funcionária com uns papéis, explodiu: — “Vai-te para o diabo que te carregue!”. A moça fugiu apavorada. Por fim, ele levantou-se, pôs o paletó e apanhou o revólver na gaveta. Meia hora depois, chega em casa. Entra e, impassível, faz um sinal para a mulher:

— Vamos bater um papinho lá dentro.

Tranca-se à chave com a esposa. Ela pergunta: — “Alguma novidade?”. Rápido ele puxa o revólver. A esposa recua: — “Que é isso?”. Foi sumário:

— Soube isso assim, assim. É verdade? Responda.

Ergue o rosto:

— É verdade.

Há uma pausa. Ele, quase chorando, pergunta: — “Já que confessa, quero que me responda: — você merece a morte?”. Ela teve uma breve vacilação. Acabou respondendo, com uma firmeza não isenta de doçura:

— Mereço. Eu mereço a morte.

E ele:

— Escuta: — eu devia te matar como a uma cachorra. Mas há, nisso tudo, um mistério. Eu te perdoarei a vida se me disseres a verdade. Por que me traíste? Fala!

— Por quê?

O marido continua:

— Eu sempre te conheci fria, de gelo, de pedra, de morte. Já no namoro, tinhas horror de um simples beijo. No casamento, a mesma coisa. Sempre me disseste que odeias a parte física do amor. Responde: — não me disseste sempre?

Felipe está ofegante. Prossegue: — “A mulher fria é a única que não tem o direito de trair. Por que me traíste, por quê?”.

Durante um momento, os dois se olharam apenas. Ela se tornara para o marido a última das desconhecidas.

O marido insiste: — “Se me explicares, eu não te farei nada, juro!”.

Então, sem desfitá-lo, a mulher fala:

— Eu te traí na esperança do amor de que todos falam. Minhas amigas contavam maravilhas dos seus amores. Eu quis encontrar o meu.

— E daí? Encontraste?

Ela ficou calada. Finalmente respondeu:

— Nunca.

O DESFECHO

Sem uma palavra, ele abre a gaveta e guarda lá o revólver. Levanta-se e sai. Imóvel e silenciosa, vê o marido abrir a porta, atravessar a sala e sair. Então, sozinha, apanha um lápis e um papel e escreve, uma porção de vezes: — “A mulher que não pode amar também não deve viver”. Horas depois, tira da gaveta o revólver do marido. Já que ele não a matara, ela se matou — cansada de ser fria.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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