Durante vários dias, andou perguntando a um e outro:
— Vocês viram o Percival?
— Qual deles?
O Mendes tinha de descrever o tipo físico do homem.
— Tu não conheces? Moreno, pintoso, bonitão, parecido com o César Romero.
A semelhança indicada era o bastante. Diziam: “Ah, sim! Conheço! Mas não aparece aqui há muito tempo”. Mendes agradecia e continuava a procurar. Em toda a parte, porém, a resposta era a mesma: ninguém vira o Percival. Ele coçava a cabeça: “Será o Benedito?”. Deixou em cada boteco, em cada bilhar, recados angustiosos. E já desanimava quando, certo dia, dá de cara com o Meireles, na Cinelândia. Pergunta-lhe: “Tens visto a besta do Percival?”. O outro sacode os braços até as nuvens:
— O Percival? Mas que coincidência! Acabei de largar o Percival agorinha mesmo! E olha: não faz um minuto!
— No duro?
E o Meireles:
— Batata! Está trabalhando numa casa de móveis assim, assim, na Lapa. Foi pra lá neste instante!
Mendes despede-se, afobado:
— Então, bye, bye.
EX-EMPRESÁRIO
Mendes fora, na altura de 1930, 32, 34, empresário pugilista. Teve dinheiro, automóvel e amantes. Mas o boxe começou a cair e a desinteressar o público; as bilheterias acusavam uma queda vertical. E, de repente, ocorre o inevitável, ou seja, a falência espetacular do Mendes. Sem um níquel no bolso, barba crescida, o terno sebento, andando de cima para baixo, de baixo para cima, fugindo dos credores. Nunca mais fez negócio que se aproveitasse; vivia de biscates ou, então, “mordendo” os amigos, os conhecidos. Atualmente velho, roto, desdentado, ia de mal a pior quando se lembrou do Percival. Decide de si para si: “Esse cretino pode me salvar a pátria!”. Começou a procurá-lo e eis que o localiza, na Lapa, numa casa de móveis.
Espera que Percival saia do emprego. Na calçada, gruda-se a ele. Começa perguntando: “Quanto ganhas nesse troço?”. O belo Percival, espantado, informa: “Mil e Oitocentos cruzeiros”. Em cima do meio-fio, Mendes esbraveja:
— E não tens vergonha? Responde! Não tens vergonha de ganhar esse ordenado pra um sujeito, como tu, que tem uma mina? — Espeta o dedo no peito do rapaz:— Ou não percebeste ainda que tens uma mina?
— Eu? E qual?
Mendes pisca o olho e baixa a voz:
— O teu físico! Percebeste? Teu físico é uma mina! Basta saber tirar partido. É barbada!
Interessado, embora sem entender, Percival indaga:
— Mas como? Explica esse negócio direito!
O PLANO
Entraram num café para conversar sobre a idéia que o próprio Mendes reputava “genial, luminosa”. O empresário trata de ser o mais claro possível:
— Um sujeito como tu, pintosão como tu, pode se quiser fazer a própria independência, tirar o pé da miséria. Sabe como? Simples como água: alugando os próprios carinhos. Digamos que uma dona te veja e goste de ti. Muito bem. Ela te paga pela tua companhia, paga para estar contigo, paga pelos teus beijos. Percebeste?
Apavorado, Percival ergue-se em câmara lenta:
— Que piada é essa? Tu me achas com cara de tomar dinheiro? E a polícia? Isso dá cana!
O outro protesta, incisivo:
— Cana uma ova! Olha aqui, seu zebu: dá ou não dá. Depende da mulher, Ouviste? Se for uma desclassificada, sim. Mas se for uma pequena séria, direitíssima, de bem, não dá coisíssima nenhuma.
Percival nega ainda:
— Nunca! Que idéia você faz de mim? Prefiro ficar com o meu salário, quieto no meu canto. Não me meto nessas embrulhadas.
PERSISTÊNCIA
Dir-se-ia que o caso estava encerrado. Mas o Mendes era astuto e obstinado. Não largou mais o amigo. E apelava, ora para argumentos, ora para a descompostura. Exortava-o: — “Deixa de ser burro, rapaz! Aproveita!”. E dizia:
— Já tenho a pequena. Cheia de gaita e deslumbrada por ti. Te dá um Cadillac, de cara!
Percival perguntava:
— E me conhece?
Resposta:
— Claro. Já te viu várias vezes! Não tem pai, não tem mãe, não tem irmã. É só, absolutamente só, não tem ninguém para dar palpites!
