sábado, 10 de setembro de 2011

A doença infantil do palavrão

Que estaria fazendo eu, ontem, às três da madrugada?

Sei que isso é intranscendente, irrelevante, mas vamos lá.

Simplesmente, eu estava adulando minha úlcera com leite gelado. (Minha úlcera lambe leite como uma gata). Pacificada a dor, vim para a janela espiar a noite. E comecei a pensar no teatro brasileiro. (É triste ser inteligente com dor).

Escrevi, há dois ou três dias, que lavra, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão. Não há lembrança de outra época tão pornográfica. Dirá alguém que o brasileiro sempre foi um neto retardatário e ululante de Bocage.

Isso é e não é verdade. De fato, o povo sempre teve a boca suja. O nosso Pedro I, segundo informam a história e a lenda, soltava, com larga e cálida ênfase, alguns dos mais truculentos palavrões da língua. E, assim, através dos tempos, cada geração recebe das anteriores um farto legado obsceno. (Claro que a linguagem das mulheres sempre foi muito mais limpa). Eis o que eu queria dizer: — no passado, o palavrão era muito mais solene, patético, vital.

Bem me lembro de uma vizinha nossa, que perdeu a filhinha, de febre amarela. (Era ainda a cidade dos lampiões e da febre amarela). Quando a menina morreu, e a mãe sentiu a morte, podia ter rezado. Rezado, em pé, ereta, a fronte alçada. Não. Ela se esganiçou em palavrões hediondos, inclusive alguns que os homens, os latagões presentes, não conheciam. Houve, junto à cama da agonia, um escândalo total. Mas logo todos perceberam que a dor pornográfica é ainda mais terrível.

Uns vinte anos depois, passo, com um amigo, pela praia de Ipanema. E, por um momento, ficamos, ali, feridos de espanto. Que dizer de um poente do Leblon? Um de nós poderia declamar a seguinte imagem de D'Annunzio: — "O crepúsculo rola em quedas de silêncio e de luz". Em vez disso, o meu amigo arrancou, das próprias entranhas, um palavrão deslumbrado. Aquele poente de folhinha como que exigia o uivo obsceno, não convencional.

Disse obsceno e já retifico. Não houve obscenidade nenhuma. Houve, repito, uma unção e uma carga de espanto que a palavra comum não suportaria. Não sei se me entenderam. Mas o que eu queria dizer é que o palavrão não tinha nada de gratuito, de irresponsável. Nunca. E ainda outro exemplo: — fui ver um amigo que estava morre, não morre. Encontrei-o já com a dispnéia préagônica. Houve um momento em que a mulher curvou-se e lhe fez a pergunta: — "Meu bem?". Sem abrir os olhos, ele soluçou um palavrão e morreu.

O homem era pornográfico para morrer. Ou ainda: — era pornográfico por ódio, medo, paixão. Havia sempre um sentimento forte.

Hoje não. O chamado nome feio deixou de ser feio. Esvaziou-se o palavrão de toda a transcendência, de todo o dramatismo. Ele já não causa o velho impacto heróico. Realmente, é a doença infantil dos adultos.

Ontem, contei, de passagem, as reações da platéia do Rei da vela. Um belo espetáculo e um elenco admirável. O diretor, José Celso, fez um nobilíssimo esforço. No fim, o texto era uma laranja chupada (o diretor extraíra todo o caldo). Um amigo, que foi comigo, dizia-me da peça: — "Não tem estrutura". E, de fato, se lhe retirassem os palavrões enxertados, o Rei da vela não ficaria de pé cinco minutos.

O que explica o êxito do espetáculo é, exatamente, o engenho diabólico de José Celso. Não conversamos sobre a execução cênica do original. Mas quero crer que ele percebeu, em toda a sua força epidêmica e incontrolável, a doença infantil do palavrão.

As falas de Oswald de Andrade não chegam ao público ou, na melhor das hipóteses, são de uma eficácia mínima. Quem reinou, através dos três atos, foi o palavrão. Claro que há, no Rei da vela, uma mensagem. Mensagem para a qual a platéia é surda, cega e muda. Em dado momento, no terceiro ato, a peça emposta a voz e se torna gravíssima. O tédio do público é então indescritível. Ah, por que fazer um Oswald de Andrade solene, encasacado como um mordomo de filme policial inglês?

Já o rendimento plástico e auditivo do palavrão foi absoluto. Na minha frente estava um rapaz com a noiva. Passei duas horas seguindo as reações do casal. Diga-se de passagem que era a platéia mais antipolítica, mais anti-ideológica que já entrou no João Caetano.

