Ao ilustre amigo Dr. Robert Lehmann Nitsche.
Lycaon, filho de Pelasgo, rei da Arcádia, tentou matar Júpiter, seu hóspede duma noite. Foi transformado em lobo. Para conjurar tamanho castigo, os Árcades construíram um templo a Júpiter-Lyceo (do grego, Lycos, lobo). Na Grécia, vindo dessa origem mítica, registrou-se gravemente o fenômeno. Desaparecendo a forma de um suplício, surgiu a licantropia. Era uma moléstia.
Durante o mês de Fevereiro, os
licantropos pululavam. Heródoto assela-os em sua história. Em Roma, Pan
era Luperco (do latim, Lupus, lobo). Daí as Lupercaes, festas votivas em
Fevereiro, justamente comemoração solene dos Mortos entre os gregos...
... e a multiplicação de
licantropos. Acca Laurentia, a loba, foi deificada. Em todas as estátuas
e medalhas, signos e camafeus, era representada sob a forma lupina.
Para Pomponius Mela, os Neuros
podiam transmudar-se em lobos. Os Neuros habitavam a Scythia, e, segundo
Aristeus Proconnesius, Isigonus Nicaeiensis, Ctesias, Onescritus,
Polystephanus e Hegesias, citados por Aulo Gello, era um país de
assombros. Os Scythas eram antropófagos.
Nas regiões vizinhas, moravam
raças espantosas, desde os Arismaspes, que tinham um só olho no meio da
testa como ciclopes, até os outros homens que possuíam os calcanhares às
avessas, gênese dos Matuyus que o Padre Simão de Vasconcellos devia
encontrar no Brasil. Vem a série dos firmes credores do licantropo.
Foram Isocrates, Varrão (em Santo Agostinho), Heródoto, Pompinius Mela,
Petrônio, e Plínio, o Antigo. Petrônio descreve detalhadamente a
licantropia.
Pedem a Niceros, conviva do
faustoso Trimalcion, uma narrativa de aventuras. Historia o interrogado
que, tendo de ir a Capua, convidou um soldado valente, seu velho
camarada. Era noite de lua. Atravessando um cemitério, o soldado
conjurou as estrelas, despiu-se, pôs urina nas roupas e tornou-se lobo,
uivando e correndo pelo mato. Niceros não pode recolher as roupas do
companheiro porque haviam tomado a forma de pedras. Atemorizado, fugiu
para casa de Melissa de Tarento.
Esta contou-lhe o assalto de um
grande lobo ao redil e subsequente luta com um fâmulo que ferira o
animal no pescoço. No outro dia, Niceros encontrou o amigo nas mãos dum
médico – tinha um profundo ferimento na nuca. Era um Versipelio, no
dizer de Plínio.
A origem da lenda é naturalmente
religiosa e comum ao Egito, aos Vedas, à Caldéia, às regiões da Ásia e
África. Com o Império Romano espalhou-se a crendice, amalgamando outras,
adaptando-se aos novos ambientes. É a repetição do caso de domínio
contraproducente. O país vencedor é quase sempre influído pelo
derrotado. Depois de Grécia vencida é que os Romanos conheceram a
Hellade. Veio o Versipelio para Portugal com a conquista. Deve ter aí
tomado o nome que hoje usa.
A licantropia deve ser de origem
ética. Vingança de um ser divino em quem desobedeceu as leis sagradas
de hospedagem. Os eternos viajantes gregos podiam ter posto curso a esta
história antecipando pelo terror um melhor tratamento nas paragens
visitadas. As narrativas de Platão, Ovídio e Pausanias sobre Licaon,
tornaram-no tipo de mau hospedador. A justiça vinda do alto Olimpo caía
sobre o crime de um príncipe na pessoa de um deus.
No Brasil, as complicadas
teogonias selvagens exilam o versipelio. Criaram o Capelobo, animal
fantástico, invulnerável, velocíssimo e perseguidor dos índios e
caçadores ousados. O Capelobo é criado pelo ramo racial dos mamelucos.
Não pode ser autóctone como o Anhangá e o Caipora. Para algumas tribos é
o velho que já esqueceu a idade. Noutras, é um animal como o
Tapuaiauara, misto de paquiderme e felino, com patas de anta e orelhas
de cão.
