Era
uma vez um moço ingênuo e feliz, vivendo numa cidadezinha ingênua e
feliz, perto de Belo Horizonte. O moço se chamava Francisco Cândido
Xavier e não desmentia o nome. A cidadezinha, Pedro Leopoldo, arrastava
suas horas de doce paz, entre as missas de domingo e a chegada do trem
da capital. Não se sabe como, numa noite ou num dia, Chico se mostrou
inquieto e desandou a escrever. Terminando, disse, apenas, à família
assustada:
- "Não fui eu. Alguém me empurrava a mão".
Desde esse dia ou essa noite, Chico Xavier perdeu o sossego e também o
de sua cidade. Turistas chegavam, atraídos pela fama do moço-profeta.
Pedro Leopoldo ia crescendo e Chico Xavier ia ficando importante. Nunca
mais teve paz. Nunca mais pode sair pela rua, sem ouvir um pedido de
saúde ou uma prece de gratidão. Se ao menos fôsse só isto. Era mais,
muito mais. Eram os curiosos do Rio, de São Paulo e de Belo Horizonte,
pedindo consultas ou detalhes pelo telefone interurbano. Era a legião de
repórteres em busca de novas mensagens. O representante da editôra
insistindo por outros livros. Os centros espíritas de todo o país
solicitando pormenores. Uma vida infernal, agitada, barulhenta sacudia o
pobre rapaz.
As luzes dos lampiões da cidadezinha nunca mais dormiram sem a presença
de um estrangeiro, rondando pelas ruas dantes tão sossegadas.
Fixaremos, precisamente, a violenta mudança de vida de Chico Xavier e da
cidade de Pedro Leopoldo. Não nos interessa, embora pareça estranho, o
medium Chico Xavier, mas a sua vida. Os seus trabalhos psicografados -
ou não psicografados - já foram assunto de milhares de histórias,
divulgadas desde 1935. Se são reais ou forjadas, decidam os cientistas.
Se ele é inocente ou culpado dirão os juízes. Se êle é casto, instruído,
bondoso, calmo, diremos nós. Porque não somos detetives do além.
Se os espíritos nos ouvem, eles sabem que não acreditamos em suas
mensagens, nem desacreditamos de suas virtudes literárias. A verdade é
que não temos a bravura indispensável para avançar sobre o terreno
pantanoso do outro mundo e analisar suas reais ou irreais comunicações
utilizando aparelhos de escuta com êste pálido e sensitivo Chico Cândido
Xavier.
Desde que saímos daqui, levávamos a inabalável determinação de fazer uma
reportagem sem complicações, apesar do assunto em sua natureza
extra-terrena mostrar-se absolutamente complicado. Assim é que o senhor,
amigo, chegará ao fim destas linhas sem obter a certeza que há tanto
tempo procura:
"É Chico Xavier um impostor ou não é?" E dirá: - "Não conseguiram
desvendar o mistério!" Sim, o mistério continuará por muito tempo.
Eternamente. E Chico Xavier morrerá, sem revelar o segredo de sua
extraordinária habilidade ao escrever de olhos fechados, se é mágico, ou
de seu fantástico virtuosismo, ao chamar, além das fronteiras da vida,
as almas dos imortais, fazendo-os recordar os velhos tempos da Academia.
Nossa intenção é mostrar o homem. Sem o espírito dentro de si, nos
momentos vulgares, Chico Xavier é adorável, cândido, maneiroso, humilde,
um anjo de criatura.
A frase de uma vizinha define melhor: - "Sabe, moço? O Chico é um amor".
Justamente dêsse tipo desconhecido, da parte anônima de sua devassada
vida, é que tratamos, na hora e meia que permanecemos em Pedro Leopoldo.
Para começar, diremos que Chico nunca teve uma namorada.
