Quando se conheceram ele foi franco:
— Eu sou muito bom, mas tenho um defeito.
— Qual?
Ele pareceu vacilar antes de responder:
— Sou ciumento.
E o era, de fato. Um ciumento sóbrio, que não dava a perceber, mas que se mordia por dentro. Por isso mesmo, por causa desse temperamento, é que não se casara nunca. Explicava aos amigos:
— “Eu me conheço. Sei o gênio que tenho”. Completara quarenta e cinco anos em solidão. Dir-se-ia um solteirão solícito e irremediável. Mas, um dia, foi a uma festa e lá conheceu Valquíria, jovem viúva de vinte e dois anos. As amigas da pequena cochichavam, entre si: “Vinte e dois, fora os que mamou”. Mas o fato é que aparentava essa idade ou pouco mais. E, conversa vai, conversa vem, houve um grande interesse, profundo e recíproco. Valquíria era baiana e morena, muito viva, muito alegre.
Dias depois, Antoniel dizia: “Se não fosse a diferença de idade...”. O fato é que estava apaixonado e, pela primeira vez na vida, Valquíria parecia animá-lo com olhares. Olhares, sorrisos e uma série de pequenas atenções, fúteis, mas significativas. E foi então que Antoniel revelou que era ciumento e perguntou se ela não tinha medo.
— Medo? — Estranhou. — Mas se eu até gosto!
— Sério?
— Natural!
Casaram-se seis meses depois. Pelo gosto de Antoniel, teria sido uma cerimônia muito simples e íntima. Confessava: “Sou contra exibição, contra carnaval”. Valquíria, porém, exigiu pompa, carro enfeitado com flores de laranjeira e festa em casa. Antoniel submeteu-se com bom humor: “Você é quem manda, meu anjo”.
O CASAL FELIZ
No fundo, porém, e sem nada dizer à esposa, Antoniel fazia comentário interior: “Diferença de idade é espeto”. Era esse o seu grande medo. Os dias, as semanas, os meses voavam, porém, sem que nenhuma desinteligência surgisse entre os dois.
Valquíria não se cansava de espalhar: “Eu sempre gostei de homem muito mais velho do que eu”. Na intimidade, com o marido, uma de suas distrações prediletas era procurar cabelos brancos na cabeça de Antoniel. Fazia essa pesquisa com verdadeiro deleite, e exclamava:
— Achei mais um!
Arrancava-o e fazia exibição, com uma alegria de menina, e ainda mexia com ele:
— Estás ficando velhinho!
O esposo ria também, com um fundo de melancolia. Fazia cálculos: “Quando Valquíria tiver trinta e cinco, eu terei cinqüenta e oito”. Essa aritmética de anos o amargurava. Continuava o seu exasperante monólogo interior: “O homem com cinqüenta e oito anos é uma múmia, não dá mais no couro. Ao passo que a mulher de trinta e cinco...”. Em casa com a mulher, fazia a blague: “Tenho ciúmes de ti”. E, como ele não conseguia evitar uma certa gravidade involuntária ao dizer isso, ela encarava:
— Eu te dou motivo?
Era obrigado a reconhecer:
— Não. Nunca.
A VIAGEM
Era verdade. Jamais Valquíria sugerira, com o seu comportamento, qualquer dúvida, qualquer suspeita. Ela dizia, numa comparação trivial, mas exata, que sua vida era “um livro aberto”. Só saía com o marido, a não ser quando, uma vez por semana, visitava sua mãe na cidade. Já, então, sozinha, porque as ocupações do marido o retinham no subúrbio. E, após a lua-de-mel, combinaram em termos definitivos:
— Você vai de manhã — dissera ele. — Passe o dia com sua mãe e volte de tarde.
E assim, quando Valquíria ia fazer a visita filial, o marido a deixava na estação, onde a esposa apanhava o trem elétrico e ele seguia para o trabalho. Durante três anos, viveram uma felicidade tranqüila e sempre igual. Antoniel podia dizer: —
“Foi um alto negócio o meu casamento”. E insistia: — “Um negocião”.
Até que chegou uma terça-feira, dia em que Valquíria, como fazia sempre, devia ir ver a mãe. Quando Antoniel acordou nessa manhã, já a mulher estava diante do espelho, pintando-se. Tomara um banho muito demorado, perfumara todo o corpo com água-de-colônia Flor de Maçã. E agora passava batom nos lábios. O marido mal desperto teve um bocejo e comentou:
— Você parece que vai a uma festa!
— Por quê?
Novo bocejo:
— Porque está se embonecando toda!
E passou. Quarenta minutos depois, ele já escovara os dentes, fizera a barba e tomara banho; puderam tomar café juntos. Quando a mulher se levantou, ele deixou escapar o galanteio:
— Você hoje está uma uva!
Pouco depois, ele a levava à estação.
Quando o trem encostou, Antoniel lembrou, antes que ela embarcasse:
— Dá lembranças à tua mãe!
A CATÁSTROFE
Partiu o trem e Antoniel ainda esperou que ele desaparecesse na primeira curva. Só então dirigiu-se para o emprego. Mais tarde, ele se lembraria da primeira pergunta que fez ao contí¬nuo ao entrar no escritório:
— Que dia é hoje?
— Quatro.
