Dizem que a solidão é a maior doença social do século, afirmativa que me parece fugir à verdade, de vez que o ser humano sempre conviveu com este problema durante toda a História da humanidade.
0 cristianismo, tem embalado o sonho religioso de tanta gente através dos séculos, ensina que Deus fez Adão à sua imagem e semelhança e, depois de lhe dar o sopro da vida, constatou que o primeiro homem vivia muito solitário no luxuriante Paraíso Terrestre, desconhecendo qualquer outro seu semelhante, vendo apenas sua imagem refletida na tranqüila superfície das águas, sem ter com quem falar. Foi quando Deus, aproveitando o momento em que Adão dormia profundamente, tirou-lhe uma costela e dela fez Eva, pondo termo ao problema de sua solidão, dando origem a outros, próprios de quem tem vida em comum.
Acredito, entretanto, que sendo a solidão a maior doença social dos séculos, o problema tenha se agigantado nos dias em que vivemos, em conseqüência da densidade demográfica dos grandes centros urbanos, responsável pela diminuição do relacionamento social entre as pessoas, o que não acontece nas pequenas cidades, onde a vida social é muito mais ampla, por força de as pessoas se conhecerem melhor.
Nas megalópolis, o número de pessoas que não se conhecem cresce assustadoramente, fazendo com que o relacionamento social se restrinja aos membros da mesma família, aos vizinhos ou aos que habitam os edifícios de apartamentos. No mais, as pessoas apenas se conhecem no local de trabalho, gerando, assim, uma dualidade sócio-familiar. Acredito até mesmo que a ausência das cadeiras nas calçadas - hábito de alguns séculos e que ainda hoje persiste nas pequenas cidades - tenha a ver com o enclausuramento a que estamos condenados.
Acontece, também, que o isolamento das pessoas nos grandes centros e até mesmo nas cidades menores, possa ser uma decorrência da televisão que muito tem a ver com a diminuição da vida em sociedade, escravizando as pessoas através de suas telinhas mágicas. Outra causa do isolamento social é o clima de insegurança nas ruas - palco cotidiano de assaltos e de toda a sorte de violência -fazendo com que as pessoas não saiam tanto de casa, como acontecia antigamente.
As sorveterias (as caixinhas de sorvetes, de diversos sabores, são adquiridas nos supermercados), os cinemas (os filmes que chegam pela televisão ou por intermédio das locadoras), os barzinhos (as cervejas estão nas geladeiras), não levam mais as pessoas à rua, com exceção dos adolescentes, onde a insegurança é um fato e o orçamento doméstico da classe média não comporta despesas extraordinárias.
A violência, a insegurança, o medo, o cansaço após uma longa semana de trabalho, o orçamento doméstico apertado, a televisão, a moradia em apartamento, estão fazendo com que o homem, nas grandes cidades, fique cada vez mais em casa, cada vez mais só, convivendo com sua solidão. Uma solidão que adoece as pessoas, social e organicamente, fazendo-as irritadiças, provocando discussões, entre os casais, capazes de solapar até mesmo o equilíbrio da vida conjugal, criando, às vezes, uma outro forma de solidão ainda mais triste, que é a solidão a dois.
A solidão é, assim, uma doença social que faz maior número de vítimas entre as pessoas da terceira idade. Os adolescentes, os jovens, que mal começaram a descobrir os caminhos da vida, com exceção dos introspectivos e dos sonhadores, não se deixam dominar pela solidão. É que eles ainda estão sentindo as primeiras chamas de esperança, arquitetam seus projetos impulsionados pela aventura, têm uma meta a atingir.
Os da terceira idade, pelo contrário, já percorreram muitos caminhos, tiveram suas decepções, sofreram adversidades, acordaram de todos os sonhos, rotinaram. a existência e se encontram no crepúsculo da vida, ruminando e vivendo um passado remoto, povoado de saudades, esperando apenas seu ponto final. E tudo acontece ainda com mais impetuosidade quando as pessoas vestem a roupa dos anos vividos e se entregam, de corpo e espírito, aos problemas da velhice. Mas se os velhos tiverem o espírito jovem e encararem a velhice como um estágio natural, essa velhice tomará outro rumo, mudará de feição.
A solidão dos velhos tem as suas causas, entre as quais a da família. Se o terceiridoso tiver uma família numerosa - uns cinco filhos, por exemplo - sempre ficarão um ou dois deles em sua companhia e a casa não ficará tão vazia. Se tiver uma família de apenas dois filhos, corre o perigo de ficar só quando casarem ou forem morar em outra cidade. E se morrer um dos cônjuges a situação se complica ainda mais porque o sobrevivente ficará em companhia de seus achaques, impossibilitado de viver sozinho, e a solução será morar em um abrigo, onde se sentirá ainda mais só, imprestável, abandonado, desprezado. E, na opinião de Montherlant, "os velhos morrem (mais depressa, acrescento) porque já não são mais amados".
A solidão e a velhice constituem um problema muito complexo, merecedor de um estudo mais aprofundado. A minha experiência de vida, com meus setenta e seis anos bem vividos, me dá o direito de saber alguma coisa sobre o assunto. Com o espírito jovem, pai de sete filhos, com algumas noras e netos, com a casa sempre cheia aos sábados e domingos, tenho tido essa alegria, duas vezes por semana, de festejar a vida. E, de mãos postas, agradecer a Deus por me ter dado vivê-Ia, ao lado da companheira de tantos anos.
