quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Júnior, o Discípulo dos Deuses


O mais digno herdeiro da camisa de Nílton Santos também amava atacar. Fez da lateral esquerda o caminho mais fácil para os gols. Ágil, toque de bola perfeito, especialista em cruzamentos e cobranças de falta, Júnior acabou, por força de toda sua categoria, passando ao meio-de-campo, com a camisa 10 que foi de Zico. No Flamengo, ganhou seus principais títulos: seis Campeonatos Cariocas, quatro Brasileiros, uma Libertadores e um Mundial (ambos em 1981). Já no meio-campo e jogando pelo Torino, foi escolhido o melhor jogador da temporada italiana de 1984/85.

Júnior (Leovegildo Lins da Gama Júnior), craque do futebol de campo e de areia e comentarista esportivo, nasceu em João Pessoa, PB, em 29 de junho de 1954. Como jogador era ambidestro e polivalente. A facilidade para jogar bem com as duas pernas o permitiu atuar como volante, lateral-direito e esquerdo, e meio-campista. Jogador de extrema técnica e rara habilidade, tinha grande visão de jogo, precisão nos passes, e era ótimo cobrador de faltas e escanteios (tendo feito inclusive alguns gols olímpicos).

Fez fama atuando pelo Flamengo, onde jogou 865 partidas, sendo o jogador que mais vezes vestiu a camisa rubro-negra. Em sua primeira passagem, ele ficou no clube até 1985, quando foi vendido para o Torino, da Itália. Nos anos em que jogou no Torino, clube italiano, Júnior impressionou o país com o seu grande futebol. Prova disso é a homenagem que recebeu no centenário do clube. Depois, ainda teve uma rápida passagem pelo Pescara, do mesmo país.

Em 1989, aos 35 anos e a pedido de seu filho, que nunca o vira jogar pelo Flamengo, Júnior voltou para comandar a equipe rubro-negra nas conquistas da Copa do Brasil de 90, o Campeonato Estadual de 91 e o Brasileirão de 92.

Em 1992, atuando como meia, liderou o Flamengo ao tetracampeonato, no Brasileirão daquele ano. Tal fato é considerado um feito, tendo em vista a idade avançada do então meia, com 38 anos. Neste último foi um autêntico maestro, pois de seus pés surgiriam as jogadas que surpreenderiam os rivais na reta final daquele campeonato. Fez, inclusive, um dos gols do 1o jogo da final. O "Vovô-Garoto", como ficou conhecido na segunda fase em que esteve no time rubro-negro, viveu muitos dias de glória no clube, fazendo 74 gols ao todo com a camisa rubro-negra.

Encerrou a carreira de jogador em 1993 e no mesmo ano assumiu a função de treinador do time substituindo Evaristo de Macedo e ficou no clube até 1994. Retornou ao clube em 1997 no lugar de Joel Santana. Foi ainda técnico do Corinthians em 2003, mas após 3 rodadas, entregou o cargo. Em 2004 assumiu a função de gerente de futebol do Flamengo ficando na função até o final daquele ano.

Sem muito sucesso como técnico/manager de futebol, em 2007 retornou como comentarista do canal SporTV e PFC. A partir de 2009, com a saída de Sérgio Noronha, foi transferido para a equipe de esportes da Rede Globo, sendo o comentarista titular dos jogos de times do Rio de Janeiro.

Pela Seleção Brasileira, Júnior jogou 88 partidas entre os anos de 1979 e 1992, registrando oito gols. Fez parte de um dos maiores times que o futebol já produziu: a Seleção Brasileira de 1982. Participou das Copas do Mundo de 1982 e de 1986.

Depois de sua aposentadoria dos campos, Júnior partiu para uma grande empreitada: a de alavancar o até então incipiente futebol de areia à condição de esporte reconhecido e sucesso de público. Participou das primeiras grandes conquistas da seleção brasileira de Beach Soccer, tendo depois a companhia de outros grandes craques do campo, como Zico e Cláudio Adão.

Júnior também fez sucesso fora dos gramados e areias como cantor. Em 1982, poucos meses antes da Copa do Mundo da Espanha, gravou o compacto com a música Povo Feliz, que ficou mais conhecida como "Voa Canarinho". A música virou a trilha sonora da Seleção Brasileira naquela Copa e o compacto vendeu mais de 800 mil cópias.

