Conheço vários marxistas que são, ao mesmo tempo, macumbeiros. E um povo que pode conciliar Marx e Exu está salvo e, repito, automaticamente salvo.
Imaginem vocês que, outro dia, passei na casa de um ateu patrício. É uma excelente figura de marido, pai, funcionário e rubronegro. Mas esse meu amigo só fala aos berros, como o Salim Simão. E seu bom-dia, como o de Salim Simão, é um soco nos tímpanos.
Coisa curiosa! Gosta de parecer um anticristo. Na noite em que o visitei, desabou uma tempestade. Legítimo mau tempo de quinto ato do Rigoletto. Costumo dizer que a grande tempestade é a de ópera. A orquestra imitando trovão convence mais do que o próprio trovão. E nenhum raio, por melhor que represente, assusta mais do que um relâmpago de curto-circuito.
Justamente, parecia uma tempestade de palco. Todos os presentes rilhavam os dentes de pusilanimidade. Quando vi a dona da casa benzer-se, bem a entendi. Não há ocasião mais própria para um arroubo místico do que um toró. Sei de conversões ocorridas em temporais desvairados. E, por um momento, imaginei que o mau tempo ia precipitar aquele ímpio, aquele desalmado nos braços do Eterno.
Pelo contrário. De repente, um raio estala e quase nos fuzila. A dona da casa enfiou-se debaixo da mesa. E foi esse o momento escolhido para as blasfêmias do ateu. Ele urrou, no meio da sala, trepado numa cadeira, como um Antero de Quental. Esganiçava as gargalhadas. Do seu lábio pendia a baba elástica e bovina da impiedade.
Ninguém se indignou, ali, e explico: — são obviamente incompatíveis o pavor e a indignação. Graças a Deus, a tempestade sumiu como veio, de repente. Mais uns quinze minutos, e o céu limpou. Fui espiar da janela. Vi, "pálido de espanto", como no soneto, estrelas jamais concebidas.
Voltei para a sala, exausto do meu terror. O ateu arquejava, ainda, do riso torpe.
E, súbito, o caçulinha começa a chorar. Os donos da casa se arremessaram. Primeiro, a mãe e, depois, o pai carregaram o menino. Mas não houve colo que o calasse. A tia solteirona já pensava em leucemia. E o caçulinha berrava com um brio inexcedível. Súbito, o pai desatinado é atravessado por uma luz; soluça para a mulher: — "Faz aquela simpatia! Faz aquela simpatia!".
Ou a própria mãe, ou a tia, cola na testa do menino um algodãozinho molhado. Houve, então, nas barbas estarrecidas da família, o suave milagre. Efeito fulminante da simpatia. A criança parou de chorar, instantaneamente. O pai, eufórico, gabava-se: — "Não disse? Não disse?". Vira-se para mim e pisca o olho: — "Tiro e queda! Não falha!".
E, então, vi tudo. Aquele era o único ateu que eu conhecia na vida real. Blasfemara contra o raio. Mas bastou uma dor de barriguinha para que ruísse, em cacos, todo o seu ateísmo. E assim a fé do brasileiro assume as formas mais imprevisíveis e, até, cômicas. Ao menor pretexto emocional, aquele ateu de papelão há de acreditar até em Papai Noel.
Mas estou-me perdendo no acessório e esquecendo o essencial. Eis o que eu queria dizer: — se eu fosse marxista ou pertencesse a qualquer ramo das nossas esquerdas, estaria, hoje, num pânico profundo. Profundo e justificado. É que todos os jornais abrem manchetes deste teor: — "Negociações de paz iniciam-se em Paris". Por se tratar de um fato catastrófico, o jornal devia pingar-lhe um apavorado ponto de exclamação.
Repito: — se eu fosse uma flor das esquerdas, estaria recorrendo a simpatias, como o ateu da dor de barriguinha.
Sim, estaria apelando para o Sobrenatural. Iria até à macumba para frustrar essa paz amaldiçoada. O leitor há de perguntar, com a sua crassa e ignara ingenuidade: — "Mas por quê?".
Vamos lá. O Vietnã pode ser guerra para todo mundo, menos para as esquerdas brasileiras. Para as nossas esquerdas, o Vietnã é um meio de vida. Há sujeitos, aqui, que vivem do Vietnã. Não só os intelectuais, não só as grã-finas, não só os estudantes.
Conheço um alfaiate que se tornou um próspero alfaiate porque vocifera como um vietcong. Aí está dito tudo: — ninguém consegue ser um bom alfaiate sem xingar os Estados Unidos por conta do Vietnã.
Vejam que invejabilíssima situação: — o sujeito daqui, sem arredar pé do Antonio's, ou da praia, sem correr o menor risco e, ao mesmo tempo, fazendo poses e, repito, fazendo quadros plásticos contra os norte-americanos. É o patético, raiando pelo sublime. Há, entre nós e o perigo, toda uma sábia e inexpugnável distância.
Por causa do Vietnã, o sujeito faz artigos dominicais, arranja namoradas, passa por inteligente, moderno, libertário etc. etc. Ir ao jogo Fluminense x Vasco é mais arriscado para nós do que essa guerra admirável.
E, súbito, vem a manchete e diz que Washington e Hanói começam as discussões de paz. É o que eu chamaria de ameaça de desemprego em massa. Vamos rezar para que fracassem os entendimentos; e que a guerra continue até o fim da nossa geração. Mas se, por fatalidade, Washington e Hanói chegarem a um acordo e caírem nos braços um do outro, aos beijos, aos soluços, que faremos nós? Cada época vive de uns tantos assuntos obrigatórios e fatais. O Vietnã é o grande assunto do nosso tempo. Hoje, o nosso berro, o nosso gesto, a nossa ênfase, o nosso palavrão, as nossas pequenas, a nossa retórica — dependem do Vietnã.
Ou por outra: — todos dependemos do que se esconde por trás do Vietnã, ou seja, o ódio aos Estados Unidos. O Vietnã não interessa a ninguém, a não ser como pretexto para o ódio. Mas imaginemos um mundo sem o Vietnã. Hanói e Washington concordam, fazem a abominável paz. Cessam os bombardeios. Nem mortos, nem feridos, nada. Eis as nossas esquerdas esvaziadas. E tendo que vagar, por entre mesas e cadeiras, sem função e sem destino.
Por outro lado, d. Hélder e dr. Alceu terão que aturar, novamente, o abominável Sobrenatural.
[15/5/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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