O licantropo grego, o versipelio
latino, o loup-garou de França, o vou-kadlak dos Eslavos, o verfölfe
alemão, o capelobo ameríndio, estão absolutamente irmanados com o
Lobisomem sertanejo.
Em Portugal o lobisomem é o
filho que nasce depois de uma série de sete filhas. Em geral fica
pálido, doente, tristonho, cheio de manias, quase sempre geófago
contumaz. Encontrando o lugar onde os animais se espolinham, o
predestinado se espoja e “vira” lobisomem. Isto às terças ou
sextas-feiras. Sob a pele do fenômeno, terá de correr as sete partidas
do mundo, sete adros, sete vilas, sete outeiros, sete encruzilhadas. Ao
terceiro cantar do galo retoma a forma humana. É de notar o uso de um
número que a astrológica caldaica tornou fatídico – o 7. Para
desencantá-lo é mister o signo de Salomão, a estrela de dois triângulos.
Vendo-a, perde o veso das correrias. Podem matá-lo também. Invulnerável
a tiro, é sensível a qualquer ferro aguçado. Quem manchar-se no sangue
do lobisomem, herda o hábito.
Para o Sertão o lobisomem está
fixado em dois modos: como castigo e como moléstia. A reminiscência de
Licaon é patente no primeiro caso. Júpiter, pai dos homens, castigou um
filho espúrio, fazendo-o lobo. O mau filho é candidato a lobisomem. O
“doente” é pessoa apontada comumente. Magro, descarnado, vacilante, de
olhos apagados e face decaída, o licantropo sertanejo é um tipo vulgar
de opipalo, uma vítima da verminose, mais filho do helminto que de
Belzebu. Em casos especiais, o malefício se opera determinado por uma
lei de punição suprema.
É o raríssimo incesto. O
incestuoso ou seu descendente mais próximo, será lobisomem. Semelha à
manceba do vigário que é a “Burrinha de Padre”, trotando pelos
descampados, se, por funesto acaso o pároco esqueceu de amaldiçoá-la
antes de celebrar missa.
O cerimonial para ser-se
lobisomem é simples. Na noite da quinta para a sexta-feira, antes das 11
horas, o futuro loup-garou matuto dirige-se ao local onde os animais se
espojam. Quase sempre na encruzilhada existe o capim machucado e
revolto pelos irracionais preguiçando. Depois de despir-se, põe a roupa
pelo avesso, dá sete nós na camisa e rola da esquerda para a direita,
reunindo os pés e as mãos. Daí em diante, como na história de Petrônio,
lupus factus est, ululare coepit, et in silvas fugit.
Até o terceiro cantar do galo, o
lobisomem galopa e rincha, berra e foge, espalhando terror. Ataca os
caminhantes solitários para sugar-lhes o sangue. Vendo duas pessoas,
esconde-se. Picando-o à faca, “quebram” o fado por aquela noite. É
vulnerável a tiro. Some-se ouvindo o canto do galo. O galo, em todas as
histórias e lendas sertanejas, é o libertador do medo, o vencedor das
trevas, augúrio do Sol, arauto do dia longínquo. Não há fantasma ou alma
penada que resista a seu canto sonoro. Curioso é lembrar-se que
Apolônio de Tiana evocou a sombra de Aquiles e esta desapareceu após o
galo ter cantado. Quando a coruja, o mocho e o corvo servem de emblemas
às bruxarias e maldades, o galo é o símbolo da alegria, das forças
sadias e votadas ao Bem. É ele, ancestralmente, o inimigo do Demônio.
Ferunt, vagantes Daemonas
Laetos tenebris noctium,
Gallo canente exterritos
Sparsim temere, et cedere.
Cantava o poeta Prudêncio, já
cristão e amável louvador do ilustre galináceo. De um antiquíssimo canto
que fazia parte da liturgia na diocese de Salisbury, havia estrofes
cheias de amizade e carinho, onde se destacava esta afirmativa:
Gallo canante spes redit.
Acresce aos atributos divinos do
Galo, além de fazer reaparecer a esperança, a honra de ter sido a
primeira ave a anunciar o nascimento de Jesus. Cristo nasceu! É o canto
dos galos na noite de Natal.