Volto ao rapaz (um latagão de vastas bochechas). A única coisa que o fascinava no espetáculo era a pornografia e toda a gesticulação correspondente. E sempre que explodia um palavrão, nada descreve e nada se compara à delícia auditiva do noivo. Ficava escarlate de prazer (e os outros também). Lembro-me que, na minha peça, O beijo no asfalto, um velhinho trepou na cadeira e pôs-se a berrar: — "Indecentes! Imorais! Tarados!".

Houve porém uma resistência solitária. Alguém, não identificado, estourou: — "Cala a boca, burro!". E o carequinha: — "Burro é a mão na cara!".

O momento mais alto do Rei da vela foi quando a platéia, em sua unanimidade ululante, aplaudiu, de pé, o palavrão mais violento dos três atos. Ninguém fez cara feia; nenhuma senhora deu muxoxo; jamais um casal se retirou.

No dia seguinte, encontro o doce Eduardo Chermont de Brito.

Conto-lhe toda a minha experiência brasileira do Rei da vela.

Pergunto: — "Chermont, que fazem os nossos sociólogos? Que faz o padre Ávila que ainda não deu uma aula sobre a doença infantil do palavrão?". O Chermont suspira: — "É o Brasil, é o Brasil!".

E há de ser também o Brasil o Roda-viva do Chico. Um dos Guinles foi lá, com a senhora, ver a peça. Queria o Chico terno, tímido, nostálgico. Pois bem: — e deu de cara com o truculento José Celso. Em Roda-viva há uma presença devoradora: — o José Celso. O casal Guinle saiu, no meio, como se fugisse do anti-Brasil. Mas é o Brasil, o novo Brasil com potencialidades imprevisíveis.

O público só irá, daqui por diante, ao espetáculo pornográfico. A platéia exige as duas coisas: — o palavrão e o gesto que lhe corresponde. É como se a obscenidade de palco justificasse e absolvesse a obscenidade do espectador. Se eu conhecesse o padre Ávila, ou outro sociólogo, ou quem sabe um psicanalista, ou ainda um pediatra, havia de perguntar-lhe: — há ou não, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão?

[1/2/1968] 
________________________________________________________________________

A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O palavrão humilhado

Quando vou ao Galeão, só uma figura me impressiona.

Lá, chegam e partem reis, presidentes, rajás, grã-finos, ministros, Jorginho Guinle, velhas internacionais. Só não vi, no Galeão, um mandarim. E é, convenhamos, todo um elenco fascinante. Mas falei na figura que mais me impressiona e aqui está seu nome: — a aeromoça.

A jovem que resolve ser aeromoça está fazendo uma opção profissional desesperadora. Bem sei que a aviação progrediu muito etc. etc. Todavia, no caso da aeromoça, a opção profissional não será bem profissional. É como se ela estivesse preferindo morrer. Para a aeromoça, cada dia pode ser a véspera do fim. Vejo-a passar por mim no Galeão. Seu olhar tem a doçura de um adeus. Sim, ele pode estar-se despedindo da paisagem.

Não sei se as aeromoças são bonitas. Diz o Otto Lara Resende: — "O Brasil é o único país onde as feias são bonitas". Seja como for, elas têm um patético irresistível. São íntimas da morte. E sua graça parece mais leve, mais efêmera, mais perecível que a das outras. Ah, quando vejo uma delas, sonho: — "Essa vai morrer cedo".

Pode parecer uma obsessão pueril (e talvez o seja). Mas eis o que eu queria dizer: — as nossas esquerdas atuais sugerem a impressão inversa, isto é, de que vão morrer tarde, muito tarde. Pelo amor de Deus, não vejam ironia, mesmo porque tenho vários amigos na "festiva". A verdade é que a segurança das nossas esquerdas está acima de qualquer ameaça ou dúvida.

O brasileiro simples formou do esquerdista patrício uma imagem inteiramente irreal. O pai de família imagina que um socialista tem uma barricada em cada bolso. Eu próprio, no 31 de março e no 1º de abril de 64, andei tecendo fantasias hediondas. Imaginava que o sangue jorraria e que as ratazanas iam sair dos ralos para bebê-lo. E não se derramou nem groselha.

Só muito depois descobria eu a verdade, que é a seguinte: — as nossas esquerdas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem a vocação inversa da segurança. Ainda ontem, falava eu da sábia distância que vai do Antonio's ao Vietnã. Aí está dito tudo. E, assim, sem arredar pé do Antonio's, e bebendo cerveja em lata, as esquerdas não morrerão jamais.

O leitor há de perguntar, com irritação e escândalo: — "Mas elas não fazem nada?". Responderei: — "Fazem".

Insistirá o leitor: — "E fazem o quê?". Direi: — "Auto-promoção". É a pura verdade. A esquerda não sai por aí, derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas, porque está ocupada em se auto-promover.

