Dirão vocês que a Cometa tem poltronas-leito. Nem assim. O meu sono exige cama, a clássica, a convencional, a absoluta. (Não sei quem foi que disse que a cama é um móvel metafísico. Na cama, o homem nasce, ama, sonha e morre).
Mas dizia eu: — não durmo sentado e agora vem o trágico: — quase não durmo deitado.
Tenho insônias obrigatórias e fatais. Os meus amigos sugerem: — "Toma barbitúrico". Ah, jamais uma farmácia resolveu o meu sono. E, além disso, o barbitúrico exaspera todas as víboras de minha insônia. Se eu tomar um tubo, 25 pílulas, posso morrer. Dormir, não. Vejam vocês: — morto e insone.
Felizmente, criou-se uma acomodação recíproca. Depois de uma longa convivência, eu e minha insônia já nos entendemos. E, a partir da meia-noite, começo a sonhar em claro. Se fosse um assassino, um Raskolnikov, usaria a minha vigília para construir meus crimes. Mas como não sou, até segunda ordem, um criminoso, só tenho insônias literárias e dramáticas.
Ontem, às três da manhã, comecei a pensar em Lúcio Cardoso. Há anos estou para visitá-lo. Passarei na sua casa, verei seus quadros e ele há de me olhar como um visitante convencional e não um amigo para sempre.
Ainda dentro da mesma insônia, lembrei-me do pai do grande romancista. De vez em quando, o velho chegava em casa e, já da porta, avisava: — "Não falem comigo, que hoje estou brigando automaticamente". Ele podia falar assim porque era homem de outra geração, de outro Brasil, de outro mundo. Hoje, o pai de Lúcio Cardoso não teria nenhuma originalidade. Repito: — hoje, qualquer um de nós poderia entrar num boteco, num velório ou numa retreta, e anunciar, patético: "Não falem comigo, porque hoje estou brigando automaticamente".
Estamos todos brigando. Há um automatismo nas nossas fúrias, nos nossos palavrões, nas nossas patadas. É assim no Brasil e é assim em todo o mundo. Outro dia, aconteceu-me uma que me deixou "pálido de espanto", como no soneto. Imaginem que, todos os sábados, almoço na casa do Hélio Pellegrino. Criou-se entre nós esse hábito tão doce e que me faria uma falta desesperadora. O Hélio é uma presença lírica, ardente, um ser de maravilhoso ímpeto.
Lembro-me de uma noite em que, num dos seus rompantes homéricos, vira-se para mim e fala: — "Você é um dos meus amigos fundamentais". Isso dito na sua voz cálida, vibrante, de barítono de igreja, foi de arrepiar.
Ninguém terá melhor qualidade humana. Vou contar um episódio que considero uma jóia da nossa convivência. Na véspera de partir para Lisboa, o Otto Lara Resende passou na casa do Hélio. O Otto sofre de uma falsa gastrite, que o tortura mais do que uma úlcera autêntica. Chegou e foi logo pedindo ao anfitrião: — "Um copo de leite! Um copo de leite!".
Foram os dois para a cozinha. E, lá, conversam, de coração para coração. Apaziguada a gastrite imaginária, o Otto abriu o coração. Fez confidências, o diabo. E, súbito, começa a chorar. Qualquer viagem, mesmo que seja a Bangu, a Vigário Geral, é uma janela aberta para o infinito. Na tensão da partida, o Otto teve um violento espasmo. Chorava alto, chorava forte. Que fez o Hélio? Arrastou o amigo e o enfiou no banheiro. Lá se trancaram. E, ali, a salvo de curiosidades frívolas e divertidas, o Hélio chorou também. O Otto teria seus motivos concretos. Ao passo que o Hélio chorava de graça, chorava por chorar, porque seu pranto é fácil, é abundante.
Contei o episódio e passo adiante. No último sábado, vou, como sempre, à casa do amigo, filar a bóia fraterna. Ele não estava, mas não ia demorar. Espero-o. E, com pouco mais, entra o dono da casa. Mas chega de cara amarrada. Diz-me um "olá" que é quase uma agressão. Penso no pai do Lúcio Cardoso e imagino: — "Hoje o Hélio está brigando automaticamente". Nos sábados anteriores, sempre me recebera com uma efusão larga e dionisíaca. Não estou entendendo nada.
Vamos para a mesa, enorme, patriarcal. E a cara amarrada do Hélio punha, entre nós, uma imensa distância afetiva, espiritual, sei lá. Comendo o meu bife, tive vontade de lembrar-lhe: — "Olha que sou teu amigo, teu irmão!". Não digo nada. Foi tão aguda a minha perplexidade que minha úlcera começou a doer.
Até que, subitamente, o Hélio fala e eu vi tudo: — eram os meus últimos artigos ou, melhor dizendo, as minhas últimas confissões. O nosso Hélio estava indignado porque eu falara de d. Hélder e do dr. Alceu. Segundo ele, eu não podia falar de ambos. "Nesse momento, não." Atônito, eu ouvia só. Em primeiro lugar, não me entrou na cabeça que exista um momento, próprio ou impróprio, para se dizer as verdades que cada qual traz no ventre. Nem lhe disse: — "Eu escrevo o que quiser, como quiser e quando quiser".
E não disse porque percebi a total esterilidade de qualquer debate em termos assim incendiários. De mais a mais, via diante de mim o anti-Hélio, a negação do Hélio. Poderia eu ter dito uma série de coisas, inclusive esta: — "Tudo, menos pensar como Moacyr Félix de Sousa!". Gesticular como Moacyr Félix de Sousa, ser como Moacyr Félix de Sousa. Jamais, jamais.
Em dado momento, digo uma dessas verdades objetivas, concretas, que não admitem o menor sofisma. E o meu amigo, o meu irmão, o meu anfitrião (rimou) troveja: — "Mentira! Mentira!". Fiz então a piada amarga: — "Hélio, se meu fuzilamento depender de você, já estou no muro".
Mas o que assombrou não foi o berreiro, mas o que se escondia ou, por outra, o que não se escondia por trás do berreiro. Eu via, ali, o Brasil, um novo Brasil, um Brasil jamais concebido. Minha vida autoral tem sido difícil. Ao longo de minha vida, cinco peças minhas foram interditadas; recentemente, caçaram a pauladas um romance meu. Nunca as esquerdas exalaram um suspiro em meu favor; nunca os nossos intelectuais libertários fizeram um manifesto contra as miseráveis interdições.
Digo isso e vou completar: — e não é possível que, agora, nos meus 55 anos, venham me interditar também os artigos sobre d. Hélder e dr. Alceu.
Mas falei de um novo Brasil. É só olhar. Está aí germinando. E esse Brasil será, para o amor, a Casa de Bernarda Alba. Disse Brasil e posso ampliar. O resto do mundo já é também, para o amor, a mesmíssima Casa de Bernarda Alba.
Mataram Luther King e por que o mataram?
Porque é preciso assassinar o gesto de amor.
[10/4/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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