Viviam como cão e gato. E eram brigas diárias e tremendas. Numa das vezes, foi até interessante: — Belchior deu um murro, de mão fechada, na testa de Elvira. A pequena virou por cima das cadeiras. Ergueu-se, ainda vesga da pancada e da queda. Mas não teve dúvidas maiores: — apanhou o aparelho de rádio e o varejou contra Belchior.
Este abaixou-se e o projétil acertou em cheio na cristaleira, com um estrondo inimaginável. A esta altura dos acontecimentos, os vizinhos em massa invadem a casa. A própria radiopatrulha encostava na porta. Subjugados, os cônjuges ainda esperneavam. Belchior dava arrancos frenéticos:
— Te arrebento! Te parto a cara!
E ela, feito uma fúria:
— Palhação! Cretino!
Para os vizinhos, a pancadaria recíproca e cotidiana era motivo de fascinação e, além disso, de náusea. Há cinco anos levavam essa vida e ninguém entendia que continuassem juntos. Ponderaram:
— Vocês não combinam. Por que não se separam?
Ambos concordavam:
— É o golpe! É o golpe!
Mas a separação vinha sendo adiada através das semanas, dos meses e dos anos. Dir-se-ia que, apesar das incompatibilidades, existia entre os dois um vínculo qualquer, misterioso e fatal. Por fim, tanto os parentes de Belchior como os de Elvira já rosnavam:
— Isso é falta de vergonha! De brio! No duro que é!
MARINA
Até que, um dia, Belchior conheceu Marina. Com esse nome de letra de Dorival Caymmi, era um amor de pequena, miúda e linda, doce de sentimentos e de modos e, de resto, educadíssima. Acostumado com Elvira, que era violenta, desbocada e neurastênica, adorou a suavidade de Marina. No segundo ou terceiro encontro, a menina pergunta: — “Você é casado?”. Ele hesita na resposta. Mas toma coragem e diz:
— Olha, meu anjo. Quero ser leal contigo. Não sou casado, mas vivo com uma pessoa assim, assim, separada do marido. Compreendeu?
— Compreendi.
E ele:
— Aliás, quero te dizer o seguinte: — essa pessoa é uma jararaca, uma lacraia, um escorpião de banheiro. Não gosta de mim, nem eu dela. Antes de te conhecer, eu já estava resolvido a chutá-la. E, agora que te conheço, mais do que nunca, naturalmente.
Marina deu-se por satisfeita. No dia seguinte, Elvira sai depois do almoço. Quando volta, ao cair da noite, vê escrita, na parede, a lápis, com a letra do marido, a seguinte mensagem: “VAI-TE PARA O DIABO QUE TE CARREGUE. ADEUS!”.
Elvira, que abominava o companheiro, devia achar o fato uma delícia. Em vez disso, porém, rolou no chão, espumando em ataques. Quando os vizinhos entraram de roldão, atraídos pela gritaria, ela apontou a parede: — “Olha o que aquele cachorro escreveu!”. Os vizinhos lêem e relêem atônitos. Elvira soluça:
— Mas ele há de voltar! — E repetia com uma certeza fanática: — Há de voltar!
FELICIDADE
Consumada a separação, a felicidade de Belchior foi uma dessas coisas convulsas e patéticas. Como primeira medida, bateu o telefone para Marina:
— Estou livre! Livre!
Do outro lado da linha, a pequena chorava:
— Deus te abençoe!
De noite, Belchior, ainda delirante, reuniu os amigos no bar. Bebeu toda a noite. Fez, aos berros, as confidências mais comprometedoras. Em dado momento, com o olho injetado e a boca torcida, esbravejava, numa reminiscência de leitura:
— A consciência não existe! A única consciência que eu reconheço é o medo da polícia! — Alarga o colarinho, afrouxa o laço da gravata e uiva: — Foi o medo da polícia que me impediu de matar Elvira!
Voltou para casa carregado e vomitando nos amigos.
O ANJO
Lera na adolescência um romance ordinaríssimo, que se chamava Anjo de redenção. E agora, vendo Marina e sua meiguice consoladora, fez sua tentativa literária ao dizer: — “Tu és o meu anjo de redenção!”. Ela baixou os olhos, arrepiada, e disse:
— Eu faço o que posso!
Apresentou a menina aos pais. E, depois, veio sôfrego saber a opinião dos velhos. A mãe beija-o na testa:
— Uma simpatia!