Atualmente, trabalha como comentarista esportivo da Rede Globo, substituindo Sérgio Noronha, que foi para a Rede Bandeirantes.

Títulos pelo Flamengo

Copa Intercontinental.svg Copa Européia/Sul-Americana 1981
Liberators Cup.svg Copa Libertadores da América 1981
Campeonato Brasileiro: 1980, 1982, 1983,1992
Copa do Brasil: 1990
Campeonato Carioca: 1974, 1978, 1979, 1979 (especial), 1981, 1991
Taça Guanabara: 1978, 1979, 1980, 1981, 1982
Taça Cidade do Rio de Janeiro: 1973,1978,1991,1993
Rio de Janeiro Taça Rio: 1978,1991
Rio de Janeiro Segundo Turno Campeonato Carioca: 1978
Espanha Torneio Cidade Palma de Mallorca: 1978
Espanha Troféu Ramón de Carranza: 1979,1980
Rio de Janeiro Taça Pedro Magalhães Corrêa: 1974
Goiás:Torneio de Goiás: 1975
São Paulo:Torneio de Jundiaí: 1975
Mato Grosso:Torneio de Mato Grosso: 1976
Brasil Taça Geraldo Cleofas Dias Alves: 1976
Rio de Janeiro Taça Luiz Aranha: 1979
Rio de Janeiro Taça Jorge Frias de Paula: 1979
Rio de Janeiro Taça Innocêncio Pereira Leal: 1979
Rio de Janeiro Taça Organizações Globo: 1979
Espanha Torneio das Astúrias: 1980
Rio de Janeiro Taça Sylvio Corrêa Pacheco:1981
Espanha Torneio de Algarve: 1980
Espanha Troféu Cidade de Santander: 1980
Itália Torneio de Nápoles: 1981
Uruguai Copa Punta del Este: 1981
Paraguai Brasil Taça Confraternização Brasil-Paraguai: 1982
Argentina Brasil Troféu Brasil-Argentina: 1982
Alemanha Copa Porto de Hamburgo: 1989
Estados Unidos Copa Marlboro: 1990
Japão Pepsi-Cup: 1990
Japão Copa Sharp: 1990
Minas Gerais Torneio Quadrangular de Varginha: 1990
Rio de Janeiro Torneio de Verão de Nova Frigurgo: 1990
Rio de Janeiro Copa Rio: 1991
Rio de Janeiro Taça Estado do Rio de Janeiro: 1991
Rio de Janeiro Campeonato da Capital: 1991,1993
Paraná Troféu Brahman de Campeões: 1992
Rio de Janeiro Troféu Eco-92: 1992
Argentina Taça Libertad: 1993
Rio de Janeiro Troféu Raul Plassman: 1993

Fontes: Revista Placar; Wikipédia.

A volta do Dia da Sinceridade

Vocês queiram perdoar, sim? Queiram perdoar, mas vamos continuar imaginando coisas sobre o "Dia da Sinceridade", cujo bolamos em momento dos mais inspirados, escudados que estávamos na certeza de que dias como o "Dia das Progenitoras", "Dia da Reconciliação", "Dia do Papai" e outros de some-nos não tinham a menor importância do ponto de vista cívico, e, sim, do ponto de vista comercial.

Com aquela disposição de que sempre nos munimos, quando se trata de auxiliar o próximo a ter idéias mais felizes, bolamos o "Dia da Sinceridade", que não tem o mínimo cunho comercial e — muito pelo contrário — ajuda os leitores que aderirem a burilar o caráter, elemento da personalidade de cada um que — segundo Tia Zulmira — está para a consciência do indivíduo assim como a gomalina está para a cabeleira do Al Neto.

O "Dia da Sinceridade" lavará a alma de muita gente, mesmo essa gente inibida que passa o dia mentindo para conservar os honorários, tais como garotas-propaganda, locutores de rádio, ministros de Estado, vendedores ambulantes e cronistas mundanos. Isto para somente citarmos classes mais ou menos definidas dentro do panorama da insinceridade nacional e — por que não? — internacional.

