terça-feira, 20 de setembro de 2011

Educação sexual

O meu secretário chama-se "Pão Doce" (tal apelido, não sei por que, me parece do mais puro Dostoievski. Quero crer que "Pão Doce" é um ser tão prodigioso como Marmeladov, o pai de Sônia).

Mas, como ia dizendo: — chego à redação e o "Pão Doce" vem, correndo, avisar: — "Tem um cara te procurando". E repetia, de olho rútilo: — "Um cara!". Estava excitado como se fosse a polícia.

Tiro o paletó e o ponho na cadeira. O "Pão Doce" indaga: — "Mando entrar?".

Puxo um cigarro: — "Manda".

Com pouco mais, volta o "Pão Doce" acompanhado. Era um senhor, grisalho, bem posto, um ar de major Anthony Eden, quando este era major e tinha 37 anos. Digo: — "Tenha a bondade". Sentou-se: — "Com licença". O "Pão Doce" retira-se.

E, então, começa uma conversa que me deu, do princípio ao fim, uma sensação de um vil pesadelo. Só agora me lembro que o desconhecido não me disse o nome. Vejam vocês: — conversamos duas horas e não sei como se chama (e, como permanece anônimo, o nosso diálogo parece cada vez mais irreal).

Eis como se apresentou: — "Eu sou um pai".

Explicou em seguida: — "Vim de São Paulo, especialmente". (Estou fazendo o suspense que ele fez comigo). Pausa. Diga-se de passagem que o "diálogo" foi um monólogo. Só ele falava, e só eu ouvia.

Durante cerca de duas horas desfiou a sua história ou, melhor dizendo, a história de sua filha. É uma menina de oito anos, linda, linda, de olhos azuis. Digo "olhos azuis" e já não sei se ele falou de "olhos azuis". Matriculou a menina num colégio religioso, o melhor, mais caro de São Paulo. "Sou católico", informa; e ajuntou: — "Praticante". Quase o interrompi para dizer-lhe que, no Brasil de hoje, o verdadeiro católico é um ser em solidão total. O pai baixa a voz: — "Mas não sou católico pra frente".

No colégio referido, só existem meninas de luxo, de famílias também de luxo. O pai estava muito feliz, vendo a garota à sombra das freiras em flor. Aconselhava aos amigos: — "Põe lá a tua filha! Colégio padrão, colégio ideal". Até que, um dia, é convocado para uma reunião de pais e freiras.

Disse no telefone: — "Pois não, pois não! Irei, com muito prazer". E, na hora marcada, estava lá, com a elegância de um major Anthony Eden mais moço. Inclina-se diante de uma freirinha: — "Por obséquio, onde é a reunião dos pais?".

A outra sorria: — "Por aqui". Ele a seguiu.

E houve a reunião. O pai chegou, cumprimentou a madre, sorriu para os outros pais e sentou-se. A madre estava falando com uma mãe grã-fina. Dava explicações: — "A educação sexual, aqui, começa aos quatro anos de idade".

O pai imagina: — "Devo ter ouvido mal". Fez a pergunta: — "A senhora disse 'quatro anos'?". Resposta: — "Quatro anos".

Um outro pai indaga: — "E as crianças entendem?".

Todos, ali, eram pessoas esclarecidas, atualizadas, em dia com as novas verdades. Mas houve, ainda assim, uma dúvida geral.

Os presentes se entreolhavam. Havia, sim, uma perplexidade no ar. E o pai, sem nada dizer, imaginava um jardim de infância, onde, aos quatro anos, as garotinhas teriam suas idéias, seus pontos de vista, sobre Freud.

A diretora explica, deleitada: — "As meninas aprendem vendo figurinhas".

O coração do pai começou a bater mais forte.

Continuava a explicação: — "As meninas vêem as gravuras e aprendem tudo". O major Anthony Eden já não sabia o que pensar, nem o que dizer. Teve vontade de perguntar se não seriam aquelas as tais "gravuras obscenas" que a polícia não deixa vender. Mas nada disse.

E por que garotinhas de quatro anos teriam de ver as "gravuras obscenas" que a madre não achava obscenas? Veio o exlarecimento: — "É preciso acabar com o tabu do sexo!".

Disse isso e sentia-se a sua gloriosa satisfação. Afirmava, olhando em torno exultante: — "Sexo não pode ter mistério. A criança precisa saber que o sexo é como...". A diretora parou, um momento, procurando a imagem exata. Disse, afinal: — "Como beber um copo de água". O sujeito bebe água quando tem sede. Esse copo de água é o sexo. Uma grã-fina cochicha, deliciada: — "Muito interessante".

O pai já está sentindo uma dor do lado esquerdo, com reflexo pelo braço. E continua ouvindo. Então, a propósito não sei de que filme, alguém fala em "prostituição". A freira deu a resposta fulminante: — "Ser prostituta é uma profissão como outra qualquer".

Houve uma concordância quase unânime. Fora umas duas ou três perplexidades, aqueles pais e aquelas mães balançavam a cabeça: — "Realmente; realmente".

O pai balbuciou: — "Profissão como outra qualquer? A senhora tem certeza?". A outra é superiormente irônica: — "Não vamos discutir o óbvio".

E, então, o pai ergueu-se. Estava numa indignação homicida. Mas como um bem-educado, preservava a polidez até no ódio.

Despediu-se de todos, desculpou-se: — "Preciso ir. Estão-me esperando". Saiu, desatinado.

E, agora, diante de mim, dizia: — "Um colégio de religiosas. Entende? De religiosas. E ensina que a prostituta é uma profissional como um ourives, ou um protético, ou um bombeiro hidráulico, ou um estofador. A caftina também não tem nenhum problema. É outra profissional do sexo. Deve descontar para o Instituto".

O outro horror do pobre homem eram as "gravuras obscenas".

