Respeito o rato. O rato, ao contrário de outros roedores, é sempre um rato. Nada redime o rato. O rato não é redondinho, não é peludinho, não é um amor. O rato não tem vida útil. O rato é ruim. O rato é reles. O rato
rasteja. O rato repugna. O rato venderia a própria mãe na Praça Mauá, se
houvesse comprador.
Há, é verdade, o ratinho. Pior, o ratinho branco. Algumas
pessoas se enternecem com o ratinho. Crianças sonham em ter um ratinho branco
em casa e chamá-lo Gilberto. Mas o ratinho branco se tivesse algo a dizer sobre
o seu próprio destino, preferiria ser grande e cinzento e espalhar a cólera. O
camundongo Mickey não é um herói entre os ratos. E a ovelha branca dos ratos,
um traidor da raça.
Os ratos desprezam sol, água limpa, ar puro, essa literatura
toda. Os ratos, quando vão à praia, ficam no banheiro do posto. Os ratos odeiam
Debussy.
O Deus dos Ratos vive numa caverna do centro da Terra para
onde vão todas as latas de cerveja e as cascas de todas as coisas quando
preteiam. O Deus dos Ratos tem os olhos injetados de sangue e se alimenta de
lava e fósseis. Os ratos maus, quando morrem, vão para o seu lado. Os bons
criam asas e vão para o céu dos cachorrinhos, como castigo.
Respeito ao rato. Rato é rato. Rato assumiu. Rato não se
regenera. Rato não quer nem saber. Deus criou a Terra e tudo que nela habita,
inclusive a barata e o vendedor de enciclopédia, mas não se responsabiliza pelo
rato. De todos os animais que existem só o rato não foi criado junto com o
mundo. O rato se apresentou.
Quando a criação tiver cumprido o seu ciclo e só
sobrarem sobre a Terra o esqueleto de alguns shopping-centers, os diamantes e o
PFL os ratos tomarão posse. Sem qualquer solenidade. Sem rapapés e sem canapés.
Sem discursos, sem conjeturas sobre o seu papel no grande esquema cósmico. O
rato é o rei do resto.
O rato é a vida reduzida aos seus primeiros impulsos, e com
bigodinhos. Certa vez pegaram um ratão do esgoto, deram um banho e entregaram
para uma ótima, família criar. Queriam testar a influência de fatores
ambientais no desenvolvimento do rato. O ratão teve tudo do melhor, desde talco
Johnson até bolsas de estudo. Comia na mesa com a família. Estudou francês,
história da arte e flauta doce. Aprendeu os valores morais e as virtudes de um
orçamento equilibrado.
Finalmente, para completar a experiência, soltaram o ratão
na rua para ver que profissão ele escolheria. Talvez alguma coisa em finanças,
ou o Itamaraty. E a primeira coisa que o ratão fez foi entrar por um bueiro
para procurar a sua turma. Hoje ele ainda visita escondido a casa em que foi
criado. Mas não por motivos sentimentais. Desista do rato.
Não quer rever seu quarto com os pôsteres do Snoopy. Não vai
visitar a mãe abnegada que lhe contava o martírio dos santos. Vai porque sabe
onde guardam o queijo e qual é o olho ruim do gato.
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Luis Fernando Veríssimo - Jornal do Brasil - Primeiro Caderno / Opinião, 15/04/1990
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