No "Dia da Sinceridade", talvez para evitar futuros aborrecimentos, não seria conveniente visitar parentes, mas seria de boa monta entrar na Câmara dos Deputados e conversar um pouco com o deputado em quem votamos. Seria de bom alvitre também ligar o rádio para a Rádio Mundial e ouvir as pregações do Irmão Alziro Zarur.

Somos de opinião que um dia assim viria descomplexar (ou será extracomplexar? Verifique aí, Osvaldo) diversas classes trabalhadoras, como, por exemplo, a classe dos que vendem calçados. Isto é um exemplo, conforme vocês podem notar, trazido assim a esmo, só para melhor esclarecer a massa ignara.

Os vendedores de sapatos que, conforme tão bem assinalou o poeta Vinícius de Moraes, parecem Madalenas arrependidas pedindo perdão pelos sapatos, já que se ajoelham na frente do freguês para experimentá-los (não os fregueses, mas os sapatos), vivem na insinceridade. No entanto, vitoriosa a idéia do "Dia da Sinceridade", mesmo em sua postura costumeira, e talvez por causa dela, diriam para a dama elegante que insiste em comprar o sapato de couro de camelo: — Madame, não vai nessa. Esse camelo nasceu cavalo.

O modelo é uma fábrica de calos e o sapato entorta mais que boca de cantor de tango. A senhora compradora não se espantaria, pois era o dia supracitado, e agradeceria com um sorriso, não sem antes botar na mão do vendedor uma nota de duzentas pratas, aconselhando:

— Vá a um dentista, nego. Daqui de cima é que se tem uma idéia panorâmica de suas cáries.

O vendedor faria uma reverência, já de pé, e antes que a freguesa fosse embora, perguntaria risonho:

— A senhora não quer examinar a nossa coleção de ferraduras?

Grande dia, companheiros, o "Dia da Sinceridade".
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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.

O Dia da Sinceridade

Quem não tem o que fazer deu agora para inventar "dia". Um vereador — cujo nome esquecemos — propôs a oficialização do "Dia do Acidentado", explicando que, nesse dia, todos iriam aos hospitais visitar os doentes passíveis de visitas e perturbar os doentes que não podem receber visitas. A idéia, que ao vereador deve ter parecido luminosa, não foi sequer levada a sério pelos seus coleguinhas edis. Felizmente.

Já nossa amiguinha Graciette Santana quer o "Dia da Progenitora", como se já não bastasse o "Dia da Genitora", onde as progenitoras já estão incluídas porque a condição primordial para a mulher ser progenitora é ser genitora anteriormente, detalhe que — queremos crer — escapou à Dona Graciette. Lamentável.

Outro que lançou "dia": Antônio Maria. Prenhe de boas intenções, o Arcebispo do Sacha's quer o "Dia da Reconciliação", conforme ele mesmo expôs em bem traçadas linhas. Será o dia em que cavalheiros mais ou menos em crise de amizade com outros tantos cavalheiros farão as pazes em lugar público; dia em que ferrenhos desafetos se abraçarão para legalizar o fim da briga etc. etc.

E como é bom demais para abençoar os outros, o próprio inventor do "Dia da Reconciliação" irá para o interior na data dos reencontros, para não ter que fazer as pazes com ninguém. Ele não confia nos inimigos, infelizmente.

Já a flor dos Ponte Pretas, que também se sentia meio jogado fora, resolveu criar um diazinho, para ficar atualizado e não ser passado para trás. Por isso mesmo imaginou o "Dia da Sinceridade", dia que — temos certeza — contaria com a adesão incondicional de todos, mesmo com a adesão do vereador, da Irmã Graciette da Emissora "Jesus Está Chamando" e do Antônio Maria.

No "Dia da Sinceridade" aconteceriam coisas surpreendentes. Você ligava a televisão e veria uma garota-propaganda com um sabonete na mão, dizendo que o dito não faz espuma, tem um perfume muito do rebarbativo e o preço é extorsivo.