Com o estridor sonoro de seu grito, o lobisomem grune e rosna, mas, receia e foge.
Todos aqueles que anotaram a
vida sertaneja, dedicam largas páginas ao Lobisomem. Henry Koster
registrou-o em sua viagem de Recife a Camocim. Gustavo Barroso, um dos
verdadeiros conhecedores do Sertão, ilustre e consciente folclorista,
narra uma história ouvida por mim vezes diversas.
Um casal ia visitar um amigo que
morava distante. Atravessando uma capoeira, o marido pretextou ligeira
necessidade e meteu-se pelo mato. Daí a minutos a mulher era assaltada
por um animal furioso. Defendendo-se, sacudiu o xale de lã vermelha na
goela da fera e fugiu, trepando numa árvore. O bicho sumiu-se. No outro
dia, a mulher, reparando na dentadura do marido que dormia ressupino,
encontrou nos dentes, as felpas do xale vermelho: o marido era o
lobisomem. O monstro não respeita rezas nem invocações aos Santos.
Antonio Ferreira, morador em Estivas, teve uma luta com um lobisomem
durante duas horas. Gritou pelo Céu inteiro, tentando ferir o bicho à
faca. Pela madrugada, semiexausto, pode segurar um galho de aroeira e
salvar-se. A velha Victoria Maria, pernoitando numa casinha entre Timbó e
Curral de Baixo, município de Ceará-Mirim, teve ocasião de assistir um
encantamento, pondo fim ao bruxedo com um pequeno golpe de machadinha no
braço do pseudo fantasma.
Uma das mais extraordinárias
histórias é a do vaqueiro José Francisco de Paula na Fazenda São Tomé,
em Santa Cruz, largamente conhecida pelos comboieiros e traficantes de
algodão e sal. Sob o alpendrado, rara seria a noite em que, cinco ou
seis vaqueiros e mascateantes, não dormissem, contando, à ceia,
aventuras e viagens.
Numa noite em que estava o casal
sozinho, ouviu-se o latido desenfreado dos grandes cães de caça que
José Francisco possuía. Não prestou atenção. Em cada semana, da quinta
para sexta-feira, os cães “acuavam” barulhosamente. Finalmente o
vaqueiro entreabriu, altas horas, a janela e viu passar, seguido pelos
cachorros enfurecidos, um animal corpulento, meio-baixo, roncando e
batendo insistentemente as largas orelhas de perro.
Daí a dias, um comboio pernoitou
na latada. Narraram-se assombramentos e caçadas. José Francisco
historiou o caso. Um do grupo, adoidado e façanheiro, bateu na coronha
do bacamarte, jurando morte ao monstrengo assustador. Veio a treva. Ao
nascer da lua, pelas proximidades da meia-noite, ouviram o tonitroar dos
cães e a marcha resfolegada de um bicho correndo. Aperraram as armas.
De gatilho alçado, esperaram. De repente o abantesma surgiu. Estalaram
as espoletas e uma descarga relampejou num estrondo pelo pátio deserto e
mudo. O animal, num ronquejo horrendo, caiu pela barranca do rio já
seco no verão escaldante que se iniciava.
Correram para lá. Era um
lobisomem. Ferido de morte, não se desanimalizara inteiramente. Da
cintura para cima, era um homem moreno, forte, de nariz aprumado, mãos
delicadas, cabeleira castanha, encaracolada, um desses mestiços de
família, criados na ociosidade das vilas sertanejas: da cintura para
baixo, semelhava um porco, sarrudo, cheio de lama e de garranchos, os
cascos firmemente cravados na areia frouxa do rio. Enterraram-no ali
mesmo. José Francisco de Paula mudou-se para Estivas onde morreu anos
depois, sem nunca esquecer a noite da caçada impressionante e trágica.
Francisco Teixeira, Seo Nô, por
muito tempo nosso guarda num sítio, reproduziu, inconscientemente, a
narrativa de Niceros, no Satiricon petroniano. Trabalhando num engenho
de açúcar, Nô passava o serão levando em descrédito as aparições e
bruxarias comentadas pelos companheiros. Um deles, João Severino, meio
zangado, declarou-lhe que, em breve tempo, se arrependeria de zombar dos
lobisomens. Os colegas do eito foram explicando ao Nô que ele andasse
armado e não fosse muito longe das casas.
