terça-feira, 12 de julho de 2011

Liberdade Liberdade!


Andando nu pelo apartamento já gozava a sen­sação de liberdade tantas vezes  sonhada. Entrou no ba­nheiro e meteu a mão dentro da banheira, sentindo a tem­peratura da água. Estava tépida, acariciante como espuma de sabonete em anúncio de televisão.

Fechou as torneiras e foi se enfiando na banheira devagarinho, prolongando o prazer. A água, por causa daquela lei de Arquimedes que muitos pensam chamar-se "Eureka", começou a transbor­dar e a molhar o chão.

Dane-se! Que tudo se molhasse à vontade; estava sozinho em sua casa, podia fazer o que quisesse.

Puxa vida! Solteiro outra vez!

Sorriu satisfeito e ficou olhando o próprio umbigo.

Onde estaria aquela chata agora? Bem... não teve tem­po de ir muito longe. Provavelmente na casa da mãe, aquela velha cretina. Laurinha, nas brigas que tiveram ao lon­go daqueles seis anos de casamento, sempre ia para a casa da mãe.

Pouco importava para onde tinha ido. Ah... esta ti­nha sido a briga definitiva. Enfim, só! O homem, quando casa, tem duas alegrias: na primeira noite, em companhia da mulher, quando murmura carinhoso "enfim, sós!", e na primeira noite depois que a mulher se mandou, quan­do murmura aliviado "enfim, só!".

Achou o pensamento um bocado filosófico e voltou a se interessar pelo umbigo, testemunha muda, constante e próxima de sua vida conjugai:

— Quanta chateação, hem, compadre? — perguntou ele ao umbigo, falando alto, assustando-se com o som da própria voz. Epa, assim, não! Falando sozinho iam pensar para que era maluco. Ora, mas não havia mais ninguém ali para achar qualquer coisa a seu respeito. Se houvesse alguém já tinha dado o teco. E lembrou-se que nunca demorava assim no banho como estava demorando agora, porque a voz esganiçada de Laurinha viria lá do corredor, pra chatear:

— Vai ficar morando no banheiro, vai?

De repente começou a fazer planos. Laurinha tinha se mandado de vez — isto era ponto pacífico. Arrumaria o apartamento a seu modo. Contrataria um mordomo; sem­pre achou o detalhe bacanérrimo. Um cara que cuidasse de suas roupas, seus compromissos sociais, que nem na­quele filme do Jack Lemmon, que o mordomo se interes­sa até pela comida que o patrão comia.

O umbigo estava estufado, olha só... andava comen­do demais. Também, com aquela vida chata que estava levando, emagrecer pra quê? Mas contrataria um cara pri­meiro time, desses que se orgulham de servir um patrão alinhado, como ele. Em primeiro lugar, mandaria fazer uns ternos novos, organizaria um barzinho na varanda, cheio de bossinhas, para receber os amigos. Os amigos e as amigas. Garotas bem desinibidas, indo à cozinha pre­parar canapés. Ia ser o máximo.

Saiu do banho e imaginou-se sendo enrolado, pela solicitude do mordomo, numa tremenda toalha felpuda de cores berrantes. Atravessou o corredor molhando o tapete. Azar o dele... e entrou no quarto. A cama poderia ser a mesma, com outro espaldar de cabeceira, madeira trabalhada, antigão... móvel antigão. O armário de Lauri­nha saindo dali, ia ficar espaço para uma escrivaninha legalzinha, com muitos objetos masculinos espalhados: ca­chimbo, binóculo, essas bossas.

Acabou de se enxugar e atirou a toalha em cima da cama. Num reflexo condicionado, já ia apanhar a toalha e pendurar, como fazia sempre, mas conteve-se. Precisava ir se acostumando a ser servido. Breve teria empregados para fazer as coisas chatas que Laurinha o obrigava a fa­zer.

Essa noite jantaria fora: num desses restaurantes so­fisticados. Talvez depois desse uma esticada pelos bares, flertar com uma grã-fina qualquer. Quem sabe, trazê-la até ali para... claro, era preciso começar vida nova. A vida que ele merecia.

Caminhou sorrindo para a sala e estava servindo um drinque, assobiando "These foolish things", quando a cam­painha tocou. Outra coisa que iria mudar: aquela campai­nha estridente, antipática, por uma dessas que fazem "bim bom".

Acabou de servir a bebida e fechou a garrafa de cris­tal. A campainha tocou outra vez. Caminhou tranqüilo para ver quem era. Laurinha, com voz choramingosa, de olhar baixo e toda encolhidinha, perguntou:

- Posso entrar, Neném?

É... quem nasce pra cavalo vai morrer pastando. Que entrasse logo. E pensou: - Pelo menos, durante as próxi­mas 24 horas, ela não será tão chata.
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Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

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