sábado, 24 de setembro de 2011

O cinzeiro azul

O homem, para justificar a si mesmo, ou para justificar a mulher, inventou a máxima: a mulher só engana o homem por causa dele.

Que seja ou que não seja. Não estamos aqui para desbaratinar os casos de amor dos outros.

O fato é que estes dois estavam brigados. Ela tinha enveredado aí pelo lado alegre da vida, enfiando o braço noutro braço, em passeios e namoros que um dia vieram a ser do conhecimento dele. Brigaram. Lágrimas de parte a parte: as dela de arrependimento, as dele de sentimento.

Mas não quis perdoar. Um recente samba de Jorge Veiga diz assim: "O que você fez está feito, não me sinto no direito de lhe conceder perdão". O samba é bom e não sabemos se ele o conhecia. Sabemos — isto sim — que agiu como está no samba. E cada um foi para seu lado, depois de alguns anos lado a lado nas coisas de amor.

Passou a primeira semana, e ele firme. Não telefonava, não passava nos lugares onde ela pudesse estar, evitava falar no assunto mesmo com os amigos mais íntimos. Passou um mês e ele legal. Fazia força para convencer a si mesmo que já estava passando a fase aguda da dor de cotovelo, cujo único remédio é o tempo... e o tempo, irmãos, é remédio de laboratório homeopático.

Uma tarde o telefone tocou. Era ela. Fingimento de parte a parte e vem a pergunta que ele não queria ouvir: "Você sente muito a minha falta?" Engoliu em seco e não mentiu:

— Vamos que eu tivesse ganho, quando tinha menos 10 anos, um cinzeirinho azul. Durante todo esse tempo, o cinzeirinho azul esteve na minha mesa de cabeceira. Agora o cinzeirinho azul quebrou. Eu vou sentir falta dele. Pois, se até com um objeto a gente se acostuma, como é que eu não vou sentir a falta de quem era o meu amor?

Ela gostou de ouvir aquilo e, timidamente, como as mulheres fazem sempre, propôs a reconciliação. Ele agüentou firme, explicando que, depois de partido, o cinzeirinho azul estava acabado. Não adiantava colar, porque já não seria a mesma coisa.

Foi então que ela disse: "Mas vamos que você sentisse falta do cinzeiro porque ele sumiu, alguém roubou, ou qualquer coisa assim. Agora por uma coincidência qualquer, você torna a encontrar o cinzeirinho azul".

...e o bestalhão voltou.
 _________________________________________________________________________

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

2 comentários:

  1. hoje em dia, tanto o homem quanto a mulher são de caráter iguais, o que acaba deixando a mulher num nível mais baixo na sociedade, pois o homem desde que o mundo é mundo comete erros, mas as desculpas é porque é homem ... e a mulher acabou-se por perder a moral e dignidade.

    ResponderExcluir
  2. O que é ou quem é esse maldito cinzeiro. No meio do texto "...vamos que eu tivesse ganho quando tinha 10 anos..." passa um sinônimo de maturidade ou malandragem, como se o homem fosse uma pessoa inocente e tola. Quando o "... cinzeirinho azul quebrou..." temos uma visão de confiança perdida dentro do homem, no mesmo sentido quando ele diz que "... não adianta colar porque já não seria a mesma coisa." (não haveria como retomar o relacionamento). Mas aí no final do texto temos a impressão de que esse cinzeiro é a mulher "...vamos que vc sentisse falta do cinzeiro..."
    Teríamos um cinzeiro triplamente qualificado >>
    que texto simples e ao mesmo tempo complicado <<
    Viviane Gazquez
    vivianegazquez@hotmail.com

    ResponderExcluir