E Antoniel, apanhando umas cartas em cima da mesa, repetiu sem ter de quê: “4 de março de 1952”. Dir-se-ia que, sem saber, sem sentir, estava dando uma importância toda especial à data, como se ela devesse ficar marcada na sua vida, e para sempre. Quanto tempo se passou até que se recebesse a notícia? Talvez uns vinte minutos ou pouco mais. O fato é que con¬feria umas faturas quando ouviu uma voz (talvez do contínuo) dizendo a uma moça do escritório:
— “Parece que houve um desastre de trem”.
A mesma voz sublinhava: — “Um desastre horrível”.
Uma coisa se gravou, desde logo, no espírito de Antoniel; o desastre de trem.
Fosse de avião, de automóvel, de ônibus, ele não se levantaria, como se levantou, não iria interrogar o rapaz:
— Desastre de trem?
De manga de camisa, deixou o escritório. Estava ainda calmo, embora de uma calma intensa, uma calma apaixonada. Mas, no mais íntimo de si mesmo, havia certeza, definitiva, irrevogável certeza: o desastre ocorrera com o trem em que viajava Valquíria. Podia ser outro. A toda hora e em toda parte, milhares de trens deslizam nos trilhos do mundo, em todas as direções. Mas ele sabia, por uma intuição mágica e apavorante, que, entre todos, o destino escolhera aquele trem e não outro qualquer. Passou por um botequim e se deteve; o rádio de lá irradiava, justamente, as notícias do desastre. Foi recebendo o impacto de cada notícia: “Cem mortos”, “setenta e cinco mortos”, “oitenta mortos”. Uma coisa queria saber no tumulto das informações contraditórias. E soube que era, de fato, o trem de Nova Iguaçu.
O MARTÍRIO
Guardou para si o desespero. Podia recorrer a um amigo, a um parente ou, mesmo, tentar a simpatia e a solidariedade de um desconhecido. Mas fora arrancado da sua normalidade. Dir-se-ia que uma loucura prodigiosamente sóbria e lúcida se apoderava dele. Uma hora depois, estava no local do desastre. E ele próprio ia juntando do chão braços sangrando, pernas, cabeças. Houve um momento em que, olhando um morto decapitado, seu estômago se contraiu numa náusea violenta. Ao mesmo tempo, experimentava uma obsessão amarga.
E, então, ouviu que, atrás de si, alguém dizia: “Ali tem uma mulher sem cabeça”. Recuou então, fugiu, como um criminoso. Estava num tal estado mental que repetia para si mesmo: “É ela! É ela!”. Não discutiu, não verificou racionalmente a hipótese delirante. Foi para casa e enfiou-se lá, num medo atroz de que um amigo, um conhecido ou um parente trouxesse a verdade.
A MUTILADA
Anoitecia e ele não acendeu a luz. De vez em quando, do fundo de sua febre, pensava: “Eu acho que já estou louco”. E, súbito, escuta um rumor. Sim, não há dúvida: alguém introduz a chave na fechadura, alguém abre a porta. Aperta a cabeça en¬tre as mãos: “Quem seria?”. A criada, não, que tinha folga às terças-feiras. Ele se crispa e caminha, pé ante pé, ao encontro do recém-chegado. Este aperta o comutador e Antoniel tem uma espécie de uivo: “Você!”. Era Valquíria, sim, inteira, intacta, linda. Agarrou-se a ela, beijou-a na boca. Durante o beijo, porém, lembra-se do desastre.
Reflete num segundo, num décimo de segundo: “Ela devia estar morta ou mutilada”.
Durante três ou quatro minutos, sem uma palavra, ouviu a mulher contar que passara um dia agradabilíssimo com a mãe. Ele a interrompeu, com surdo sofrimento: “E a viagem? Não houve nada? Nenhum atraso de trem?”. Valquíria, sem nada perceber, e com alegre frivolidade, respondia: “Nada”.
Antoniel raciocinava: “Saltou antes do desastre”. E para quê? Segurou-a pelos dois braços, gritou-lhe a notícia do desastre: “O trem espatifou-se. Cem mortos!”.
Apavorada, ela começou a chorar, na sua pusilanimidade de adúltera. E, de fato, saltara antes do desastre; passara o dia longe de tudo e de todos, sem uma notícia do mundo. Voltara, ainda deliciada, de automóvel; e não vira ninguém, não sonhara com ninguém nem lera o jornal ou escutara o rádio. Às terças-feiras era o seu dia de amor. O marido gritava como um possesso:
— Tu devias estar sem braços, sem pernas! — E baixando a voz, arquejante: “Ou sem cabeça. Sem cabeça, como aquela mulher”.
Valquíria poderia ter gritado. Mas o medo a petrificava. Ele, sentado, exausto da própria cólera, repetia numa monotonia delirante: “Sem cabeça... sem cabeça...”.
Puxou-a pelo braço: “Vá dormir. Quero que durma”. Atirou-a na cama; deitada de bruços, ela ficou soluçando. Sentado na cama, Antoniel esperou que, vestida, de sapatos, dominada pelo cansaço, ela dormisse afinal. Então, num ar tétrico, foi ao quintal e apanhou a machadinha. Voltou, arquejando. De novo, no quarto, contemplou-a, com certo espanto e sem amor. E pensou na mulher sem cabeça, do trem.
Ergueu então a machadinha e desfechou-lhe um golpe só, na altura do pescoço.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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