E o pai, grave:
— Dessa gostei!
Mais quinze dias e houve o pedido oficial. Na tarde em que ficaram noivos, Belchior leva a pequena para a varanda; dramatiza: — “Quando te conheci, estava na seguinte situação: ou matava ou me matava. Tu me salvaste a vida”.
O IDÍLIO
Pareciam feitos um para o outro. De quinze em quinze minutos, Belchior descobria uma nova afinidade com a menina. De resto, coincidiam em tudo, de uma maneira impressionante. Gostavam dos mesmos filmes, das mesmas músicas, das mesmas paisagens e dos mesmos doces. Ele, que fora tão infeliz na sua anterior experiência sentimental, a ponto de quebrar a cabeça da amante com um rádio de pilha — agora parecia navegar num mar ou, por outra, num lago azul. Viviam sem rixas, sem bate-bocas, numa calma talvez parecida com o tédio. Pouco a pouco, porém, sem que Belchior percebesse, uma certa melancolia se insinuou na sua alma. A noiva acabou estranhando:
— Estou te achando meio assim, triste.
— Eu?
— Você. Anda meio esquisito. Que é que há?
Protestou, rubro:
— Esquisito por quê? Pelo contrário. Nunca me senti tão bem. — Pigarreia e exagera: — “Eu sou o sujeito mais feliz do mundo. Tenho você, quer dizer, tenho tudo”.
A OUTRA
E, de fato, Belchior era ou devia ser o sujeito mais feliz do mundo. Amava e era amado, livrara-se de uma mulher histérica e desequilibrada, que lhe arruinava a vida, a alma, o fígado. Pois bem. Apesar disso, ou por isso mesmo, deu para andar deprimido, insatisfeito. Explicava vagamente: — “Deve ser esgotamento”. Nas proximidades do casamento, encontrou-se com um velho amigo, o Peçanha. Este o chamou de lado:
— A Elvira anda jurando que você volta! Diz que quer ser mico de circo se você não voltar!
Pulou, malcriadíssimo:
— Ela é besta! Não quero ver essa cara nem pintada! Isola!
Estaria certa? Estaria errada? Ninguém podia saber. Havia, porém, quem julgasse ver, no caso Belchior e Elvira, um desses sombrios mistérios do sexo, sem explicação possível.
NOITE DE NÚPCIAS
Finalmente, há o casamento. Na igreja, quando Marina passou a caminho do altar, houve um deslumbramento. Na sua graça frágil e intensa, era uma imagem realmente inesquecível. Após a cerimônia, voltam os dois para a casa dos pais de Marina, onde passariam a residir. Às onze horas, despede-se o último convidado; os velhos, depois de abençoarem o casal, recolhem-se. Marina, transfigurada, sussurra: “Espera um pouco que eu te chamo, Belchior. Espera”. Nesse instante, bate o telefone e Belchior, surpreso e inquieto, vai atender. Era Elvira. Está dizendo:
— Olha! Eu te espero. A chave está debaixo do tapetinho. Vem, agora!
E desligou. Belchior encostou-se à parede, com a vista turva e as pernas bambas. Houve, nele, uma brusca e violenta nostalgia da mulher que era o seu ódio e seu desejo. Naquele justo momento Marina entreabriu a porta e avisou:
— Pode vir, meu bem!
Ele, porém, não pensava mais na noiva. Dir-se-ia um magnetizado. Sem rumor, desliza pela escada, rente à parede. Meia hora depois, desce de um táxi na porta da antiga residência. Insinua a mão debaixo do capacho, apanha a chave. Entra. Em pé, no meio da escada, com o quimono rosa em cima da camisola, os pés nas sandálias de arminho, Elvira o espera. Não há uma palavra entre os dois. Belchior enlaça a pequena e, com raiva e gana, a beija muitas vezes. Então, Elvira ri, pendendo a cabeça: — “Meu!”.
E foi esse orgulho que a perdeu. As mãos de Belchior descem e se fecham sobre o pescoço macio. Aperta até o fim, sem saber que a estrangulava, sem saber que a estava matando. Depois, abraçado ao cadáver, diz arquejante:
— Não te enterrarei nunca! Ficarás comigo aqui!
E pousa a cabeça sobre o coração que não bate mais.
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Nelson Rodrigues. A vida como ela é… São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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