Uma noite atravessando uma
varjota, Nô encontrou-se com um bezerro grande, todo negro e peludo que
se precipitou num salto sobre ele. Nô bateu mão da faca e lutou deveras.
Sentindo-se cansado, sacudiu uma facada bem dirigida, apanhando o
agressor no pescoço. Este, grunhindo, correu. Pela manhã, não vendo João
Severino entre os habituais cortadores de cana, inquiriu e veio a saber
que ele estava doente. Correndo até a casa, encontrou-o de nuca
amarrada e bebendo mezinhas. Estava com um corte no pescoço. Se Nô
soubesse latim teria citado Petrônio: intellexi illum versipellem esse.
Os milheiros de histórias de
lobisomens são quase iguais. É sempre o animal atacando ou fugindo com
uma picadela de mais. O antídoto é o “sino saimão”, “sino salamão” ou
sinal de Salomão, a cruz feita em dois triângulos, com a palha santa no
domingo de Ramos. Põe-na no lugar dos encantamentos. Vendo-a, o
versipelio nunca mais beiradeja córregos e bufa, aos trancos, por
descampados e várzeas. Se esconderem a roupa, ficará sempiternamente
lobisomem.
Acredito que essas superstições,
de cunho rigidamente moral, tenham sido postas em circulação pelos
letrados, como elemento de ordem ética, equilibrando para uma melhor
conduta, a gente semi-bárbara do Sertão.
O medo ao sobrenatural, o
castigo após a morte, a vastidão das penas, o tempo sem fim do remorso,
são, através das idades, bases naturais das religiões. Seria inútil
mostrar de como a Igreja Católica soube inteligentemente popularizar os
seus dogmas, usando lendas cultuadas desde a mais remota ancianidade.
Os Neuros de Heródoto e
Pomponius Mela, os homens-serpentes dos Vedas, são necessariamente
utilizados como persuasão e terror. Aqui já se não dá o auto-milagre dos
Neuros. O lobisomem é castigo, uma penalidade infamante e arriscada a
morte certa. Por isso, talvez, o elemento letrado, indicando maior
tendência à moralização dos costumes, não obstou a propagação da
crendice, ajudando-a, antes, porque ela expressava um meio idêntico, com
maior eficácia. Dá-se como ultrajante e hórrida, sorte a deste animal
vagabundo semipoderoso e semifrágil. Para atemorizar o sertanejo se fez
mister uma pena, prolongada após a morte. Sem temer a lei, zombando da
força e habituado às batalhas dos elementos, o sertanejo, sub-raça que
se adaptara a todos os climas, necessitava desta ambiação mítica,
pressão à sua luxúria porejante, à sua avareza latente, ao seu
temperamento irrequieto, dentro de aparente insensibilidade.
Estranho, misterioso, surgindo
do intricado negro dos juremais, saltando, inopinado, da sombra escura
das faveleiras e cardeiros esguios, correndo pelo ondulado relvoso das
pradarias, o lobisomem, pecado vivo, dentro da grande noite
supersticiosa, mantém sempre acesa a perene formação de assombros.
Agora que estamos tentando
possuir uma literatura brasileira, sem o estreito regionalismo e pondo
na Arte o mundo poliforme das esperanças nativas, o folclore sertanejo
terá um papel eficiente e decisivo fixando a fisionomia espiritual do
Povo, nas suas manifestações de crença, atitude ancestralmente
definidora da moral coletiva em face duma geração que interroga e
analisa.
É o coração humano, inquieto e palpitando em presença do susto, do sobrenatural e do inexplicável.
Sob a jaqueta de lã do Bretão ou
na gibona de couro do vaqueiro, o pavor é idêntico, vendo, debaixo das
oiticicas imensas ou na penumbra dos menhirs batidos pelo luar, a figura
ligeira e negra, impressionadora e terrível do loup-garou, do
lobisomem, capelobo dos índios, erudito versipellio, herança atávica do
medo na alma triste dos homens...
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Fonte: Revista do Brasil, São Paulo, Ano VIII, n. 94 p. 129-133, out. 1923.
Acervo do Instituto Câmara Cascudo – Ludovicus
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