De 30 para trás, cada jornal novo chamava-se O Tempo. E esse título obsessivo foi o túmulo de não sei quantos matutinos, vespertinos, semanários, mensários etc. etc. Eis o que eu queria contar: — o diretor era, se assim posso dizer, um aniversariante vocacional. Fazia anos de mês em mês. Os redatores promoviam uma vaquinha para o presente; havia discursos; e, depois, tínhamos uma mesa de mãe-benta, queijadinha, empada, pastel etc. etc.
Fiz a introdução acima para chegar ao José Lino Grünewald (belo nome para um jovem oficial afogado no afundamento do Bismarck). Somos amigos, amicíssimos, mas vejam vocês: — a despeito da nossa intimidade, só consigo chamá-lo, por extenso, como num cartão de visitas, de José Lino Grünewald. Eu diria ainda que ele é neopagão, poeta concreto, amigo de Ezra Pound.
Todos os dias, antes de sair de casa, o José Lino Grünewald vai ao guarda-roupa e apanha uma pose. Não uma pose qualquer, intranscendente. O neopagão não se pode comportar como um vago e convencional pai de família. A pose que ele veste, calça e abotoa é a de um cínico, de um amoral, de um perverso. Por outro lado, a soma dos dados já referidos — neopagão, poeta concreto e amigo de Ezra Pound — sugere não sei que abjeções inenarráveis.
Sem nada dizer, para não o humilhar, a verdade é que sempre o julguei um puro. Lembro-me de que, certa vez, chamei um amigo comum, o Francisco Pedro do Coutto, e disse-lhe: — "Quando vejo o José Lino Grünewald, tenho vontade de oferecer-lhe alpiste na mão".
E, com isso, queria dizer que o nosso Grünewald (belo nome naval) é um terno, um manso, portador de não sei quantas virtudes exemplares.
O Francisco Pedro do Coutto ouviu-me e concordou com a idéia do alpiste manual. Mas o que faltava, a mim e ao Coutto, era a evidência das virtudes que atribuíamos ao amigo. Em suma: — precisávamos de um fato sólido, de uma atitude concreta. E, de repente, tudo aconteceu. Imaginem vocês que almoçamos, ontem no Nino, eu, o José Lino Grünewald, o Francisco Pedro do Coutto, o Marcello Soares de Moura e o "Marinheiro Sueco".
E o que notei, ao primeiro olhar, foi a luminosidade escandalosa de José Lino Grünewald. Se ele falava, sentia-se nas suas palavras como que um halo intenso. Seu olhar vazava luz. Eis a pergunta que nos fazíamos, sem lhe achar resposta: — que teria acontecido? Ninguém sabia, só Deus.
Era um neopagão e, pois, um sujeito sem nenhum compromisso com a melancolia. Mas, certa vez, entrei no Correio da Manhã e o surpreendi arriado numa cadeira. Vendo-o pingar tristeza, fui perguntar-lhe: — "Mas que tristeza é essa?". Reagiu: — "Eu sou um dionisíaco". E não teve nem forças para acrescentar à sua tirada um necessário ponto de exclamação.
Citei o episódio para concluir: José Lino Grünewald é sujeito a cavas depressões como qualquer cristão.
E, no almoço, sua presença foi uma festa irresistível. Até que, de repente, anuncia: — "Vou fazer anos dia 13". Nenhum comentário. Deixa passar alguns minutos e insiste:
— "Vou fazer anos dia 13". E nos olhava, aflito, na esperança da reação, que tardava. Berrei então com vários dias de antecedência: — "Gentil aniversariante!". Ele, transfigurado, repetia: — "Pois é. Dia 13, dia 13". Juntou o dado histórico: — "Nasci numa sexta-feira 13".
Percebi tudo. Diante de nós, estava o brasileiro. Não mais o amigo de Ezra Pound, não mais o poeta concreto, não mais o neopagão. Num único lance, extrovertera toda uma inconfessa verdade interior, toda uma verdade negada. Ali estava o anticínico, o antiamoral, o antiperverso. Era apenas o aniversariante. E, no Brasil, um aniversário jamais é intranscendente.
Estamos longe do dia 13. Pois o José Lino Grünewald, com uma semana de antecedência, anda por aí, trêmulo de felicidade; e já providenciando os salgadinhos, as mães-bentas, os guaranás.
Ai de nós, e, ai de nós. Somos 80 milhões de aniversariantes, e, repito, 80 milhões com alma de aniversariantes. Passo agora a outro assunto. Se a emotividade do nosso Grünewald é tão autêntica, tão brasileira, não posso dizer o mesmo dos rapazes da Escola de Belas-Artes (não falo de todos, mas de um grupo). Vocês conhecem o caso.
Dias atrás, a cidade esbugalhou-se lendo no jornal o seguinte: — rapazes de belas-artes iam queimar, em praça pública, poemas de amor. Ora, o estudante brasileiro nunca foi "isso". De mais a mais, a solenidade projetada era uma cínica imitação nazista. A Alemanha de Hitler queimava livros; aqui, ia-se tocar fogo em poemas de amor e porque eram de amor.
No fim, os rapazes nem coragem tiveram de queimar. Simplesmente, rasgaram os poemas. Alguém dirá que os jovens tinham a atenuante da burrice. Não, não. A burrice que assassina livros não tem perdão. O melhor que se poderia talvez dizer é que os estudantes tinham a coragem cínica e suicida de afrontar toda uma cidade, toda uma população.
E, no entanto, vejam vocês: — os culpados distribuem agora uma circular em que gaguejam explicações e só faltam dizer: — "Nós não tivemos a menor intenção etc. etc.". Pior do que a atitude foi a explicação. Estarei disposto a admitir um canalha que trepe numa mesa e anuncie: — "Meus senhores e minhas senhoras, eu sou um canalha". Um canalha assim translúcido e assim confesso estaria salvo. O pior do canalha é que se quer passar por gentil-homem.
Goebbels, quando viu seu mundo perdido, matou a mulher, seis filhos e se matou. Não estava brincando. Eu aceitaria os tais rapazes de Belas-Artes se, ao menos, tivessem a coragem, a consciência, a fúria do próprio gesto. Se queriam queimar poemas, por que não o fizeram? À última hora, resolveram apenas rasgar. Já essa concessão foi uma vergonha.
Muito bem: — rasgaram. E só porque os jornais meteram o pau, soltam uma circular deprimente. Pareciam uns bárbaros, uns possessos, e me saem uns parnasianos.
Eis o que eu desejaria notar: — o que se procura no bem e no mal é a autenticidade. O José Lino Grünewald vai fazer anos dia 13. Como um brasileiro puro, está numa alegria honrada e profunda. Como já disse, todos nós somos, acima de tudo, aniversariantes.
José Lino Grünewald não trapaceia. E os jovens de belas-artes fazem trapaça. À primeira resistência, caem num pânico profundo. Com um pouquinho mais de pressão, acabam recitando o nosso J. G. de Araújo Jorge, com um piano ao fundo, tocando a Dalila.
[8/2/1968]
________________________________________________________________________A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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