Depois outros anúncios sinceros, seguidos de entrevistas sinceras, ocasião em que os arnaldos nogueiras do vídeo anunciariam assim seus convidados: está aqui ao nosso lado um dos maiores ficeleiros do PSD, que vai explicar a negociata que fez ontem no Ministério da Fazenda. Os jornais também seriam sinceros, principalmente os da imprensa sadia, cujos teriam um dia de reabilitação, pelo menos.

Jogadores de futebol fariam declarações importantes, explicando que detestam o clube a que pertencem, que farão tudo pela vitória porque o bicho é melhor quando vencem, mas que o adversário tem um time melhor e, por isso mesmo, vão tacar o pé no inimigo para intimidá-lo. E acrescentarão: a chave é essa, o técnico que se dane, pois quem vence jogo é jogador e não técnico.

Revistas especializadas diriam o que acham de Emilinha, contariam como fazem reportagem com Cauby; cronistas mundanos falariam de suas listas de "dez mais" com completa isenção de ânimo; candidatos a eleições colocariam na rua faixas com dizeres que espelhassem seus sentimentos cívicos e nos petits comitês, os que vivem nos riversides da vida, trocariam idéias entre si e sobre si, sem qualquer futuro ressentimento.

Nesse tão saudável "Dia da Sinceridade", por nós imaginado, Stanislaw passaria despercebido e, para culminar a comemoração, haveria discurso do Presidente na "Voz do Brasil". Credo!
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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.

O único De Gaulle

Uma das maiores festas populares do velho Rio era o "grande enterro". Não sei se me faço entender. Falo de uma cidade ou de um Brasil que passou até o último vestígio. Era ainda o tempo do barão do Rio Branco, de Pinheiro Machado, de Oswaldo Cruz, Patrocínio, Rui (digo os nomes, ao acaso, sem nenhuma cronologia). E, quando morria um dos citados, a cidade vinha, radiante, enterrar o "grande homem".

Claro que ninguém chorava o defunto oficial. E, por todo o itinerário fúnebre, ou falsamente fúnebre, havia uma euforia louca. Os moleques, trepados nos postes e nas árvores, avisavam: — "Evém! Evém!".

Mas eu disse que ninguém chorava o "grande homem" e já retifico: — as velhinhas choravam, sim, o cadáver monumental. Foi assim quando morreu o barão do Rio Branco.

Naquela época, ainda tínhamos o instrumento da reverência, que era o chapéu. Podia ser um enterro de quinta classe. E cada qual se descobria diante da morte. Ninguém morria sem que toda uma cidade o cumprimentasse.

Mas eu estava falando de que mesmo? Ah, de Rio Branco. Segundo se afirma, foi o maior enterro do Brasil, em qualquer tempo. O velho barão era o "grande homem" até fisicamente. Bem me lembro de que, na minha infância, o que mais me fascinava em Rio Branco era a barriga. Hoje, temos um preconceito cardíaco, não sei se justo ou iníquo, contra o barrigudo. Os clínicos costumam fazer a restrição pressaga: — "Você está muito gordo".

No velho Rio, porém, a barriga era um mérito a mais do ministro, do homem de Estado, do senador. E, naquele dia, ninguém ficou em casa, ninguém, e só as velhinhas choravam. O resto exultava com a mise-en-scène funeral. Mas eis o que eu queria dizer: — hoje, seria talvez impossível um enterro parecido. Cabe então a pergunta: — e por quê?

Vejamos. Outro dia fui a um sarau de grã-finos na Lagoa. Houve um momento em que faltou assunto. E, então, alguém falou, precisamente, dos velhos enterros do Brasil.

Citou os do Barão, de Rui, de Pinheiro Machado etc. etc. Havia lá um escultor português. Este gostaria de ter assistido aos funerais de Inês de Castro. A dona da casa (bonita demais para ser feliz) confessou que não vira, jamais, um "grande enterro".

Em seguida, alguém propôs uma revisão dos nossos "grandes homens". Houve a dúvida: — "Vivos ou mortos?".

Convencionou-se que só interessavam os vivos. E começou uma busca frenética. No fim de uma hora os nomes lembrados dariam para encher uma lista telefônica. E começou um processo de angústia. Mais um pouco e se insinuou a dúvida: — "Será que, no Brasil, ninguém é grande homem?". Até que, cerca das quatro da manhã, chegou-se à síntese desesperadora: — não temos o grande enterro porque nos falta o grande morto. O anfitrião repetia, vagamente humilhado: — "O Brasil não tem um grande homem para
enterrar".