Abram os jornais, ouçam o rádio, vejam a televisão. O "grande poeta", o "grande crítico", o "grande ensaísta", o "grande romancista", o "grande dramaturgo" — são membros da "festiva". Gustavo Corção acaba de publicar um grande livro. É toda uma meditação maravilhosa. Dois volumes de uma lucidez apavorante. E não sai, em lugar nenhum, uma linha, uma vírgula, nada. A imprensa, as câmeras e os microfones estão cegos, surdos e mudos para a obra de Corção.

É inédita essa capacidade promocional das esquerdas.

Elas ocuparam as redações. Não brigam, nem chupam o sangue da burguesia. Em compensação, a glória, ou execração, depende do seu exclusivo arbítrio. Ou faz uma reputação literária ou, com um piparote, a derruba. É um terrorismo cultural que se exerce, na melhor das hipóteses, com o silêncio. Corção é reacionário? Silêncio em cima dele.

Ainda ontem, um revisor veio-me pedir emprego. Tem mulher, filhos, e contou o seu drama. Trabalhava num grande jornal, mas cometeu a imprudência suicida de elogiar os Estados Unidos. Não sei por que, ou por outra: — lembro-me agora. Disse ele que uma peça, ora em exibição em Nova York, insinuava que o presidente Johnson e senhora eram assassinos, ou co-assassinos, de Kennedy. E, por isso, concluía o revisor que havia liberdade nos Estados Unidos.

Foi despedido, sumariamente.

Vejam como as esquerdas têm poderes para admitir, ou demitir, nos jornais, rádio e TV. Dominando em todas as artes, não podiam deixar de fora o teatro. (Na pintura, aquele que não for da "festiva" terá menos imprensa de que um cachorro atropelado). E, no teatro, as esquerdas descobriram o palavrão.

Pasmem para as ironias da vida literária e dramática.

Durante dezoito anos, ou vinte, fui o único obsceno do teatro brasileiro. Minhas peças Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados foram interditadas. E não tive a solidariedade de ninguém. Lembro-me de que Álvaro Lins, a maior autoridade crítica da época, declarou, por outras palavras, o seguinte: — eu saíra da literatura e era agora um "caso de polícia". No mais, nem estudantes, nem escritores, quando passavam por mim, concediam a graça de um "oba".

O dr. Alceu, em declarações a O Globo, aplaudia a minha interdição. Sempre que se referia a mim dizia, enojado: — "As peças obscenas de Nelson Rodrigues".

O curioso é que nem Álbum de família, nem Anjo negro, nem Senhora dos afogados tinham um único e escasso palavrão. Eu viria a usá-lo muito mais tarde. E, no entanto, montou-se, a meu respeito, todo um folclore medonho.

Segundo corria à boca pequena, eu, todos os dias, depois do almoço, fazia a sesta num caixão de defunto. E as esquerdas tinham, dos meus textos, uma repugnância total.

Súbito, elas descobrem o palavrão, ou especificando: — o palavrão no teatro. Já o usavam no romance. Mas a pornografia do livro se dirige a um único e íntimo leitor e morre numa relação individualíssima e secreta. Ao passo que no teatro o palavrão é declamado para duzentos, quatrocentos, oitocentos.

Se bem entendi, as esquerdas querem chocar a platéia. É preciso que esta não fique, nas cadeiras, comendo pipocas.

O bom teatro tem de ser agressão. Muito bem, ótimo. Nada tenho a objetar. E fui ver, sábado, o Rei da vela, dirigido por meu caro e simpaticíssimo José Celso. Trata-se do grande diretor do momento. Do mesmo modo que o Plínio Marcos está sendo representado em todos os palcos, o José Celso parece dirigir todas as peças. A do Chico, por exemplo, é dele.

Preparei-me para ser testemunha e vítima da agressão.

Durante todo o espetáculo, não fiz outra coisa senão esperar. Diziam que o texto e o espetáculo eram um soco na cara. E eu estava lá para ver e receber o soco na cara. No fim de duas horas e meia, saímos, eu e os outros, intactos. Éramos quatrocentos sujeitos e não havia, entre nós, um único e vago agredido. O novo teatro conseguiu desmoralizar o soco na cara. O palavrão, antes, tinha suspense, tinha mistério, tinha espanto. E a audiência do Rei da vela saía arrotando a sua satisfação burguesa.

Por aí se vê como falhou o sonho de uma platéia esbugalhada, horrorizada. Imaginem que, no segundo ato, um dos personagens solta um palavrão inédito e que teria horrorizado as cinzas do Bocage, não o do soneto, mas o da anedota. Era o momento de a platéia arrancar os cabelos ou subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. E, no entanto, vejam vocês: — os presentes, de pé, aplaudiam, aos vivas.

Essa apoteose súbita e feroz frustrou, ofendeu e humilhou o pobre palavrão.

[31/1/1968]
________________________________________________________________________

A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.