Na volta do cemitério, ele falou para a família:
— Bem. Quero que vocês saibam o seguinte: — minha mulher morreu e eu também vou morrer.
Houve em torno um espanto mudo. Os parentes entreolharam-se. O pai do viúvo ergueu-se:
— Calma, meu filho, calma!
Jair virou-se, violento:
— Calma porque a mulher é minha e não sua! Pois fique sabendo, meu pai: — eu não tenho calma, não quero ter calma e só não me mato agora mesmo, já, sabe por quê?
Uma tia solteirona atalhou:
— Tenha fé em Deus!
Por um momento, Jair esteve para soltar um palavrão. Dominou-se, porém. Numa serenidade intensa, fremente, completou:
— Não me mato imediatamente porque quero fazer o mausoléu de minha mulher. Aliás, dela e meu. Quero dois túmulos, lado a lado. E vocês já sabem: — desejo ser enterrado com Dalila, perceberam?
Ninguém disse nada, e vamos e venhamos: — é muito difícil argumentar contra o desespero. E quando Jair passou, imerso na sua viuvez, a caminho do andar superior, os presentes o acompanharam com o olhar, esmagados de tanta dor. Ele subiu lentamente a escada e foi trancar-se no quarto.
O INCONSOLÁVEL
Na ausência do rapaz, um tio arrisca: — “Será que ele se mata?”. O pai apanha um cigarro e dá a sua opinião:
— Não creio. Cão que ladra não morde.
Ponderam:
— Às vezes, morde.
E o velho, que era um descrente de tudo e de todos:
— O que sei é o seguinte: — a dor de um viúvo ou de uma viúva não costuma durar mais de quarenta e oito horas.
— Não exageremos!
O pai, porém, insistia, polêmico:
— Sim, senhor, perfeitamente! — E referiu um caso concreto, que todos conheciam: — Por exemplo: — a nossa vizinha do lado. O marido foi enterrado de manhã e, de tarde, ela estava no portão, chupando Chicabon. Isso é dor que se apresente?
O episódio do sorvete calou fundo na sala. Sentindo o sucesso, o velho carregou no otimismo:
— Vamos dar tempo ao tempo. Isso passa. — E concluiu, profundo: — Tudo passa.
A DOR
Quinze dias depois, porém, o viúvo estava tão desesperado como no primeiro momento. Não se podia dar um passo naquela casa que não se esbarrasse, que não se tropeçasse num retrato, numa lembrança da morta. E mais: — sabia-se, por indiscrição da arrumadeira, que Jair dormia, todas as noites, com vestidos, camisolas, pijamas da esposa. Certa vez, foi até interessante: — ele meteu a mão no bolso e tirou, de lá, sem querer, uma calcinha da falecida. O próprio pai já não sabia o que dizer, o que pensar. Começou a rosnar que o filho estava “le-lé”, “tantã”. Com seu implacável senso comum, chegou a cogitar de internação. Tiveram que chamá-lo à ordem:
— Internação para saudade? Para viuvez? Sossega o periquito!
— Mas qualquer dia ele mete uma bala na cabeça, ora pipocas!
Alguém lembrou o que Jair dissera, isto é, que só se mataria quando estivessem concluídas as obras do mausoléu. Diante desse filho que entupia os bolsos com as calcinhas da falecida, o ancião gemia: — “Por que que uma grande dor é sempre ridícula?”. Desesperava-o que Jair passasse os dias no cemitério, agarrado a um túmulo, chorando como no primeiro dia. E o pior é que a viuvez do filho era altamente declamatória. De volta do cemitério, ele vinha para casa deblaterar:
— Não se esquece a melhor mulher do mundo! Eu desafio que alguma mulher chegue aos pés da minha!
Dalila era muito mais amada morta do que em vida. O próprio Jair acabou sentindo um certo orgulho, uma certa vaidade, dessa dor que não arrefecia. E continuava fiel à idéia do suicídio. Batia sempre na mesma tecla: — não acreditava nos viúvos e nas viúvas que sobrevivem. E quando, certa vez, o pai quis argumentar contra esse suicídio datado, ele cortou:
— Meu pai, não adianta: — o senhor já perdeu seu filho. Sou, praticamente, um defunto.
