domingo, 21 de agosto de 2011

Margarida

Durante os meses de gravidez, houve toda sorte de palpites quanto ao sexo da criança. Menino? Menina? A mãe agarrou-se à parteira. Mas esta quis tirar o corpo fora. Tanto insistiram que ela sempre deixou escapar alguma coisa, embora com uma ressalva:

— Não é certo, não. Mas, pelas batidas do coração, deve ser menino.

Suspiro materno:

— Ah, eu queria tanto uma menina!

Protestavam: “Mas que bobagem! O primeiro filho deve ser homem!”. Edgardina era obrigada a explicar: “O negócio é o seguinte: menina faz mais companhia!”. O pai, Amadeu, não tinha preferência: “Tanto faz, tanto faz. Eu topo tudo”. E, no dia do parto, foi até interessante. Amadeu, no corredor, gemia de dor de dente. De repente, abrem a porta, ele se arremessa e recebe o impacto da notícia:

— Menina!

Estacou sem coragem de entrar: as lágrimas corriam grossas e fartas e o rapaz abriu os braços para o teto: “Oh, graças, meu Deus; graças!”. No quarto, cansada de muito sofrer, a mulher pediu: “Beija-me”. Adiante, nuazinha, em cima de uma toalha felpuda, estava a menina, E, de repente, Amadeu tem a exclamação:

— Ué! Minha dor de dente passou!

MARGARIDA

Durante vários dias, parecia bobo, de tanta felicidade. Confidenciava no emprego: “Tem a minha cara!”. De vez em quando, porém, mergulhava em meditação e desabafava: “Estou pensando no dia em que minha filha namorar”. Era enérgico e reacionário: “Não topo namoro de portão, esquina ou cinema; tem que ser dentro de casa”. Os colegas achavam graça:

— Toma jeito!

Finalmente, no terceiro ou quarto dia, bate o telefone. Era Edgardina: “Vem correndo, Amadeu. Tua filha está morrendo!”. Atirou-se, em mangas de camisa; e, como o elevador demorasse, veio mesmo pela escada, como um louco. Quando entrou em casa, era tarde. Nunca se soube ao certo como foi aquilo. A menina, com quatro dias de nascida, teve uma agonia breve, quase imperceptível. Mal se sentiu quando morreu.

Os pais quase enlouqueceram. Edgardina recuperou-se mais depressa. As vizinhas, as parentas se debruçavam em cima de sua dor; usou-se muito o seguinte argumento: “Deus sabe o que faz”. Mas o que realmente a impressionou foi o que lhe disse uma tia, senhora de muita experiência.

— Quem sabe se, mais tarde, ela não ia sofrer muito? Quem sabe?

Em redor, houve o coro das comadres:

— Mulher sofre tanto!

O marido, porém, foi mais difícil de convencer. Queria sofrer, fazia questão de cultivar a própria dor. Depois do enterro, deu a ordem: “Manda todos os ternos para o tintureiro”. E ninguém o dissuadiu do luto fechado. A própria Edgardina sugeriu, a medo: “Mas eu sempre ouvi dizer que não se punha luto para recém-nascido”. Foi categórico:

— Se ninguém põe, eu ponho. Graças a Deus, tenho sentimento!

Ao mesmo tempo, anunciou que queria um novo filho, isto é, uma nova filha. A mulher quis achar que ainda era cedo etc. etc. Amadeu cortou as suas ponderações: “Não, senhora, em absoluto! Se Deus quiser, dentro de nove meses, eu terei outra filha, com o mesmo nome”. Na verdade, o que ele admitia, no seu desespero, é que a próxima filha seria a mesma, renascida.

A TRAGÉDIA

Nove meses depois, nascia um menino. A princípio, Amadeu não quis compreender: “Menino?”. Estava tão certo de que seria menina que experimentou um desgosto medonho. Quase blasfemou: “Não é possível, meu Deus, não pode ser!”. A família, vendo a sua dor obtusa, já admitia a hipótese de uma psicose; houve resmungos: “Ora veja!”.

Começou, então, a luta contra a natureza, contra a fatalidade, talvez contra o demônio. Ano após ano, nascia uma criança naquela casa; e sempre menino. Amadeu encarniçava-se: “Hei de ter uma filha nem que o mundo venha abaixo!”.

Pouco a pouco, tomava-se de surdo rancor contra Edgardina, como se a mulher fosse responsável pelo sexo dos filhos. Ele esbravejava na presença das visitas: “Se a primeira foi mulher, por que os outros não são, meu Deus?”. A mãe, em voz baixa, confidenciava a queixa para as conhecidas:

— Gozado! E eu é que pago o pato!

Ela, com efeito, enchia-se de horror da maternidade. Sempre que tinha um filho, fazia, na hora, a pergunta: “Menino ou menina?”. A resposta não variava: “Menino”. Só faltava morrer. Finalmente, o sétimo filho foi uma menina. Assim que constatou o sexo da criança, Amadeu foi com um cortejo de vizinhos para o boteco da esquina. Com o lábio trêmulo, o olhar de alucinado, berrou:

— Pode beber todo mundo, que eu pago!

Tomou um pileque tremendo e comemorativo.