O tempo de viagem de Belo Horizonte a Pedro Leopoldo não vai além de
hora e meia. A meio caminho, encontramos a fazenda federal onde Chico
Xavier é dactilógrafo. O motorista não quer entrar. - "Aí, não. Até os
zebus são atuados". O diretor, Rômulo, está na horta, sòzinho. Ele nos
dará, talvez, esclarecimentos sôbre a vida de Chico e, quem sabe,
facilitará o encontro com o sensitivo. Ouve o pedido. Depois,
lentamente, abana a cabeça e o seu "não" é inflexível, desde o primeiro
minuto. Alega um milhão de coisas. Que Chico anda cansado e precisa
repousar. Um de nós lembra a possibilidade dele, diretor, dar umas
férias a Chico. - "O Chico funcionário nada tem a ver com o outro
Chico". Apresentadas as despedidas, êle adverte: - "Não creio que será
possível aos senhores um encontro com êle. Creio que vão esperar até
sexta-feira".
Voltamos a deslizar pela estrada, neste sábado negro. A cidade aparece
depois de uma curva. - "Onde fica a casa do Chico Xavier?" O menino
aponta a igreja. - "Ali, na rua da matriz. Ele mora com a família".
Encontraríamos, em várias oportunidades, a mesma designação do pessoal
do município: êle. Todos apontavam Chico, sem recorrer ao nome. Êle só
podia ser êle. - "Minha irmã foi curada por êle".
Ei-lo aqui, diante de nós. Veio a pé da fazenda e em sua companhia um
senhor do Rio, que algumas vêzes vem passar semanas com o medium. -
"Gosto de falar com êle. É um rapaz de cultura. Discute vários assuntos,
lê um pouco de inglês e de francês. Devora os livros com fúria.
Trouxe-lhe, há dias, "O homem, êsse desconhecido" e êle não gastou mais
de quatro horas e meia para ler o volume gordo. É um prazer para êle.
Seu único amor é o espiritismo".
Chico, perto de nós, não está ouvindo a palestra. Conversa com Jean
Manzon. Devemos esclarecer que não dissemos qual a organização
jornalística em que trabalhávamos. Queríamos ver se o espírito
adivinhava. Não houve oportunidade.
Chico parecer ser um bom sujeito. Suas ações, mesmo fora do terreno
religioso pròpriamente dito, são ações que o recomendam como alma pura e
de nobres sentimentos. Vão dizer, os espíritas, que é natural: todo o
espírita dever ser assim. Sei de um que não teve dúvida em abandonar a
espôsa, o lar, sete filhos, um dos quais doente do pulmão.
- "Na rua, entre seus irmãos de seita, - disse-me um dos filhos - êle se
mostrava esplêndido, generoso, cordial. Em casa, por pouco não botava
fogo nas camas, à noite. Parecia um verdadeiro demônio. Guardava até
alface no cofre-forte”.
Já o Chico não é assim. Sua nobreza de caráter principia em casa. Todos
os seus irmãos e irmãs louvam a sua generosa e invariável linha de
conduta, protegendo-os, hora a hora, dia a dia, através dos anos,
trabalhando como um mouro. Um de seus sobrinhos sofre de paralisia
infantil. Atirado a um berço, chora eternamente. Sòmente o Chico vai lá,
fazer companhia ao garôto, às vêzes uma noite inteira.
- Chico!
- Que é, meu senhor?
- Você lê muito?
- Não. Só revistas e jornais.
- O outro disse...
-Disse o quê.
- Nada.
Ele nos olha, surpreso, quando a pergunta, como um busca-pé, sai correndo pela sala:
- Você, não pensa em se casar, Chico?
- Eu, casar? (Dá uma gargalhada) - Claro que não.
- Não namora?
- Nunca.
- Por que?
- Não há razões. Não gosto. Tenho outras preocupações. Ora, eu namorando... Tinha graça...
- Chico...
- Que é?
- É verdade que o padre desafiou você para um duelo verbal?
- Ele disse pra eu ir à igreja discutir. Não é lugar próprio.
- Você gosta do padre, Chico?
E ele, o ingênuo e feliz Chico, respondeu:
- Ué, eu gosto do padre, mas ele não gosta de mim.
- Chico...
- Que é?
- Onde estão suas mensagens?