Dizia-me: — "O senhor me entende? Um jardim-de-infância de meninas de quatro anos é quase um berçário. O senhor já imaginou freiras mostrando, num berçário, fotografias ignóbeis? Se um jornaleiro vendesse, para velhos bandalhos, faunos senis, tais gravuras, seria preso, apanharia na polícia, seria processado, o diabo. E por que um colégio de luxo, e religioso, pode fazer o que é proibido a um pobre jornaleiro?".

Eu queria falar e não tinha o que dizer. Bati-lhe nas costas: — "É a Igreja pra frente". E repeti: — "É a Igreja pra frente".

O outro concordou, numa amargura hedionda.

Sentiu-se um católico de uma outra Igreja, talvez de um outro Cristo. Estendeu-me a mão, envergonhado do próprio horror.

Suspira: — "Pelo menos, desabafei". E partiu, sem deixar o nome.

É tão anônimo como alguém que jamais tivesse existido.

[14/6/1968]


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Os conquistadores do mundo

O Grêmio, Campeão do Mundo de 1983 - Formou com Paulo Roberto, Mazarópi, Baidek, China, Casemiro e De León; mais o massagista Banha; Renato, Osvaldo, Tarciso, Paulo César e Mário Sérgio.

O tricampeonato brasileiro do Internacional ainda estava entalado na garganta dos gremistas quando o time perdeu para o Flamengo, deixando escapar o título nacional de 1982. Mas o Grêmio fez dessa derrota o início da campanha mais vitoriosa que um time gaúcho realizou até hoje.

Começou com a conquista heróica da Libertadores da América vencendo o Penãrol por 2 a 1 em Porto Alegre, depois de arrancar um empate em um gol na casa do adversário. O time contava então com quatro ótimos jogadores saídos das divisões inferiores do próprio clube: Paulo Roberto, China, Renato Gaúcho e Baidek.

Mas para trazer o Mundial Interclubes era preciso jogadores mais experientes. Para isso chegaram Mário Sérgio e Paulo César Caju. Entretanto, quem brilhou como nunca naquela decisão contra o Hamburgo foi o ponta-direita Renato. No primeiro gol, driblou o zagueiro uma, duas, três vezes antes de mandar a bola entre a trave e o goleiro. O time alemão chegou ao empate, mas, na prorrogação, ali estava ele de novo. De pé esquerdo. Renato fuzilou o gol adversário e garantiu o maior título que o Grêmio já conquistou.

Recebido em festa ao voltar de Tóquio, o time já encontrou afixada sobre a marquise do Estádio Olímpico a placa: "Grêmio campeão do mundo: nada pode ser maior" – provocação nada sutil aos colorados que não cansavam de lembrar a vantagem que levavam em títulos nacionais.

Na decisão mundial, o time entrou em campo com Mazarópi: Paulo Roberto, Baidek. De León e Paulo César; China, Osvaldo e Paulo César Lima; Renato, Tarciso e Mário Sérgio.

"Publicação dedicada a César Ferle, Redivo e toda cambada gremista, tequileros cruéis armados com tequila, limão e sal, daquela esbórnia da rua Chile em 2009. Saudade..."

Fonte: Wikipedia; Revista Placar.

Do Maracanã para o mundo

Flamengo, campeão mundial de 1981
Flamengo (1978 - 1983)

Em cada posição, um craque. Esta foi a receita que levou o Flamengo a se tornar o maior time que o Brasil viu jogar na virada dos anos 70. O Brasil e o mundo.

Foram quatro Campeonatos Cariocas (1978, 1979, o Especial de 1979 e 1981), três Brasileiros (1980, 82 e 83), uma Libertadores da América (1981) e um Mundial Interclubes (1981). A construção do time começou pelas mãos do técnico Cláudio Coutinho.

O Mengo contava com Zico, o maior craque hrasileiro de então, o goleiraço Raul e o zagueiro Rondinelli. Nos anos seguintes surgiram Júnior, Leandro, Mozer, Adílio, das divisões inferiores. Mas o clube não descuidou das contratações. A mais frutífera foi a do centroavante Nunes. o artilheiro das decisões.

Das inúmeras batalhas vencidas pelos rubro-negros, duas marcaram: sobre o violento Cobreloa, do Chile, na decisão da Libertadores (2 a O), e sobre o Liverpool (Inglaterra), 3 a O na decisão do Mundial Interclubes.

Raul Plasmann, Leandro, Marinho, Mozer, Júnior, Andrade, Tita, Adílio, Nunes, Zico e Lico.

Tri da alegria

O esquadrão que deu o primeiro tricampeonato ao Flamengo (1942-1944) reunia o que de melhor o futebol brasileiro havia produzido até então. Na zaga, a técnica de Domingos Da Guia; no meio-campo imperava o jogador mais completo antes do surgimento de Pelé, Zizinho; e no ataque havia Leônidas da Silva. Durante os três anos de campanha, Leônidas e Domingos dariam lugar a Silvio Pirillo e Quirino. Mas nada que pudesse atrapalhar o tricampeonato. Confira o timaço: Jurandir; Domingos Da Guia (Quirino) e Nilton; Biguá, Bria e Jaime; Valido. Zizinho, Leônidas (Pirillo), Perácio e Vevé.

Fonte: Revista Placar.

O homem que virou ele

Temos um amigo cigarra... Até aí tudo normal, como dizem os anormais. Mas é que esse amigo cigarra, no seu próprio entender, prevaricou. E prevaricou no violento. Imaginem vocês que, bastou que a "outra" (vejam vocês que monstro de cigarra, chama a esposa de "a outra")... bastou que "a outra" subisse para Petrópolis para ele alugar quarto num hotel muito bonzinho que tem portaria compreensiva.

Vocês estão seguindo o nosso raciocínio? Pois vamos em frente: de posse da chave do novo lar sumiu da residência oficial e foi à vida, se organizando em outras corriolas, muito sobre o animado, esquecido que mulher esposa é mulher bem informada, não somente pelo muito que investiga (com honrosas exceções), como também pelo muito de informativas que são as pessoas amigas, cujas gostam é de ver fogo na giranda do doutor.

