quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

É triste... muito triste


Sim, companheiros, é muito triste um pai educar uma filha para corte, costura e o chamado trivial que vai do pregar botão ao fazer feijão, e depois, quando a filha fica pronta vira Elegante Bangu. É triste mesmo!

Mas não se deve negar aos homens o direito do vexame. É triste um pai criar um filho dentro das linhas que obedecem aos princípios da sagrada burguesia, pagando-lhe o colégio, alimentando-o para que um dia possa trabalhar e descontar para o IPASE e depois, quando o filho fica pronto, mete uma cabeleira loura e sai fotografia dele nos jornais, "travestido" em Rainha Morna.

Não é menos verdade, no entanto, que triste, muito triste é mãe devota fazer sacrifício para vestir e calçar filha órfã de pai, dando duro em emprego modesto, gastando com economia o montepio do falecido e depois, quando a filha fica mais ou menos o número que a gente usa, sai por aí arranjando voto para ser Rainha sabe-se lá de que trono.

Inegável, contudo, é que a tristeza paira sobre o semblante do pai que não saiu de casa "naquele dia" por amor ao garoto, a quem orgulhosamente deu de tudo e depois, quando o filho se sentiu capaz de certas coisas, ver esse filho desfilando na passarela no João Caetano, no baile aquele.

E por que faltar com a verdade, fingindo ignorar o quanto é triste para mãe extremada ver a filha ir encorpando, encorpando e fugindo ao seu controle, até o momento em que — lá uma noite — volta para casa dizendo que ele é casado e não há mais nada a fazer?

Como é triste também uma família do Norte, que sofre com o agreste da região e a proliferação exagerada de filhos, criar as crianças com o sacrifício da fome e, um dia, o mais velho dos filhos embarcar para a capital só para ser cronista mundano. É triste sim, muito triste.

Aliás, triste, sem dúvida, é moça que se diz bem, que detesta certas intimidades com as chamadas mariposas da noite, freqüentar o "Sacha” o ano inteiro e depois, quando chega fevereiro, meter um maio legal no corpo e ir pro baile carnavalesco dizendo que está fantasiada.

Sim, companheiros, tudo isso é muito triste pra nós, porque os citados não desconfiam nunca. Para eles as bestas são as do apocalipse, se é que já ouviram alguma vez falar em apocalipse. Não, companheiros, eles não desconfiam nunca. Tanto não desconfiam que — noutro dia — ouvimos uma moça dizer para um rapaz que a convidara para ir comer galeto na sua lambreta:

— Que é que você está pensando? Eu não sou uma qualquer. Eu sou bailarina do "Bolero" ouviu?

__________________________________________________________________________ Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.

O passamento de "Bette Davis”

Gilberto Milfont e Lúcio Alves são cantores, o que ninguém ignora, nem mesmo os que nasceram para conjugar o verbo ignorar. Mas quando param de cantar só pensam em cavalo de corrida.

Vai daí, não somente apostam nos cavalinhos da Gávea, como nos cavalinhos de Cidade Jardim, dada a condição de contratados da TV Record, de São Paulo, onde vão semanalmente.

Pois noutro dia Gilberto Milfont estava no aeroporto, pronto a embarcar para São Paulo, quando o microfone anunciou o seu nome. Foi Gilberto saber o que era e era telefone. Gilberto atendeu:

— Alô, Gilberto? É Lúcio Alves. Assim que você chegar em São Paulo, vá lá na Record, peça dez contos ao Blota Júnior em meu nome e jogue na égua Bette Davis, no quinto páreo. Mas só jogue se pagar 25 pratas, senão não interessa.

— Mas Lúcio... — tentou explicar Milfont, embora Lúcio já tivesse desligado. Desligou também e embarcou.

Chegando em São Paulo, Gilberto seguiu direto para a Record, a fim de procurar o diretor-artístico Blota Júnior, que aliás não é tão artístico assim como pensa o próprio. Chegou, explicou, e Blota, que é desses que depois do almoço palita os dentes com um lado só do palito, pra economizar o outro lado pra depois da jantar, fez cara de choro e disse que só tinha 5 contos.

Estava quase na hora de correr o 5.° páreo e então o Gilberto Milfont aceitou os cinco e se sacudiu pro Jóquei. Chegou bem na hora da última apregoação. Bette Davis era a favorita e estava cotada a 23. Lúcio dissera que menos de 25 não valia a pena. E então Gilberto guardou o dinheiro e foi ver o páreo correr.

O diabo é que, assim que chegou junto da cerca, reparou no placar e viu que a cotação subira pra 26 e não dava mais tempo de jogar.

— O Lúcio me come vivo se essa tal de Bette Davis ganha o páreo — pensou Milfont. Ele deve estar no Rio torcendo mais que nariz de grã-fino, quando fala com pobre. O jeito era torcer contra.

O páreo saiu e Bette Davis pulou 10 corpos na frente dos outros e saiu disparada. Giberto, encostado na cerca, rezava pra Bette Davis mancar e quanto mais ele rezava mais Bette Davis corria. Na entrada da curva ela vinha com 15 corpos e Gilberto torcia tanto que a camisa estava ensopada de suor. — Pára, desgraçada — dizia ele, entre dentes.

E Bette Davis pareceu ouvir. Na reta final começou a correr menos. Oito corpos, sete, cinco, dois e todo o lote passou por Bette Davis com Gilberto todo torcido. E a égua veio parando, veio parando e parou bem na frente de Gilberto. O jóquei saltou para examinar Bette Davis mas não teve tempo. Ela deu uma tremedeira rápida e caiu na pista. Estava morta.

Gilberto Milfont saiu dali e telefonou pro Rio. Lúcio atendeu do lado de cá e perguntou:

— Como é? Deu Bette Davis?

E Gilberto, na maior dignidade:

— Por sua causa eu acabo de matar uma das maiores atrizes do cinema americano.

__________________________________________________________________________ Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.