Quando ele, no telefone, propôs um encontro, Luci quase caiu para trás, dura:
— Você está maluco? Doido?
E ele:
— Por quê? Tem alguma coisa demais? É um encontro numa sorveteria ou onde você quiser. Eu digo o que tenho para dizer, você me escuta e pronto. Só.
Mas Luci protestava ainda. Reagiu ferozmente: “Você se esquece que sou casada? Que tenho marido, filhos?”. Do outro lado da linha, Reginaldo tratava de argumentar:
— O que eu estou pleiteando de ti é apenas um encontro e nada mais. Um simples encontro cordial. Tu estás fazendo um bicho-de-sete-cabeças à toa, sem motivo.
Apavorada, perguntou: “Mas pra quê? Com que finalidade?”.
Respondeu:
— Preciso falar contigo, dizer umas coisas a ti. Te juro o seguinte: será o primeiro e o último encontro. — Toma respiração e suplica: — Tu vais?
Silêncio no telefone. Por fim, quase sem voz, ela admite:
— Irei.
O ENCONTRO
Marcaram o encontro numa confeitaria do Largo da Carioca. Nenhum local mais lírico e inofensivo. Todavia, ela, que se criara num colégio de irmãs e tivera em casa uma educação medieval, tiritava de pavor. E só transigiu, afinal, só condescendeu em ir porque Reginaldo frisara: “Só esta vez e nunca mais”. Há quinze dias que ele, às tardes, ligava para ela. Começava sempre assim: “Sou eu. Te amo, te amo e te amo”. Ora, Luci pertencia a uma dessas famílias em que a fidelidade feminina era um hábito, uma virtude obrigatória e hereditária. Recebeu um impacto medonho. Ameaçava sempre: “Eu desligo. Olha que eu desligo”.
Mas não desligava. Reginaldo era amigo do marido. Desde que começaram os telefonemas, ela experimentava uma sensação atroz de culpa, de mácula. Em todo caso, o telefone não tinha o perigo, a ameaça da presença material. Eis que Reginaldo pedia, pela primeira e última vez, um encontro. Na hora marcada, nervosíssima, Luci entrava; pouco depois, aparecia Reginaldo.
FRAQUEZA
Sentaram-se num canto: ela, no pavor de pessoas conhecidas; e ele, convulso de paixão. Repete: “Sabe que eu te amo muito? Que eu te amo cada vez mais?”. Falava com tanto fervor e, ao mesmo tempo, com tanta humilhação que, sem querer, Luci teve uma fraqueza deliciosa, ou seja: admitiu que também o amava. Logo, porém, sublinhava: “Mas você não vê que esse amor é impossível?”. Reginaldo inclinava-se na mesa, alucinado de esperança: “Por quê? Impossível por quê?”. E a pequena:
— Por quê? Pelo seguinte: eu sou uma criatura que perdoa tudo. Para mim, só uma coisa tem importância: a traição. Compreende? — E continua, com os olhos cheios de lágrimas: — Eu, se traísse uma vez, uma única vez, não poderia olhar nunca mais nem meu marido, nem meus filhos. E teria que morrer, Ouviste? Depois da traição, eu teria nojo da vida!
Reginaldo, porém, estava mais seguro de si mesmo e do próprio sentimento, agora que se sabia amado. Trincou as palavras nos dentes, com uma obstinação de fanático: “Hás de ser minha! Hás de ser minha!”. Ela baixa a voz, espantada:
— Tua? Nunca! — Pausa e prossegue, na violência contida: — Eu seria tua, sim, se me matasse depois. Só assim!
Reginaldo olha em torno. Por cima da mesa, apanha a mão da pequena. Grave e lento, pergunta:
— Queres um pacto de morte? Escuta: tenhamos uma tarde, uma noite de amor, e, em seguida, a morte, compreendes-te? Eu morreria mil vezes para viver uma hora, meia hora contigo! Queres? Seria lindo, não seria?
Por um momento, Luci deixa quase de respirar, como se a dupla sugestão do amor e da morte a arrebatasse. Foi um breve e violento delírio: amar e morrer,.. Pensa que os defuntos não têm memória, nem culpa, como se a morte levasse tudo. Abre os olhos, diz, baixinho, para si mesma: “Meu marido, meus filhos...”. Mas a voz interior responde que uma morta não tem marido, não tem filhos, nada. Olharam-se em silêncio, enamo¬radíssimos. Dir-se-ia que a idéia de morrer os unia mais. E, então, sem desfitá-la, pergunta:
— Queres morrer comigo? Deve ser fabuloso morrer contigo!
Ela responde, fascinada:
— Quero sim. Quero...
Baixa a cabeça, deliciada.
E Reginaldo:
— Amanhã.
AMOR E MORTE
Ali mesmo combinaram tudo. No dia seguinte, às quatro horas, ela iria ao apartamento dele em Copacabana. Quando a pequena chegasse, estariam, em cima da mesinha-de-cabeceira, dois copos. Luci quer saber: “Veneno?”. Ele fez que sim com a cabeça. Despediram-se, felicíssimos. E o que a fascinava, acima de tudo, é a impunibilidade que a morte dá às criaturas.
Nessa noite, quando o marido quis beijá-la, Luci fugiu com o rosto e usou uma desculpa inesperada e lógica: “Estou com muita dor de cabeça, meu bem. Não consigo nem ficar de pé, nem olhar para as paredes de tanta dor”. Na verdade, queria preservar-se para o pecado e para a morte.
O PECADO
À tarde, às quatro horas, como estava marcado, ela bate na porta do apartamento. Estava ali, sem saudade nenhuma do marido, dos filhos, da casa ou do mundo. Entra e, depois que Reginaldo fecha a porta, Luci, de pé, fecha os olhos e pede:
— Me beija, me beija!
E, de fato, houve um primeiro beijo, com uma violência e um desespero de quem vai morrer. Quando se desprenderam, Luci, crispada, balbucia: “Estás vendo?”. Eram os dois copos, cheios, em cima da mesinha. Três horas depois, já caíra a noite. Ela está com a cabeça pousada no seu peito. E ele, brincando com os cabelos da moça, fala: “Agora podemos morrer”. Do fundo do seu sonho, Luci parece espantada:
— Morrer?
E ele, com a boca encostada no seu ouvido:
— Quero morrer contigo.
Sem uma palavra, Luci levanta-se. Com os pés frescos e nus, vai apanhar os dois copos, e, antes que o rapaz pudesse prever o gesto, corre até a janela, que se abre para a noite, e despeja, lá do alto, do décimo segundo andar, todo o veneno. Depois deixa cair um e, depois, o outro copo. Sem compreender, ele quer segurá-la, mas ela se desprende com violência:
— Agora que me ensinaste o amor, não quero morrer, nunca mais!
E, com efeito, por um momento, eles se sentiram eternos.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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