Ainda estão nos acompanhando? Muito bem. Sigamos: a mulher soube, talvez antes que ele, do caso com a mariposa do luxo e do prazer — como diria o poeta... Sabem como é, marido é como boi solto, que se lambe todo.

Com quarto em hotel condescendente, com a mulher em Petrópolis, choveu moçoila. . .

Uma noite no "Hi-Fi", outra no "Drink", uma ida à Barra da Tijuca no carro de outro cigarra, para a clássica intoxicação com camarão, e lá se foi ele a simpatizar mais com esta do que com aquela até que... pimba — ficou de cacho.

Como, minha senhora? O que vem a ser "ficar de cacho"? É ficar sob o signo da amigação. A senhora desculpe, mas a forma grosseira de expressão foi para esclarecer melhor.

Um homem de cacho com mulher em Petrópolis não vai em casa nem para trocar de roupa. Dá uma única passada no lar, apanha um bolo de camisas, outro tanto de meias, pega o terno claro para quando não chover e o azul-marinho para quando chover e esquece de mudar a água do canário.

Tudo num táxi, parte feroz para o hotel mais camarada pouquinha coisa. Vanja vai, vanja vem, esquece até de subir para Petrópolis no fim-de-semana. Isto é imperdoável mesmo no pior dos cigarras e, no entanto, aconteceu com esse nosso amigo.

Resultado: passou o carnaval, veio a época do colégio das crianças e "a outra" se despencou serra abaixo, sabendo de tudo, inclusive com uma capa da revista Mundo Ilustrado, onde ele aparece de braços abertos para a objetiva, fantasiado de baiana rica.

Agora ele se despediu da mariposa do luxo e do prazer (jurou-nos que era um encanto de moça e não aceitou nem as duas notas de mil que ofereceu para calçar a saudade), pagou o hotel de porteirinho cego e retornou ao lar.

— Você não imagina o vexame. Lá ninguém fala comigo. O canário morreu de sede, ou de fome... sei lá. O cachorro, aquele desgraçado, que eu curei de bronquite, está me esnobando. Quando eu passo ele não levanta nem o focinho. Limita-se a abrir um olho... um olho de reprovação que me dá calafrios. Minha filha está muda.

— E sua mulher? — indagamos.

— Essa me chama de ele.

— Chama de quê?

— De ele. Se o almoço está na mesa, ela diz pra empregada: "avise a ele". Se o telefone toca, é a própria empregada que atende e diz pra minha mulher: "é para ele". Virei "ele" em minha própria casa.

Coitado do nosso amigo. Badalou muito. Agora agüente. Nisto de conseqüências, estamos com Tia Zulmira, quando disse: "Passarinho que come pedra, sabe o que advém".
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

História do passarinho

O que vocês passarão a ler é um lindo conto escrito por Tia Zulmira, nossa veneranda parenta e conselheira. Trata-se de obra para a literatura infantil, à qual a sábia e experiente senhora vem se dedicando agora, após o convite para participar de um concurso de histórias infantis promovido por um programa de televisão.

Cremos que não é necessário acrescentar que a boa senhora tirou o primeiro lugar. Mas, passemos ao conto:

"Era uma vez uma mocinha muito bonita, que morava num lugar chamado Copacabana. Era uma mocinha muito prendada e com muito jeito para as coisas. Estudiosa e obediente, freqüentava sempre o programa de César de Alencar, ia ao Bobs e adorava cuba-libre. Lia muito e gostava, principalmente, da Revista do Rádio e da Luta Democrática.

Todos elogiavam a beleza da mocinha. Ela tinha cara bonita, olhos bonitos, pele bonita, corpo bonito, pernas bonitas, figura bonita. Era toda bonita. Apesar disso, não era feliz, a mocinha. Ela sonhava com uma coisa, desde pequena — queria entrar para o teatro. Sua mãe sempre dizia que não valia a pena, que ela podia ser feliz de outra maneira, mas não adiantava. O sonho da mocinha bonita era entrar para o teatro. Só pensava nisso e colecionava fotografias de Virgínia Lane, Sofia Loren, Nelia Paula e Marilyn Monroe.

Um dia, a mocinha estava muito triste, porque não conseguia ver realizado o seu ideal, quando um passarinho chegou perto dela e perguntou:

— Por que é que você está triste, mocinha? Você é tão bonita. Não devia ser triste.

— Eu estou triste porque quero entrar para o teatro e não consigo — respondeu a mocinha.

O passarinho riu muito e disse que, se fosse só por isso, não precisava ficar triste. Ele havia de dar um jeito. E de fato, no dia seguinte, passou voando pela janela do quarto da mocinha e deixou cair um bilhetinho que trazia no bico. Era um bilhetinho que dizia: Fila 4, Poltrona 16.

A mocinha foi e num instante conheceu o empresário do teatro que, ao vê-la, se entusiasmou com sua beleza. Foi logo contratada, e já nos primeiros ensaios, todos elogiavam seu desembaraço. Ela ensaiou muito, mas não contou nada pra mãe dela.

Somente na noite de estréia é que, antes de sair, chegou perto da mãe e contou tudo. A mãe ficou triste ao ver a filha partir para o estrelato, mas ela estava tão feliz que não a quis contrariar.

E foi bom porque a sua filha fez sucesso. Foi muito ovacionada; todo mundo aplaudiu. Ela voltou para casa contentíssima e, quando ia metendo a chave no portão, ouviu uma voz dizer:

— Meus parabéns. Você é um sucesso.

Aí ela olhou pro lado, espantada e viu o passarinho que a ajudara, pousado numa grade. Ela notou que o passarinho dissera aquilo em tom amargo e quis saber:
   
— Passarinho, você agora é que está triste. Por quê?

Foi aí que o passarinho explicou que não era passarinho não. Era um príncipe encantado, que uma fada má transformara em passarinho.

— Oh, coitadinho! — exclamou a mocinha que acabara de estrear com tanto sucesso. — O que é que eu posso fazer por você?