A NOVA MARGARIDA

Foi um descanso para todo mundo e, sobretudo, para Edgardina. Avisou em alto e bom som: “Esse negócio de filho, já sabe. Stop. Nunca mais, que eu não sou máquina de filhos, ora essa!”. Quanto ao Amadeu, era outro homem. Realizara o desejo que era sua obsessão e podia piscar para os amigos: — “Já tive a filha. Agora vou viver a minha vida”.

Estava, porém, envelhecido. Casara-se tarde e as atribulações dos últimos anos o encheram de rugas e cabelos brancos. Celebrara, há pouco, o quadragésimo quinto aniversário. Os amigos mais íntimos o chamavam de “o velho” e diziam, às gargalhadas: “Você não dá mais no couro”. Era uma blague, mas que tinha um fundo de verdade melancólica.

Em casa, olhando para a mulher, gorda, desleixada, sentia um gosto amargo na boca. Mas talvez continuasse na rotina implacável se, um belo dia, não encontrasse uma alegre conhecida dos seus tempos de solteiro. Era madame Ziza.
Muito dada e espalhafatosa, ela foi dizendo: “Tomaste um banho de desaparecimento?”. Contou que estava estabelecida, num lugar assim, assim, e prosperava de uma maneira desenfreada. Baixou: “Sabes qual foi meu grande golpe?”. Ele quis saber e madame Ziza soprou a revelação:

— Os brotinhos! Só trabalho com brotinhos!

— No duro?

— Palavra de honra!

Despediram-se, afinal; e madame ainda insistia: “Aparece, aparece!”. Durante dias, meses e até anos, ele pensou, com deslumbramento e náuseas, nesse lugar onde meninas de família, simples colegiais, quase crianças, tinham a primeira experiência de amor infame. Por vezes, o assaltava a idéia de procurar madame. Mas pensava na própria filha. Confessava aos amigos: “Se eu fosse a um lugar desses, não teria mais coragem de beijar minha filha”.

“Deixa de ser burro. Então, me dá o telefone de madame, dá?” Acabou dando. E dois ou três amigos que, em épocas diferentes, foram lá vinham fora de si. Contavam maravilhas: “Madame me arranjou uma menina de quinze anos, imagina!”. Surgiam outros detalhes: “Menina de família, filha de um pro¬essor!”.

Durante horas e horas, Amadeu ficava ouvindo as minúcias mais vis. Insistiam com ele: “Vai lá, vai lá!”. Embora sentindo a tentação nas profundezas do ser, reagia:

— Isso é uma indignidade! Onde já se viu? Uma menina de quinze anos!

A INFÂMIA

Correu o tempo. E, afinal, chegou o dia em que Margarida fez quinze anos. Segundo as vizinhas, muito exuberante, era bonita como uma pintura. Outros diziam: “uma adoração de pequena”. Sobretudo os olhos chamavam a atenção, por causa do azul extraterreno. Houve uma grande festa de aniversário e quem visse a menina, na sua graça frágil e intensa, não esqueceria, jamais, sua imagem.

No dia seguinte, na cidade, Amadeu dá de cara com madame. Muita festa, de parte a parte, e, no fim, ela convida, formalmente: “Vem que eu tenho, pra ti, um broto espetacular! Uma coisa por demais!”. E insistiu: “Fabulosíssima!”. Amadeu, transpirando, duvidara: “Pode não fazer fé com minha cara”. A outra foi categórica: “Deixa de ser bobo. Faz fé com qualquer um. Eu mesma, te juro que fiquei besta. Uma vocação, meu filho”.

Então, aquele pobre velho, que praticamente só conhecia a rotina conjugal, experimentou uma espécie de embriaguez. A aventura o seduziu pelo que oferecia de inédito, de sórdido, de abjeto. Deixou-se levar; sentia-se dominado por um delírio lúcido e terrível.

Subiu umas escadas, percebeu um cheiro de flores e, por fim, estava numa sala. Madame soprou-lhe: “Dois mil cruzeiros, hein? Tabela especial. Mas o artigo vale muito mais”. Ele esperou, em pé, com os ombros vergados ao peso de uma velhice subitamente maior e inapelável. Vem alguém, com passos macios, no corredor. É ela, só pode ser ela. Aparece, agora, e ele tem uma espécie de uivo.

Não pode ser e, no entanto, está diante dele, com um pijama cinza, finíssimo, sua filha Margarida. A menina corre, foge. Ele segue no seu encalço e a segura no corredor. Ela pensa que o pai vai matá-la. Espera a morte e quase a deseja. E, súbito, Amadeu perfila-se. Diz-lhe, sem ódio, com uma ternura que resistiu a tudo:

— Eu não quero, Ouviste? — E repetiu, duas vezes, sem desfitá-la: — Nunca mais, nunca mais!

Matou-se, ali mesmo, a seus pés. Desde então, sempre que madame a chamava, Margarida experimentava uma brusca e aguda nostalgia do pecado. Queria dizer “sim”. Mas aparecia, diante dos seus olhos, uma cabeça grisalha e ensangüentada; e a menina gritava, ao telefone, três vezes “não”.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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