Percival, pálido apesar de tudo, impressionado, resistia: “Não, não e não!”. Até que, certa tarde, manifestou uma curiosidade que era, em si mesma, uma fraqueza: — “Boa?”. Mendes pigarreia, desconcertado:
— Simpática. Mas olha, você não toca no assunto de dinheiro. Eu trato disso e, depois de receber, dou a tua parte e fico com a minha.
E, pouco a pouco, com outras conversas, Percival inteirou-se de novos detalhes. A fulana tinha prédios, avenidas e o diabo. Como jamais tivera namorado, vivia numa fome de amor inenarrável. Percival quis saber: “Que idade tem?”. O outro coça a cabeça:
— Aparenta uns trinta e poucos.
CONHECIMENTO
Onde e quando descobrira o empresário aquela mulher solitária, triste e ricaça? Era o que ninguém sabia. É impossível que o Percival tivesse resistido sempre, e de repente... O fato é que brigou com o chefe e saiu do emprego. Mendes tirou partido da situação; puxa-o pelo braço: — “Hoje vamos lá de qualquer maneira. Te apresento e pronto!”. Desta vez, apavorado com a demissão, Percival capitulou. Ao cair da noite, os dois nervosíssimos, bateu na porta da dama. No caminho, Mendes adverte: “A fulana não é, fisicamente, grande coisa. Agüenta o galho”.
Chamava-se Olívia. E vivia numa solidão que era um mistério. Onde estariam seus parentes? Era a pergunta que o próprio Mendes fazia de si para si, sem achar resposta. Mas o Percival, quando foi apresentado, caiu das nuvens. Há feias e feias. A fealdade de d. Olívia era absolutamente indescritível. Uma carinha de preá, um nariz adunco, uns dentes saltados, de coelho, e os olhos de um estrabismo violento. Quando ela passava na rua, cochichavam: “Lá vem a caolha!”. Mendes falara de trinta e poucos anos. E a verdade é que, dando de barato, d. Olívia teria talvez seus cinqüenta e quebrados.
Houve um momento em que, erguendo-se, ela pediu licença a Percival e retirou-se com o Mendes para uma sala contígua. Percival fica só então, levanta-se e vai à janela. Podia ser curto de inteligência, como assoalhava o Mendes. Era, porém, um bom, um manso, um compassivo.
Diante de d. Olívia experimentava duas reações: primeiro, de repulsa, de horror; e depois, de pena, de uma pena que lhe dava vontade de chorar, de gritar, de espernear.
PROPOSTA
Na outra sala, d. Olívia pôs-se a chorar diante do atônito ex-empresário de boxe. Torce e destorce as mãos, num desespero selvagem:
— Eu nunca fui beijada, nunca ninguém me beijou. — Pausa e continua, entrecortada: — Homem nenhum quis nada comigo. Eu sei que não sou bonita... Mas eu queria uma coisa só... — Aumentado o estrabismo, estende as mãos: — Eu daria tudo para ter um beijo, só um beijo do seu amigo, oh, meu Deus!
Mendes foi rápido e brutal:
— Daria um Cadillac?
E ela:
— Daria.
Mendes se arremessa para a outra sala. Deslumbrado, agarra Percival. Contou-lhe o sonho da solteirona, que ninguém jamais a beijara. O empresário trinca os dentes: “Negócio de maluco, da China! Um Cadillac por um beijo! Que tal?”. Percival parece hesitar: por fim, empurrado, decide-se. Vai encontrar de joelhos, e mais estrábica do que nunca, a solteirona. Ela se levanta ao vê-lo. Então, o rapaz, sem uma palavra, segura aquela mulher e beija-a na boca, longamente, como no cinema. Depois, arquejante, a larga. D. Olívia pôs-se a soluçar, numa felicidade aterradora. Finalmente dominando-se, diz:
— Você merece tudo! Tudo!
Vira-se, vai a um móvel apanhar o talão de cheques e enche um deles. Depois vem entregar o papel ao belo Percival. Ele pega aquilo, lê o preço do Cadillac e rasga, metodicamente, o cheque fabuloso. Inclina-se diante dela:
— A senhora não me deve nada. Não me deve um tostão. Passar bem.
Depois que Percival saiu, acompanhado do curioso Mendes, a solteirona, como que magnetizada, vai para a janela. Era noite e, no alto, uma estrela brilhou mais claro.
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A
coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson
Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
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