O passarinho então contou o resto do encantamento. A fada má fizera aquilo com ele só de maldade. Para ele voltar a ser príncipe outra vez, era preciso que uma mocinha bonita e feliz o levasse para sua casa e o colocasse debaixo do travesseiro. No dia seguinte o encanto findava.

— Mas eu sou uma mocinha feliz. E foi você mesmo, passarinho, que disse que eu era bonita. Você e todo mundo.

E dizendo isso, apanhou o passarinho e entrou em casa com ele. Ajeitou-o bem, debaixo do travesseiro e, cansada que estava das emoções do dia, adormeceu.

No outro dia de manhã aconteceu tal e qual o passarinho dissera. Quando a mocinha acordou havia um lindo rapaz deitado a seu lado. Era o príncipe.

Esta, pelo menos, foi a história que a mocinha contou pra mãe dela, quando a velha a encontrou de manhã, dormindo com um fuzileiro naval.

Que, aliás, só não casou com a mocinha, porque já tinha um compromisso em Botafogo.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

Luiz Peixoto

Luiz Peixoto
Considerado o maior revistógrafo brasileiro de todos os tempos, Luiz Peixoto (1889-1973) fez brilhar nos palcos do teatro de revista não apenas os seus sambas. Letrista inspirado, criador de sucessos, era disputado por consagrados parceiros.

Em 1923, depois de dois anos em Paris, Luiz Peixoto lança no Rio de Janeiro um espetáculo com muito êxito, a revista Meia Noite e Trinta. O público lotava o Teatro São José, curioso por ver o que os críticos classificavam como a revista mais original que alguém escrevera até então no Brasil.

Luiz Carlos Peixoto de Castro, com 34 anos, estava destinado, ao longo de sua proveitosa vida, a interferir na cultura brasileira, tanto no teatro como na poesia .ou na música popular. Até morrer, com 84 anos, foi um respeitado criador.

Caricaturista na juventude, companheiro de Raul Pederneiras e Kalixto, encontrou no teatro de revistas o maior campo para seu talento. Ali, foi tudo. Autor, cenógrafo, compositor, diretor, diretor artístico, figurinista, mas sobretudo um homem voltado para as coisas brasileiras, principalmente a música.

Quando chegou da Europa, veio disposto a abrir espaço para substituir o uso musical de ritmos ultrapassados, pela utilização intensa de ritmos da atualidade, especialmente os das composições populares brasileiras, no dizer da pesquisadora Neyde Veneziano. Transformou-se, assim, no maior revistógrafo brasileiro.

Poeta inspirado, tornou-se letrista de um sem-número de músicas e parceiro de sambas memoráveis, lançados em revistas de sua autoria ou, mesmo de outros autores. É dele, Ai Ioiô (Linda flor), feita com Henrique Vogeler e Marques Porto, que consagrou Aracy Cortes, na revista Miss Brasil, em 1928.

Amigo de Carmen Miranda, desde a incursão da Pequena Notável no teatro de revista, fez para ela dois sambas que marcaram a carreira da estrela: Na batucada da vida, com Ary Barroso, e Voltei pro morro, com Vicente Paiva. Elizeth Cardoso consagrou-se com É luxo só, feita em sua homenagem, pela dupla Luiz Peixoto/Ary Barroso. Sílvio Caldas gravou, também dos dois, além do impecável samba Maria, o belíssimo Por causa dessa cabocla.

A força do samba Paulista de Macaé, de parceria com Marques Porto, foi tanta que, lançado na revista Prestes A Chegar, em 1926, tornou-se ele próprio uma revista em 1927. Inovando em sua estréia, após retorno da Europa, sempre moderno, Luiz Peixoto foi acima de tudo um compositor com a alma no palco.

Raul pederneiras_Luiz peixoto_Kalixto
Ilustração: Três amigos, três caricaturistas, três artistas: Raul Pederneiras, Luiz Peixoto e Kalixto.

Fonte : História da MPB - Ed. Globo

Luís Alberto de Abreu

Luís Alberto de Abreu
 Luís Alberto de Abreu, dramaturgo, nasceu em São Bernardo do Campo, em 5 de março de 1952. Começou a carreira como dramaturgo e, depois, passou a escrever roteiros para cinema e TV.

A partir dos anos 80, destacou-se como autor ligado ao grupo Mambembe, com as peças Foi Bom, Meu Bem? e Cala a Boca já morreu

Em seus 28 anos de carreira, já conta com mais de 40 peças teatrais – escritas e adaptadas – em seu repertório, com destaque para a antológica Bella Ciao, as premiadas Borandá e Auto da paixão e da alegria, ambas encenadas pela Fraternal Companhia de Arte e Malas Artes; e O Livro de Jó, montada pelo Teatro da Vertigem.

Como roteirista se destacou no cinema com os filmes Maria (1985); Lila Rapper (1997), juntamente com Jean Claude-Bernardet; e os premiados Kenoma (1998) e Narradores do Vale de Javé (2000); além de Andar às Vozes (2005), juntamente com Eliane Caffé

Já para TV, escreveu os roteiros de duas minisséries globais: Hoje é Dia de Maria (2005) e A Pedra do Reino (2006). Foi, ainda, professor de dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André por oito anos e dramaturgo residente no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), sendo o autor de peças levadas à cena por Antunes Filho, como Rosa de Cabriúna e Xica da Silva

O autor recebeu prêmios, como quatro prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA – 1980, 1982, 1985, 1996), Prêmio Mambembe do Instituto Nacional de Artes Cênicas (1982), Prêmio Molière da Companhia Air France (1982), Prêmio Estímulo de dramaturgia para desenvolver o projeto de pesquisa sobre Comédia Popular Brasileira (1994), Prêmio Mambembe (1995), Prêmio Apetesp (1995), Prêmio Panamco (2002) e Prêmio Shell (2004).

Fonte: Wikipedia.