- Um irmão levou tudo, em vista de tantas complicações.
- Você vai ao Rio?
- Até agora, nada resolvemos. Possìvelmente, mandarei uma procuração.
Numa estante, os livros de Chico. Versos de Guerra Junqueiro, Tolstoi e
uma porção de autores mortos. Na sala do lado está a mesa onde êle
recebe as mensagens. Uma papelada branca, pronta para ser coberta pelas
mensagens do outro mundo. Sexta-feira houve mais uma sessão, desta vez
presidida pelo chefe do executivo municipal. Humberto de Campos não
compareceu mas o Emanuel, guia de Chico, lá estava. Quem é Emanuel? Um
romano que existiu na mesma época de Jesus e conta um mundo de coisas
interessantes sôbre a terra, naqueles tampos de há dois mil anos.
- Ele dita?
- Vou psicografando as mensagens. Há outros mediuns, como um
norte-americano, que ouve as vozes dos espíritos tão alto que os
presentes também escutam. Eu ouço. Os outros, que estão perto, não.
- Chico...
- Que é?
- Já teve oportunidade de falar com espírito de homens célebres?
- Homens célebres?
- Napoleão, para um exemplo, já falou consigo?
- Que eu saiba, não. Os assuntos bélicos não são freqüentes, nas
mensagens que recebo do além. Há seis anos, entretanto, meu guia Emanuel
previu os principais acontecimentos que hoje revolucionam a terra. Ele
disse: - "A vitória da fôrça é fictícia".
O cavalheiro do Rio acode:
- E o próprio Chico, meses antes, previu a queda da Itália. Ele disse,
categòricamente, que a Itália seria a primeira a cair. E a Itália foi a
primeira a cair.
Pedro Leopoldo é a cidadezinha de uma rua grande e uma porção de ruas
pequenas, convergindo para ela como servos humildes do rio principal. A
casa de Chico é uma das melhores do lugar. Três quartos, sala e cozinha.
O banheiro é lá fora, no fundo do quintal, ao lado do galinheiro.
Chico se levanta de madrugada e vai dar milho às galinhas. Depois, sua
irmã solteira faz o café, que êle toma com pão dormido, porque o padeiro
ainda não chegou. Apanha a pasta de documentos da fazenda federal, e
vai andando pela estrada, ainda coberta pela neblina. Volta para almoçar
às onze horas. O expediente se encerra às dezoito horas, mas Chico,
nestes dias de maior trabalho, faz serão.
Sua vida é frugal. - "Quero que compreendam o seguinte: não vivo das
mensagens de além-túmulo. Tenho necessidade de trabalhar para sustentar
minha família. Se quase me dedico inteiramente a receber as
comunicações, ainda se entende. O pior, entretanto, é a onda de gente
que vem do Rio, de São Paulo e de todos os Estados".
- Peregrinos?
- Mais ou menos. Não posso deixar de recebê-los, pois fico pensando que
vieram de longe e necessitam de consôlo. Isto leva tempo, toma tempo.
Como se não bastassem essas preocupações, o telefone interurbano não
pára dia e noite. - "Chico, Rio está chamando... Chico, Belo Horizonte
está chamando... Chico, São Paulo está chamando... Chico, Cachoeira está
chamando..." Evito atender, mesmo constrangido. Meu Deus! Eu não quero
nada, senão a paz dos tempos antigos, o silêncio de outrora. Quero ser
de novo aquêle Chico sossegado e tranqüilo que apenas se preocupava com
as coisas simples...
- Impossível a viagem de volta...
- Impossível? Não, não é impossível. Eu voltarei a ser aquêle sossegado Chico. Não tenha dúvida.
O repórter imagina, a essa altura, que ele acredita na possibilidade de
suas comunicações, com o além serem repentinamente suspensas. Vai
perguntar ao Chico, mas uma senhora de cor negra entra na sala,
carregando um benjamim de olhos assustados.
- "Trago para o senhor, Seu Chico..."