Será que não existe nenhum remédio, nenhuma coisa que se possa fazer para, pelo menos, diminuir ou melhorar os efeitos da solidão? Ter um ou vários hobbies não deixa de ser uma alternativa bem interessante de evitar os cismares, preenchendo os dias longos. Colecionar caixas de fósforo, lápis de propaganda comercial, latinhas de cerveja, garrafas ou rótulos de cachaça, ouvir música, fotografar os assuntos que ainda não foram fotografados, explorar as ondas curtas no rádio, fazer radioarnadorismo e ter outros hobbies bem ajudam os terceiridosos a fugir da solidão.
No Rio de Janeiro, existiu, ou ainda existe, o Clube dos Solitários, onde as pessoas que se sentem sós, se encontram para trocar idéias, dançar, começar romances.
0 folclore da velhice é muito rico. Provérbios, ditos populares, a dança dos velhos nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, o serra-velho durante a Páscoa, a poesia popular em verso e o anedotário, tendo a velhice como tema, são de uma riqueza sem par. 0 povo costuma dizer:
- Velho que se cura, cem anos dura.
- Queda de velho não levanta poeira.
- Carreira de velho é choto.
- Não há moço doente, nem velho são.
- Velho não se senta sem dizer "Ui!" e nem se levanta sem dizer "Ai!".
- Velho? Só vinho, perfume, dinheiro e viúva rica.
- Velho é como panela, rede e balaio: só se acaba pelos fundos.
Diz do velho, muito velho, que ele é "mais velho do que a Sé de Braga", que "já pendurou as chuteiras", "que está mijando nos pés", "que é bananeira que já deu cacho", "que está de cachimbo apagado", "que é mais velho do que a posição de cagar de cócoras".
Há velhos que não gostam de ser chamados de velhos e dizem que "velho é o tempo", que "velho é a estrada". Dizem que, simplesmente não são velhos, mas apenas usados.
Em matéria de amor, os velhos não foram esquecidos: "Velho apaixonado com pouco tempo está casado", "Velho com amor, jardim com flor" ou "Velho com amor, morte em redor". A sabedoria popular chega a ser cruel quando se refere à vida sexual dos velhos: "Ao velho recém-casado, reza-lhe por finado", "Velho casado com moça de poucos anos, como temos", "Não se deve acreditar em três coisas: lágrimas de viúva, arrufos de namorados e arranco de velho"e "0 que acaba com velho e vento pelas costas, chuva na cabeça e mulher pela frente".
Dizem os moços: Quem gosta de velho é rede, reumatismo e filha do INPS", "Papagaio velho não aprende a falar". Os velhos revidam: "Pote velho é que esfria a água", "Coco velho é que dá azeite", "A cavalo velho, capim novo", "Em panela velha é que se faz comida gostosa". Já o anedotário dos velhos é terrivelmente impróprio para menores. Escolhi estas três anedotas, as mais leves que me lembrei:
0 velho tomou o café da manhã, pegou o jornal e começou a ler. De repente, gritou:
- Mulher, vem cá!...
- 0 que é João?
- Veja este anúncio: "Mulher solitária e rica precisa de homem para manter relações sexuais, pagando R$ 500,00 por cada coito". Tá vendo, mulher! Agora vou ganhar dinheiro, já estou empregado.
A mulher olhou o velho marido e retrucou:
- Não está vendo, João, que você não pode sustentar a família com apenas R$ 500,00 por mês?
Depois de cinqüenta anos de casados, marido e mulher voltaram à Europa para comemorar a data. Procuraram, em Paris, o mesmo hotel, o mesmo apartamento e, no dia certo, pediram o jantar no quarto. Luz de vela, champanhe do bom e a velha vestiu a camisola do dia, guardada com todo o carinho.
- Maridinho eu estou me lembrando da nossa lua de mel aqui. Você foi tão carinhoso... Me acariciou, me beijou. Eu até já estou sentindo um calor danado dentro de mim, como na primeira noite.
- Calor coisa nenhuma, mulher. É que seus peitos caíram dentro da sopa.
0 coronel Ambrósio andava pela casa dos 70 anos quando enviuvou. Até aí tudo normal, natural até. Mas aconteceu o pior: o coronel Ambrósio, homem de muitas posses, se apaixonou por uma menina de dezoito anos, bonita, bem feita e que, com sua faceirice e dengos deixou o coronel gamado. A família entrou em pânico. Todos os filhos conversaram com o velho, dizendo das desvantagens do casamento, que a moça só podia estar interessada no dinheiro dele, etc. Ninguém conseguiu demover o coronel dos seus propósitos de casar com a menina. 0 velho estava enfeitiçado, mesmo. Os filhos do coronel mandaram chamar o irmão mais velho que morava na capital e era médico, prá ver se ele conseguia resolver o assunto, acabando com o casamento. 0 filho mais velho chegou e, logo no outro dia, foi direto ao assunto:
- Estou sabendo que o senhor vai casar, é verdade?
- É meu filho. A Nazinha é moça de muitas prendas e eu não posso viver sem ninguém perto de mim.
- Mas, pai, o senhor não vê que ela, com dezoito anos, vai casar com os seus setenta anos por causa do dinheiro?
- Tem nada não, meu filho. 0 dinheiro é muito e dá prá todos. E eu darei uns cobres a ela e um pedaço de terra. Não vai fazer falta a vocês, que ficarão com toda a fortuna, que é grande.
0 filho mais velho, o médico resolveu dar a última cartada:
- Mas, pai um casamento desse pode ser fatal, mortal.
- Tem nada não, filho. Se ela morrer eu caso com outra.
Aí está a solidão, a velhice e seu folclore. Teria muito mais o que contar não fora o espaço ser pequeno. E aqui fica um apelo: amem os velhos, que já geraram vidas, trabalharam, caçaram quimeras, lutaram, travaram batalhas e tudo fizeram para que os jovens existissem e fossem felizes. E fossem os velhos do amanhã.
Fonte: Boletim da Comissão Catarinense de Folclore.
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