O esquecido

Era um escritor católico. Há um mês, já com sessenta e poucos anos, caiu doente.

Os sintomas eram vagos, incaracterísticos, triviais. Desde o primeiro momento, porém, foi varado por uma certeza inapelável: — "Vou morrer". Não teve medo da morte. Morreria mil vezes, se fosse o caso. Sua angústia era esta: — ser ou não ser Esquecido.

Piorava, de quinze em quinze minutos. E começou o desfile de médicos. Fez, à queima-roupa, a pergunta cruel: — "Doutor, quanto tempo dura?". Como era um médico da família, o outro fingiu, com nobre descaro, um otimismo impossível. Riu: — "Mas que é isso? Você vai ficar bom".

O doente odiou o médico e não perguntou mais nada. Olhava para a mulher e pensava: — "Vai-me esquecer". Seria esquecido pela mulher, filhos, amigos e vizinhos.

Uma tarde, apanhou um jornal. Olhava na manchete sem ver; e imaginava que, no aniversário de sua morte, nenhum jornal pingaria uma linha sobre sua memória.

Fui, um dia, visitá-lo. Disse-me, então, que descobrira um remédio contra a insônia (a doença tirara-lhe o sono).

Durante a madrugada, enquanto os outros dormiam, distraía-se imaginando o próprio velório. Suspirou: — "Ah, o pior na capelinha não é a capelinha. Nem os círios elétricos". O pior, segundo ele, era um pequeno bar que lá funcionava.

Aí estava a impiedade total. A morte tinha, por fundo, o alarido de xícaras e pires. A dois passos do sagrado, do eterno, parentes, amigos, curiosos pediam ou um guaraná ou um grapete, ou uma coca-cola, ou um sanduíche.

Quando me despedi, já começava a dispnéia pré-agônica.

Mas ainda me disse, sem rancor, apenas informativo: — "Você vai-me esquecer". Neguei, vermelhíssimo da própria mentira: — "Absolutamente. Você pensa que... Ora!". A dona da casa levou-me até à porta.

Passei por uma sala e eis o que vi: — dois filhos do moribundo jogando futebol de botão. E me ocorreu uma reflexão a um só tempo cruel e vil: — "Aqueles ali já esqueceram".

Lá fora, tomei o primeiro táxi. Disse: — "Cidade". E que euforia quando o carro pôs uma distância progressiva entre mim e a agonia, entre mim e a morte. No meio da viagem, ocorreu-me um verso não sei de quem: — "Tão curto o amor e tão longo o esquecimento". Quem escreveu isso? Não sei, ou por outra: — agora me lembro. É de Neruda, o Neruda da primeira fase. Tão curto o amor e tão longo o esquecimento. É espantoso que, algum dia, Neruda tenha amado.

Dois dias depois, ou no dia seguinte, um amigo comum bateu o telefone para mim: — "Já sabe? Fulano morreu".

Lembrei-me de Neruda e passei de Neruda para a frívola memória dos homens. O meu informante ainda acrescentou: — "Já está na capelinha". Não me saía da cabeça o futebol de botão, enquanto um pai morria a dois passos.

Horas depois, entrava eu na capelinha.

É um erro — era o que ia pensando —, é um erro a simultaneidade de velórios. De vez em quando, o parente, ou amigo, ou a esposa, vem espiar o velório vizinho. Ou se, por escrúpulo, pudor, não vem espiar, tem essa vontade. O escritor católico estava no andar de cima. Vou subindo (contando os degraus com uma irremediável pusilanimidade cardíaca).

Antes de ver o morto, uma lúgubre curiosidade levou-me ao pequeno bar (e isso me daria, em seguida, um sentimento de culpa pueril e terrível). O escritor não exagerara. Realmente, era exato o alarido de xícaras e pires.

As pessoas interrompiam a dor e vinham tomar um cafezinho, ou um refrigerante. Alguém pedia um sanduíche de salaminho. E, de fato, a morte tinha, por fundo, aquele pequeno bar fremente como uma colméia de xícaras e pires.

E, de novo, eu pensava em Neruda. Queria-me parecer que o esquecimento começava antes da morte. Cada um de nós esquece tanto, tanto. Há os que são esquecidos antes da própria doença. Andam por aí, salubérrimos, e nós os esquecemos como se jamais tivessem existido. E, súbito, começo a pensar em Bob Kennedy. (Preciso datar esta minha experiência: — tudo aconteceu há dois dias).

Bob Kennedy era um morto tão recente e tão antigo. Não se passou nem uma semana, não haveria tempo sequer para a missa do sétimo dia. Não sei se os outros povos têm, como o nosso, essa vocação para a missa do sétimo dia. E vejam vocês: — as primeiras 24 ou, digamos, as primeiras 48 horas criaram entre nós e o crime, entre nós e o morto, toda uma distância infinita, milenar. Mais uns quinze dias, e os dois assassinatos parecerão simultâneos: — o de Bob Kennedy e o de Pinheiro Machado. Com um mês, já não saberemos quem levou a punhalada e quem levou o tiro, se o gaúcho, se o americano.

Mas onde percebi o esquecimento de Bob Kennedy foi, domingo, no Estádio Mário Filho. Iam jogar Vasco x Botafogo.

Embora fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto, quase 200 mil pessoas estavam ali. (E, novamente, me ocorre o verso parnasiano parecido com o do astronauta: — "A multidão é azul". Realmente, nenhum céu da Itália será mais azul do que a multidão de domingo). Éramos 200 mil pessoas e ninguém, ali, exatamente ninguém, pensava em Bob Kennedy. Era quase o morto da véspera. A notícia do atentado feriu de espanto o Brasil inteiro. E a multidão de meio bilhão e quebrados esquecia o jovem até seu último vestígio.

E o pior foi quando o locutor do Estádio Mário Filho anunciou o minuto de silêncio pela morte de Bob Kennedy.