Ele segura com trinta mãos, cheio de cuidados, o bebê e o bebê faz um
berreiro dos diabos, agita as pernas, sacode as pernas dentro da prisão
dos braços de Chico. Ele sorri e devolve o menino à mãe.
- Meu sobrinho - explica o profeta Chico - é nervoso e fica dêste jeito. Sabe por que? Ele sofre de paralisia infantil.
- Não tratam dele?
- Não temos recursos. Já deixei claro que não recebo um centavo pelas
edições dos livros que me chegam do além. Assino um documento
autorizando a livraria da Federação Espírita Brasileira a editá-los e,
sòmente após ficarem impressos, recebo uns cinco ou dez exemplares, para
dar aos amigos.
Vamos atravessando a sala e entramos num dos quartos. Na parede,
prateleiras repletas de livros. Remédios à base de homeopatia, que Chico
recomenda. Não sei porque os espíritos manifestam estranha aversão pela
alopatia e suas drogas, receitando sempre combinações homeopáticas.
Perto dos vidros, um armário cheio de livros. As obras de guerra conta a
Santa Sé, assinadas por Guerra Junqueiro, ainda em vida. Os livros de
Flammarion e de Alan Kardec, mas não os psicografados, misturados com
volumes de propaganda anticlerical. Na parede, dependurado, um velho
pandeiro.
- Quem toca pandeiro nesta casa?
Chico sorri o sorriso beatífico e diz que não é ele.
- Alguns espíritos?
O sorriso beatífico desaparece.
- Os espíritos não tocam pandeiro.
Saímos para a rua, hoje, sábado movimentado. O povo de Pedro Leopoldo
passeia diante da Igreja que domina de forma esquisita a casa do humilde
psicógrafo que Clementino de Alencar, certo dia, foi roubar de sua vida
serena há dez anos. Hoje, Pedro Leopoldo é a Jerusalém do credo de
Kardec. Já tem hotel e telefone. O povo de lá, por estranho que possa
parecer a quem não conhece pessoalmente o nosso amigo Chico, revela
invariável amizade. Será orgulho pela celebridade que ele deu ao
município? Sim, porque antes de Chico, Pedro Leopoldo nem existia nos
mapas de Minas Gerais. Gostam dele, de seus modos, de sua cara asiática,
onde um dos olhos empalideceu sùbitamente, como um farol apagado em
pleno caminho da luz.
A cidade tem uns treze mil habitantes, contadas as aldeias próximas,
mas, espíritas, uns quatro ou cinco. Todos apreciam Chico, gregos e
troianos. Gostam, mas preferem não rezar o seu catecismo. Ele não se
importa. Não procura convencer ninguém à força de seu estranho e
discutido poder. Quando a carta precatória, intimando-o a depor, chegou a
Pedro Leopoldo, Chico leu devagarinho e abanou a cabeça. - "Eu não
posso mandar uma intimação judicial às almas!" E não deu mais
importância ao caso.
Até à volta, sereno Chico. De todas as pavorosas complicações, você é o
menos culpado. Parece uma caixa de fósforo num mar bravio. Uma velha
beata de Pedro Leopoldo me disse que isto é castigo: - "Castigo, sim,
nhô moço... Antão, êle telefona pro inferno e manda chamar os espíritos e
depois num quer se aborrecer?"
Já o trombonista de Pedro Leopoldo deve pensar diferente: - "Por que
será que o Chico só sabe receber mensagens escritas? Por que não recebe
músicas de Beethoven, de Chopin, de Carlos Gomes?"
Ele, o moço amável de Pedro Leopoldo, não dá maior atenção aos
comentários e vai levando como pode a sua vida. É pena, entretanto, que
êle não tenha as qualidades artísticas que vão além do terreno
literário. Se fôsse assim, Pedro Leopoldo teria, senhores, não apenas o
psicógrafo Chico, mas também o músico Chico, o pintor Chico, o profeta
Chico. Isto mesmo: o profeta Chico.
O Cruzeiro - 12 de agosto de 1975 - Texto de David Nasser e fotos de Jean Manzon.
Fonte: Memória Viva apresenta: O Cruzeiro.
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