E coisa curiosa: — fosse por auto-sugestão ou por motivo de saúde, o fato é que a pele de Jair adquiria um tom esverdeado de cadáver.
O OUTRO
Então, a família começou a procurar, desesperadamente, uma maneira de salvá-lo. Foi quando um primo longe de Jair teve uma idéia. Chamou o pai do rapaz e começou:
— Olha aqui, o negócio é o seguinte: — só há um meio de curar Jair.
— Qual?
O outro baixa a voz:
— Destruindo o amor que o prende à falecida.
O velho esbugalha os olhos: — “Mas como? Com que roupa? É impossível!”. Seguro de si, o primo encosta o cigarro no cinzeiro:
— “Nada é impossível!”. Pigarreia e continua:
— Digamos que se descobrisse, de repente, que a falecida teve um amante.
O outro pulou:
— Mas Dalila era honestíssima, séria pra chuchu!
Ri o primo:
— Que era séria, sei eu. Mas até aí morreu o Neves. — Novo pigarro e insinua: — Nenhuma mulher, viva ou morta, está livre de uma boa calúnia. Podíamos inventar, não podíamos, um amante de araque? E quem pode provar o contrário?
Pálido, o pai balbucia:
— Continua.
E o outro:
— Ora, uma vez convencido de que Dalila foi uma vigarista, Jair perderia, automaticamente, a paixão. Compreendeu o golpe?
Custou a responder:
— Compreendi.
A REVELAÇÃO
O achado da calúnia era tão persuasivo que, depois de uns escrúpulos frouxos, a família aprovou a idéia. Disseram, a título de escusa: — “Os fins justificam os meios”. Uma manhã, enquanto prosseguiam no cemitério as obras do mausoléu, convocam o viúvo. O pai, nervoso, começa perguntando: — “Você tem certeza que sua esposa merecia a sua dor?”.
Jair percebeu, no ar, a insinuação. Aperta o pai, que, em dado momento, não tem outro remédio senão desfechar o golpe: — “Embora seja muito desagradável falar de uma morta, a verdade é que Dalila teve um amante!”.
O viúvo recua: — “Que amante? Como amante?”. E não queria entender. Então, possuído pela calúnia, cada um, ali, confirmou que sabia do amante, sabia da infidelidade. Atônito, ele perguntava: — “Mas quem era ele? Quero o nome! Quero a identidade!”. A verdade é que ninguém tinha pensado no detalhe.
Fora de si, Jair agarrou o pai pelos dois braços e o sacudia:
— Eu estou disposto a acreditar no amante. Mas quero saber quem foi. Quem é? Digam! Pelo amor de Deus, digam!
O pai refugiou-se na desculpa pusilânime: — “Diz-se o milagre, mas não o nome do santo!”. Então, o filho fez, na frente de todos, promessas delirantes: — “Vocês pensam que eu vou matar? Fazer e acontecer? Juro que não! Não tocarei num cabelo do cara!”. E berrava, no meio da sala:
— Se me disserem quem foi, eu não me matarei! Preciso desse homem para viver! Ele será meu amigo, meu único amigo, para sempre amigo! Digam!
Pausa. Espera o nome. E como ninguém fala, ele dá um pulo para trás e puxa o revólver que, desde a morte da mulher, jamais o abandonava. Encosta o cano na fronte: — “Ou vocês dizem o nome ou me mato, agora mesmo!”. Então, o pai vira-se na direção do primo e o aponta:
— Ele!
Apavorado, o primo não sabe onde se meter. Jair pousa o revólver em cima do piano. Aproxima-se do outro, lentamente. Súbito, estaca e abre os braços para o céu:
— Graças por ter encontrado quem possa falar de Dalila, comigo, de igual para igual!
Agarra o primo em pânico: — “Diz para esses cabeças-de-bagre se ela foi ou não a melhor mulher do mundo?”. E chorava no ombro do pobre-diabo, como se este fosse, realmente, seu irmão, seu sócio, seu companheiro em viuvez.
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A
coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson
Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
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