Ora, no ex-Maracanã vaia-se até minuto de silêncio. Pelo amor de Deus, não façam outro minuto de silêncio num grande clássico. Olhei em torno. Nem todos se levantaram. Houve um muxoxo unânime, ou quase (e um muxoxo de 200 mil pessoas é ensurdecedor). E, súbito, o mártir passou a ser o importuno, o inconveniente, que vinha adiar por todo um minuto interminável o começo do jogo. Nunca houve um minuto de silêncio tão ressoante de assovios, piadas e milhões de ruídos fantásticos e inumanos.

Pior foi lá, nos Estados Unidos, na catedral onde o corpo ficou exposto. Aqui, no Estádio Mário Filho, estavam presentes só 180 mil pessoas. Na catedral, 1 milhão de pessoas desfilaram diante do caixão.

Eis o que eu queria notar: — o velório teria de ser um ato de amor, solitário, exclusivo, sagrado ato de amor.

Que miserável impostura atribuir às 180 mil daqui e às 900 mil de lá qualquer sentimento de amor. (O velório de 1 milhão de pessoas é gelado como um deserto siberiano).

Foi apavorante a solidão de Bob Kennedy no jogo Vasco x Botafogo.
[12/6/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

As duas cabeças

Sou um profissional de velhas gerações. Mas a "jovem revolução" está aí. E quero crer que, em futuro bem próximo, eu e o Carlos Tavares seremos dirigidos pelas estagiárias do Jornal do Brasil. Imaginem vocês uma imprensa de meninas.

E a redação será uma paisagem de bordados, de tapete, com ninfas, ou sílfides, sei lá, bebendo em cascatas artificiais.

Fiz este comentário parnasiano e já mudo de tom. Eis o que eu queria dizer: — três vezes por semana, sou atropelado por uma estagiária. É uma fatalidade. Não atendo telefone, fujo, não estou, não volto mais. Mas a estagiária é invencível. Acaba por me descobrir, e nas horas e locais os mais surpreendentes.

Outras vezes sou eu próprio que, por fraqueza de caráter, ou por indulgência de velho, as atendo. Foi o que aconteceu ontem.

Bateu o telefone e o contínuo me avisa: — Jornal do Brasil. Tinha de ser uma estagiária. Eu podia ter dito como de outras vezes: — "Não estou" ou "Estou no café".

Mas ontem era um dia excepcional e crudelíssimo. Pela manhã, o jornaleiro me assombrou: — "Mataram Kennedy". Por um momento, não soube o que pensar, o que dizer. Quase perguntei: — "Outra vez?". Os dois fatos estavam justapostos na minha cabeça: — Bob e John. Eu já não sabia se eram dois ou um só. Se era o presidente que morria novamente, e não mais no Texas, agora em Los Angeles. O jornaleiro, numa gloriosa excitação, arqueja: — "O rádio está dando! O rádio está dando!".

Não era ainda a morte. Bob Kennedy apenas agonizava. Talvez não morresse. Vim para a cidade já desesperado. E, no Centro, fui ouvindo por toda a parte: — "Um tiro na cabeça".

Se fosse no coração, ninguém diria "um tiro no coração". Mas o assassino de um Kennedy e o assassino do outro Kennedy quiseram a cabeça. Vocês entendem? Quiseram estourar o cérebro.

Como se o morto, morto apenas e ferido no peito, e continuasse pensando, pensando, cadáver pensando, enterrado e pensando, eternamente.

Portanto, era preciso parar a cabeça. Foi assim no Texas. De repente, Jacqueline viu, a seu lado, um marido sem queixo. O presidente era, sobretudo, o queixo forte, crispado, vital. E, agora, em Los Angeles, num hotel vagabundo (não seria hotel vagabundo. Mas a minha visão do crime exige o lívido corredor de um hotel vagabundo), um jovem jordaniano atira muitas vezes. E Bob Kennedy há de ter sentido, antes do medo, o espanto. No corredor, houve uma constelação de estampidos.

Foi, como queria o assassino, uma bala na cabeça.

Não sei por que estou repetindo o que todas as primeiras páginas já disseram e repisaram. Venho para a redação e sou chamado pelo Jornal do Brasil. De fato, era uma estagiária. Entre parênteses, acontece, entre mim e o velho órgão, uma coisa singularíssima. Quase todos os dias uma estagiária me entrevista. No dia seguinte: — não sai a entrevista. É espantoso, mas exato. Não sai, nem a tiro.

Eu opino sobre tudo, desde o Zé da Ilha no barraco, ao arquiduque da Áustria em Sarajevo. E a minha opinião não aparece. Digo as coisas mais ousadas, certo de que ficarão para sempre inéditas.

Naturalmente, o Jornal do Brasil havia de querer o meu ponto de vista sobre o crime. (E, decerto, como das outras vezes, não publicaria uma linha). Muito bem. Sento-me e apanho o telefone.

"Alô", digo. Uma voz feminina pergunta: — "Nelson Rodrigues?". Sou eu, sim. Há situações em que um homem, qualquer um, passa a ser um momento da consciência humana. Ao telefone, eu me sentia, exatamente, esse momento da consciência humana. Já imaginava uma frase. Ia dizer que todos os males pessoais e coletivos têm uma origem obrigatória: — o desenvolvimento.

O curioso é que responderia antes da pergunta; e diria então: — "A civilização é responsável por mais este crime que...". Mas não cheguei a falar. A estagiária falou antes: — "Nelson Rodrigues, eu queria a sua opinião sobre...". Esperei ouvir o nome do Kennedy. A menina continuou: — "Sua opinião sobre o jogo Vasco x Botafogo".

Estou trêmulo de espanto. Insiste, risonhamente: — "Qual é seu palpite?". Estou calado: — "Também queria um palpite seu sobre Flamengo x Bonsucesso, Fluminense x América" etc. etc.

Dei-lhe os palpites pedidos, que o Jornal do Brasil não vai publicar, absolutamente. Saí do telefone humilhado e ofendido. Pensava no dia em que eu e o Carlos Tavares estaremos sob as ordens das estagiárias. Bem, agora tentarei resumir o que não disse à jovem do Segundo Caderno. Vamos lá.