Saímos já ao amanhecer. Vim, com mais dois ou três, numa carona amiga. O dono do carro ainda gemia, numa irada frustração: — "É impossível que o Brasil não tenha um grande homem". Nenhum povo pode viver sem o grande homem. Um outro sugeriu a hipótese consoladora: — "Quem sabe se não há, por aí, um gênio inédito?". Protesto do dono da carona: — "A primeira virtude do grande homem é não ser inédito".

Quando saltei do carro, na porta de casa, já tínhamos renunciado ao grande homem brasileiro. E, agora mesmo, ao bater estas notas, estou com o problema na cabeça. Lembro-me então de uma das recentes passeatas, justamente a mais concorrida, a dos "100 mil".

Estavam, ali, eretas as nossas elites. Eram estudantes, poetas, romancistas, professores, sacerdotes, arquitetos, médicos, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, cineastas.

Do alto de uma sacada, um observador podia imaginar: — "São os que pensam". E, de fato, era o Brasil pensante que desfilava. Pasmado, cochichei para o meu companheiro Raul Brandão, o pintor das igrejas e das grã-finas: — "Vai haver o  O meu raciocínio era justo. Cem mil brasileiros não se juntam para nada. Imaginei que ia começar, ali, a "Grande Revolução".

Até que se ouviu a palavra de ordem: — "Vamos sentar". A docilidade foi total. E as nossas elites sentadas eram de um efeito plástico inesquecível. E, depois, veio a ordem inversa: — "Levantar". Tal e qual no anúncio do "senta e levanta". Ninguém queria tomar o poder, absolutamente. Uma vez que se tinham sentado e levantado, os 100 mil se deram por satisfeitos e cada qual foi para casa.

Se os que pensam agem e reagem assim, que dizer dos que não pensam? Sim, que dizer do pobre-diabo, do homem de rua, do pé-rapado, do sujeito mais obscuro do que um cachorro atropelado?

Finda a passeata das elites, o Raul Brandão esbravejou: — "O importante, no Brasil, não é o grande homem, mas, inversamente, o pobre-diabo, o homem comum, o torcedor do Flamengo, o analfabeto". Arquejava de uma fúria sagrada contra as elites.

Eis o que eu gostaria de dizer: — passou a época do grande homem, e não só no Brasil. Também no mundo. Recentemente, vimos a nova "Revolução Francesa". Os estudantes viravam a pátria de pernas para o ar; e, logo, 12 milhões de operários entraram em
greve.

Estudantes chamavam De Gaulle de "o assassino". O poder estava indefeso. Mas ninguém o tomou, ninguém. E por quê? Simplesmente porque, entre milhões, não havia um único e escasso grande homem. A França teve que se atirar, outra vez, nos braços de De Gaulle. Sim, o velho De Gaulle, único grande homem francês.

Na minha mesa está uma revista de Paris. E, lá, vem um artigo confessional de Jean-Louis Barrault. Já falei, aqui, da sua "morte". Durante a "jovem revolução", o famoso ator, com um oportunismo muito pusilânime, tratou de adular a massa estudantil. O teatro Odeon, que ele dirigia, estava ocupado pelos jovens. E, então, Barrault subiu ao palco. Foi patético. Declarou que, a partir daquele momento, deixava de ser Barrault. De fronte alçada, completou: — "Barrault morreu". Saiu dali e foi comer um bom bife na esquina.

Quinze dias depois, não havia mais greve, não havia mais nada. Barrault, falso grande ator, falso grande homem, teve o seu prêmio. Um outro intelectual, André Malraux, o chamou e deve ter dito mais ou menos isto: — "Rua! Rua!". E o artigo do  "morto" vem plangente de uma funda e inconsolável nostalgia do salário.

Seja como for, a "jovem revolução" ensinou-nos que a França é uma paisagem sem franceses ou, por outra, é a paisagem de um único francês: — Charles de Gaulle.

[27/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.