Há pouco tempo, vi um sacerdote afirmar com a ênfase de uma manchete: — "Paz é desenvolvimento". O sacerdote falava com a certeza forte de um Moisés de Cecil B. de Mille.

Disse "Paz é desenvolvimento" e acrescentou-lhe um patético ponto de exclamação. Eis o que eu diria à estagiária: — "Aí está uma opinião falsamente acaciana". Parece o óbvio, mas nunca foi e nunca será o óbvio.

Repito: — é o falso Acácio e o falso óbvio. Justa será a verdade inversa: — "O desenvolvimento não é a paz". Ou: — "O desenvolvimento é a guerra" ou, ainda, "O desenvolvimento criou a antipessoa". A estagiária não se espantaria, porque as estagiárias são insuscetíveis de espanto. E eu diria mais: — "O desenvolvimento é a agressividade, a angústia, a mania de grandeza, o ódio e, ainda, a guerra interna e externa, a mania homicida, o inferno sexual, a morte da alma".

As duas nações mais desenvolvidas do mundo, os Estados Unidos e a Rússia, estão sempre a um passo da guerra nuclear. Dizem, até, que um equívoco pode liquidar a vida e o homem. Falam da Suécia. Mas a Suécia é uma festa de suicidas. Na melhor das hipóteses o desenvolvimento é o tédio mortal. Agora, matam o segundo Kennedy. Dirá alguém que na Rússia não há crime político.

Ao que eu responderia: — só há crime político. Nos EUA, qualquer um mata. E, por trás da Cortina de Ferro, só o Estado mata. Só o Estado é assassino. Mas o que importa notar é a brutal solidão do homem desenvolvido. A feroz infelicidade. E as lesões de sentimento. E as trevas interiores que ninguém pode desafiar em vão.

Não sei quem disse, ou talvez ninguém tenha dito: — "O desenvolvimento é o demônio".

[7/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Caso do marido doido

Quando a mulher entrou em casa, vinda de um cabeleireiro que não tivera tempo de atendê-la, foi para surpreender o marido em flagrante... com a empregada. Era uma empregada nova (no emprego e na idade), admitida dias antes para o serviço de copeira e nunca — está claro — de cooperar.

Assim, surpreendida em afazeres que não eram os seus, a empregada soltou um grito. Foi ela a primeira pessoa ali naquela sala a dar com a recém-chegada (e, pior que recém-chegada... patroa) parada na porta de entrada.

O grito era um misto de espanto e terror e tão alto saiu, que o marido deu um pulo e caiu em pé, no meio do tapete, com uma perna só. A outra perna ficou no ar, suspensa, como que a aguardar os acontecimentos.

A cena durou uns cinco segundos, se tanto. Depois a copeira correu lá para dentro e os dois — marido e mulher — continuaram parados: ele ainda numa perna só, de olhos vidrados, sem mover um músculo. Aparentemente não respirava, sequer.

A primeira palavra que a mulher disse foi "francamente". A segunda foi "cretino". O "francamente" era num tom entre enojado e raivoso. E mais não disse porque o marido mexia-se, afinal. Trocou a perna que estava no ar pela que estava no chão e saiu pulando num pé só. Deu uma volta completa na sala e se dirigiu para a porta do corredor, rumo ao elevador.

A mulher ainda esperou que ele voltasse, mas quando percebeu a demora precipitou-se pelas escadas abaixo, já prevendo o que aconteceria. Ao chegar ao portão, ele já estava lá do outro lado da rua nuzinho, como Deus o fizera, sempre a pular como um saci.

Enlouqueceu, de certo. Tido e havido, há mais de dez anos, como um marido exemplar, ao ser surpreendido em flagrante com a empregada, o choque fora demasiado grande para ele... e enlouquecera. Claro que enlouquecera. Lá ia ele a pular, em direção à praça. Agora gritava a plenos pulmões:

—   Cauby! Cauby! Cauby!

Só doido mesmo. Ele detestava Cauby.

Em seguida mudou de grito. Passou a berrar:

—   Flamengo, Flamengo, Flamengo.

A mulher sabia que ele era Vasco e pensou consigo mesma que felizmente não havia ninguém na rua, com exceção de um gari que até há pouco varria os buracos da calçada e agora encostara a vassoura no muro e pusera as mãos nas cadeiras para melhor apreciar aquele estranho rubro-negro.

A mulher tentara em vão trazê-lo de volta para casa. Ele se desprendia de suas mãos e cada vez pulava mais alto. Somente o estribilho é que mudara. Agora gritava:

—   É o maior! É o maior! É o maior!

A mulher não sabia quem era o "maior", se Cauby ou o Flamengo. Detalhe — de resto — sem importância, diante da idéia de que dentro em breve chegariam outras pessoas, atraídas pelos gritos. Tinha que levá-lo de volta urgentemente. Apelou para o gari, mas este não estava muito propenso a se meter com doido.

—   Que é que o senhor está fazendo aí parado? — perguntou a mulher para o gari.

Nem o gari sabia o que estava fazendo na rua. Mesmo assim — por hábito — respondeu que sua função era de lixeiro. E a mulher, que trazia viva na mente a cena da sala, comentou:

—   Este homem não deixa de ser lixo também.

Graças a esta observação, o gari recolheu-o. Agora vinha mais calmo. Já caminhava direito e o acesso de loucura parecia ter passado, quando, no elevador, seguro pela mulher à direita e pelo gari à esquerda, começou a recitar Shakespeare em francês. Embora nu, segurava uma túnica imaginária e se dizia Marco Antônio:

—   Cétait le plus noble Romain d'eux tous. Sa vie fut noble, et les divers éléments étaient si bien mêlés en lui que la nature pouvait se lever, et dire à 1'univers entier: "Celui-là était un homme!"

Finalmente a mulher, o gari e Marco Antônio chegaram ao seu destino. A primeira deu uma gorjeta ao segundo e carregou o Imperador para o quarto, Imperador que já não era Marco Antônio, pois, contrariando a História Universal, fora substituído por César, a murmurar em tom de lamento:

—   Et tu Brutus! Et tu Brutus!

E a dizer estas três palavras ficou, até a chegada dos parentes. Todos, um por um, tentaram conversar com ele sem nada conseguir. Depois foi chamado um psiquiatra, o único que se fez ouvir e que, ao sair do quarto, aconselhou um mês de repouso num sanatório para doentes nervosos.

O marido foi, calado e triste. Um mês e pouco depois estava de volta, com uma recomendação expressa dos médicos para que, de modo nenhum, comentassem com ele o caso da empregada.

E, neste instante, deitado na cama, o marido, aparentemente distraído, pensa nos acontecimentos dos últimos tempos. Não há dúvida de que representara bem o seu papel de louco. Até os médicos foram na conversa. Mas, pouco a pouco, sua atenção é desviada para os movimentos da nova copeira que — inocentemente — espana os móveis. Já ia chamá-la suavemente pelo nome quando se lembrou que a mulher saíra para ir ao cabeleireiro e bem podia voltar antes da hora, caso não fosse atendida. Mesmo assim chamou a copeira e esta, quando já vinha vindo, recebeu ordem para trazer um café.

Quando ela saiu do quarto, respirou fundo e pensou:

—   Será que eu fiquei maluco mesmo?

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

A batalha do Leblon

Foi à noitinha, aí por volta das 20 horas, que a notícia correu pelas esquinas do Leblon, ganhou amplitude, espalhou-se pelo bairro e foi explodir como uma bomba na Delegacia de Polícia. Os bichos do circo armado perto da pracinha tinham picado a mula. Foi aí que começou a ignorância. O delegado não estava, é claro. O comissário também, é lógico, e a coisa sobrou na mão do prontidão.

—   Chamem a Polícia — berrou o infeliz.

—   Mas a Polícia somos nós — advertiu um outro guarda.

Refeito da distração, o prontidão começou a procurar seus superiores para saber como agir. À muito custo conseguiu telefonar para um primo da noiva do comissário e localizar o distinto.

—   Peçam uma patrulha do Exército — recomendou o comissário.

Pediu-se. Mas havia outras corporações disponíveis. E apelou-se para o Corpo de Bombeiros, para a Polícia Militar, Radiopatrulha e — ninguém até agora sabe explicar por que — um carro-socorro da Light.

—   Talvez seja para evitar curto-circuito no leão — disse um mulato magrela, com cara de gozador.

O elefante, segundo informações de um soldado desconhecido, seguira rumo à praia. Elefante, ao que se presume, não nada. Ou será que nada? O povo dava palpites e, como sempre, do povo saiu um mais bem informado pouquinha coisa, para dizer que na África nada sim, mas não era o caso deste, cujo se chamava Bômbolo, e que nascera num outro circo e nunca vira água a não ser em balde.

Já então havia uma multidão apreciando as manobras. A praça era uma das trincheiras, o Jardim de Alá era a retaguarda das tropas. Pela rua principal não passaria nenhum bicho que mata gente, salvo lotações, mas estes têm licença pra matar.

Um homem de porte marcial, com muito mais estrelas do que os outros, reclamava contra a demora do tanque. Sim, ele requisitara um tanque-de-guerra e isto começou a parecer ridículo a uns tantos e emocionante para outros. A preta gorda, que mal acabara de servir o jantar dos patrões, palpitou:

—   Só onça tem umas quatro.

Mas o garoto que estava perto desmentiu, dizendo que estava farto de ir àquele circo e nunca vira onça nenhuma. Foi quando chegou o tanque. Não sabemos se vocês já repararam que tanque-de-guerra no asfalto fica mais deslocado do que — digamos — mulher nua dentro de um elevador do Ministério da Fazenda. O povo começou a desconfiar, vendo o tanque manobrando, que a coisa ia ser mais cômica do que trágica.

—   O tigre foi pra Praia do Pinto — disse um crioulo.

—   Pra Praia do Pinto vai nóis que semo teso — retrucou seu companheiro, que usava camisa de meia e touca.

Nessa altura apareceu correndo, lá do outro lado da praça, um soldado. Vinha acelerado e parou na frente do homem que tinha mais estrelas do que os outros. Fez uma continência legal e avisou que não havia elefante na praia. Imediatamente recebeu ordens de ir pelas casas avisando para que todo o mundo trancasse as portas por causa dos leões.

—   Manda espiar primeiro se o leão já não entrou, senão é fogo na jacutinga, trancar porta com leão dentro — gozou o mulato.

O soldado explicou que não era preciso, porque não tinha leão. Nem leão, nem tigre, nem onça. Apenas um "popótis".

—   Hipopótamo — corrigiu o que tinha mais estrelas do que os outros.

Então — já conhecido o inimigo — começou o cerco ao "popótis". Dos que estavam nas proximidades, poucos sabiam o que era um hipopótamo. Uns diziam que era maior do que elefante, outros diziam que era menor, mas muito mais feroz. E nessa troca de impressões ficaram até que surgiu um outro soldado que, vindo correndo em diagonal pela praça, bateu continência e disse pro de mais estrelas:

—   O "popótis" se rendeu-se.

—   Hipopótamo — voltou a corrigir o chefe, deixando passar a abundância de pronomes.

Soube-se que, realmente, o hipopótamo fora localizado dentro de um jardim, numa residência grã-fina, comendo girassóis. E logo depois apareceu na esquina o dono do circo, puxando um bicho que não era muito maior que um cachorro dinamarquês e que o acompanhava de passo pachorrento. Decepção geral, inclusive dos soldados, preparados para mais uma batalha que, como tantas outras, não houve.

—   Ainda por cima o bicho come flor — disse a preta gorda.

—   Come flor sim, uai! — explicou o de touca. — Então tu não sabia que "popótis" é veterinário?
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora