domingo, 11 de setembro de 2011

Os idiotas da objetividade

Sou da imprensa anterior ao copy desk. Tinha treze anos quando me iniciei no jornal, como repórter de polícia.

Na redação não havia nada da aridez atual e pelo contrário: — era uma cova de delícias. O sujeito ganhava mal ou simplesmente não ganhava. Para comer, dependia de um vale utópico de cinco ou dez mil-réis. Mas tinha a compensação da glória.

Quem redigia um atropelamento julgava-se um estilista. E a própria vaidade o remunerava. Cada qual era um pavão enfático. Escrevia na véspera e no dia seguinte via-se impresso, sem o retoque de uma vírgula. Havia uma volúpia autoral inenarrável. E nenhum estilo era profanado por uma emenda, jamais.

Durante várias gerações foi assim e sempre assim. De repente, explodiu o copy desk. Houve um impacto medonho. Qualquer um na redação, seja repórter de setor ou editorialista, tem uma sagrada vaidade estilística. E o copy desk não respeitava ninguém. Se lá aparecesse um Proust, seria reescrito do mesmo jeito. Sim, o copy desk instalou-se como a figura demoníaca da redação.

Falei no demônio e pode parecer que foi o Príncipe das Trevas que criou a nova moda. Não, o abominável Pai da Mentira não é o autor do copy desk. Quem o lançou e promoveu foi Pompeu de Sousa. Era ainda o Diário Carioca, do Senador, do Danton. Não quero ser injusto, mesmo porque o Pompeu é meu amigo. Ele teve um pretexto, digamos assim, histórico, para tentar a inovação.

Havia na imprensa uma massa de analfabetos. Saíam as coisas mais incríveis. Lembro-me de que alguém, num crime passional, terminou assim a matéria: — "E nem um goivinho ornava a cova dela". Dirão vocês que esse fecho de ouro é puramente folclórico. Não sei e talvez. Mas saía coisa parecida. E o Pompeu trouxe para cá o que se fazia nos Estados Unidos — o copy desk.

Começava a nova imprensa. Primeiro, foi só o Diário Carioca; pouco depois, os outros, por imitação, o acompanharam.

Rapidamente, os nossos jornais foram atacados de uma doença grave: — a objetividade. Daí para o "idiota da objetividade" seria um passo. Certa vez, encontrei-me com o Moacir Werneck de Castro. Gosto muito dele e o saudei com a mais larga e cálida efusão. E o Moacir, com seu perfil de lord Byron, disse para mim, risonhamente: — "Eu sou um idiota da objetividade".

Também Roberto Campos, mais tarde, em discurso, diria: — "Eu sou um idiota da objetividade". Na verdade, tanto Roberto como Moacir são dois líricos. Eis o que eu queria dizer: — o idiota da objetividade inunda as mesas de redação e seu autor foi, mais uma vez, Pompeu de Sousa. Aliás, devo dizer que o copy desk e o idiota da objetividade são gêmeos e um explica o outro.

E toda a imprensa passou a usar a palavra "objetividade" como um simples brinquedo auditivo. A crônica esportiva via times e jogadores "objetivos". Equipes e jogadores eram condenados por falta de objetividade. Um exemplo da nova linguagem foi o atentado de Toneleros. Toda a nação tremeu. Era óbvio que o crime trazia, em seu ventre, uma tragédia nacional. Podia ser até a guerra civil. Em menos de 24 horas o Brasil se preparou para matar ou para morrer. E como noticiou o Diário Carioca o acontecimento?

Era uma catástrofe. O jornal deu-lhe esse tom de catástrofe? Não e nunca. O Diário Carioca nada concedeu à emoção nem ao espanto. Podia ter posto na manchete, e ao menos na manchete, um ponto de exclamação. Foi de uma casta, exemplar objetividade. Tom estrita e secamente informativo. Tratou o drama histórico como se fosse o atropelamento do Zezinho, ali da esquina.

Era, repito, a implacável objetividade. E, depois, Getúlio deu um tiro no peito. Ali estava o Brasil, novamente, cara a cara com a guerra civil. E que fez o Diário Carioca? A aragem da tragédia soprou nas suas páginas? Jamais.

No princípio do século, mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal. (Segundo me diz o luso Álvaro Nascimento, o rei tinha o olho perdidamente azul). Aqui, o nosso Correio da Manhã abria cinco manchetes. Os tipos enormes eram um soco visual. E rezava a quinta manchete: "HORRÍVEL EMOÇÃO!". Vejam vocês: — "HORRÍVEL EMOÇÃO!".

O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: — o fato e a sua cobertura.

Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção popular. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy.

Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe.

O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto da manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a tragédia, entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.

O Jornal do Brasil, sob o reinado do copy desk, lembra-me aquela página célebre de ficção. Era uma lavadeira que se viu, de repente, no meio de uma baderna horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira veio espiar a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro; e veio para dentro ensaboar a sua roupa suja. Eis o que eu queria dizer: — a primeira página do Jornal do Brasil tem a mesma alienação da lavadeira diante dos napoleões e das batalhas.

E o pior é que, pouco a pouco, o copy desk vem fazendo do leitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um se transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 80 milhões de copy desks? Oitenta milhões de impotentes do sentimento.

Ontem, falava eu do pânico de um médico famoso. Segundo o clínico, a juventude está desinteressada do amor ou por outra: — esquece antes de amar, sente tédio antes do desejo. Juventude copy desk, talvez.

Dirá alguém que o jovem é capaz de um sentimento forte. Tem vida ideológica, ódio político. Não sei se contei que vi, um dia, um rapaz dizer que dava um tiro no Roberto Campos. Mas o ódio político não é um sentimento, uma paixão, nem mesmo ódio. É uma pura, vil, obtusa palavra de ordem.

[22/2/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Velhos espartilhos

Cada época se assoa de uma certa maneira. (Não falo da grã-fina atual, que não se assoa, nem usa lenço. Na belle époque, porém, a mulher não tinha esse pudor nasal. Por exemplo: — numa frisa de ópera, uma bela senhora puxava o lenço e, diante da platéia interessada, assoava-se com um som de trombeta. Era sublime).

Já as gerações seguintes tinham outros escrúpulos e recatos. E uma bonita senhora só usava o lenço em último recurso, e quando a coriza já pingava. Mas não havia o som comprometedor. Em nossos dias, chegamos à solução ideal: — uma grã-fina não usa nem lenço, nem som, nem coriza.

Até hoje, que me lembre, não vi nenhuma capa de Manchete com sinusite.

Mas, assim como uma época tem um estilo para se assoar, usa outro para se vestir ou para se despir. Eis a pergunta que me faço: — como se veste ou como se despe a presente geração? A rigor, todo mundo está mais interessado em se despir. Vivemos a mais despida das épocas.

Na minha infância profunda, o Brasil inteiro cantava uma modinha que, entre outros, tinha o seguinte verso: "Cobre, me cobre, que eu tenho frio". Ah, eu andava pelos quatro, cinco anos. Não percebia a insinuação erótica, nem desconfiava que havia, ali, uma nudez confessa. "Cobre, me cobre, que eu tenho frio." Hoje, nenhuma menina ou senhora está interessada em se cobrir. A nudez feminina perdeu todo o suspense e todo o mistério.

Nas minhas Memórias contei um dos mais violentos traumas de minha infância. Foi numa batalha de confete da praça Saenz Peña. Teria seis anos, ou cinco, talvez. Cinco. Em cima do meio-fio, atracado às saias de uma vizinha, eu espiava o corso. E, de repente, fez-se, na praça, um silêncio ensurdecedor. Sim, foi um silêncio de se ouvir em toda a cidade. Lá adiante vinha um carro aberto; e, dentro dele, uma odalisca. Mas odalisca era o de menos. Seria bonita, feia, ninguém sabe. O patético é que havia uma abertura na fantasia, um decote abdominal. E, por aí, pela modestíssima nesga de carne — irrompia o cavo umbigo. Daí o assombro total.

Eis o que eu queria dizer: — a primeira nudez que eu vi, na minha vida, foi um umbigo. Há entre mim e essa batalha de confete toda a imensa, espectral distância de meio século. Cinqüenta anos. Pois, até hoje, o umbigo pretérito ainda atropela meus sonhos.

Hoje, a nudez não custa nenhum esforço. Com dois ou três movimentos, qualquer uma se despe. É, se assim posso dizer, uma nudez fulminante. Na época do espartilho, não.

Eu fui, confesso, um menino fascinado pelo espartilho. Já com dez anos, subi, certa vez, no sótão lá de casa. Morávamos, então, em Copacabana, na rua Inhangá, nos fundos do Copacabana Palace. Na casa do lado, havia um menino chamado Edgard, que é, hoje, se não me engano, engenheiro.

Mas deixemos o Edgard. Subi ao sótão e encontrei lá uma mala cheia de roupas antigas, exatamente roupas da belle époque. No meio de velhas plumas, de chapéus espectrais, descobri um espartilho, cor-de-rosa. Muitos anos depois, escrevi minha peça Vestido de noiva. E a heroína também sobe ao sótão, também abre uma mala da belle époque e também descobre um espartilho. (Mas estou misturando as coisas).

O espartilho explica todo um comportamento feminino. Do mesmo modo, o fraque influía nas maneiras, idéias e sentimentos masculinos. O homem de fraque estava sempre ereto, de fronte alta, como se estivesse ouvindo o Hino Nacional. Não sei se me entendem, mas acho que o espartilho criava entre a mulher e sua nudez, entre a mulher e o pecado, uma distância física e psíquica. Despir-se era um esforço, uma paciência, quase um martírio. E uma bonita senhora deixava de ser uma Ana Karenina — por preguiça.

E outra coisa: — assim como influía nas maneiras e sentimentos da mulher, o espartilho fazia o seu tipo físico.

Pode parecer exagero. Nem tanto, nem tanto. Como se sabe, cada época tem seus quadris típicos. Antes da primeira batalha do Marne e até à primeira batalha do Marne, a brasileira tinha outros flancos. Uma menina de catorze anos precisava pôr-se de perfil para atravessar as portas.

O sujeito olhava a mulher e via, nos seus quadris fortes, uma generosa promessa de fecundidade. Nada mais normal do que uma mulher ter oito filhos. Lembro-me de mães de vinte, 22 filhos. Hoje, a partir dos dez, a mãe recebe um prêmio do Chacrinha, medalha, o diabo. Mas era a brasileira. O casal que parava no primeiro filho arrancava os cabelos de vergonha e frustração.

Em nossos dias, cabe a pergunta alarmada: — onde estão os quadris? Não se pode nem falar em "cadeiras", porque não há mais cadeiras. E, súbito, esbarramos numa realidade surpreendente: — o tipo manequim. Ele se multiplica por toda a parte. Está na PUC, na praia, nos colégios, nas calçadas. A beleza sem quadris, sem peso, sem busto e, numa palavra, o manequim.

Outro dia, um amigo meu, desesperado, bramava: — "A brasileira nunca foi manequim!". Bufei: — "Nunca". Mas tanto eu como o meu amigo somos vencidos, convencidos e humilhados pela evidência. Realmente, a brasileira nunca foi manequim. De Debret para cá e antes e depois de Debret, a brasileira nunca foi manequim. Até há pouquíssimo tempo, não era manequim.

Não era. Um dia, porém, o brasileiro acorda e constata o seguinte: — está namorando um manequim; vai-se casar com um manequim; e, se trair, há de ser com outro manequim. Nas velhas gerações, a brasileira não se parecia com uma alemã, ou uma inglesa, ou uma americana. E, de repente, parece gêmea dos modelos profissionais que posam nas revistas de Londres, Nova York, Paris.

Outro amigo me pergunta se eu não noto menos feminilidade por aí. E, então, eu me lembro de um Rio em que as mulheres tinham um certo halo de histeria. Há anos e anos e eu quase dizia: — há várias gerações que não vejo ninguém desmaiar. Alguém poderá explicar a redução de feminilidade e os pobres quadris de manequim.

Não deixa de ser alarmante para o brasileiro. Tem que namorar, amar, trair ou esquecer a antibrasileira. Sob a pressão de novos usos, novas maneiras, novas idéias, novos sentimentos, a brasileira muda também fisicamente e vira a antibrasileira.

Contei o caso de um amigo, de 45 anos, que amou uma menina de vinte. Ah, nós sabemos o que é uma dessas paixões tardias que levam tudo de roldão, tudo. O meu amigo estava disposto a largar família, fugir, o diabo. Até que, um dia, vai ver a garota e ela o recebe com uma saraivada de palavrões jamais sonhados.

Mais tarde, contando-me o episódio, ele esbravejava: — "Um manequim, um manequim!".

Para ele, a explicação de tudo estava nos quadris estreitos. Não tinha quadris, donde tinha que ser uma impotente do sentimento. Uma antibrasileira.

[12/2/1968] 


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O aniversariante nato

O brasileiro é o aniversariante nato. Nenhum outro povo faz anos com tão larga e cálida efusão. Bem me lembro da minha iniciação jornalística. Bela época em que o dono de jornal era doutor, para todos os efeitos. (Hoje, o último "doutor" da imprensa é o Britto, do Jornal do Brasil). Depois de 30, fui trabalhar em O Tempo.

De 30 para trás, cada jornal novo chamava-se O Tempo. E esse título obsessivo foi o túmulo de não sei quantos matutinos, vespertinos, semanários, mensários etc. etc. Eis o que eu queria contar: — o diretor era, se assim posso dizer, um aniversariante vocacional. Fazia anos de mês em mês. Os redatores promoviam uma vaquinha para o presente; havia discursos; e, depois, tínhamos uma mesa de mãe-benta, queijadinha, empada, pastel etc. etc.

Fiz a introdução acima para chegar ao José Lino Grünewald (belo nome para um jovem oficial afogado no afundamento do Bismarck). Somos amigos, amicíssimos, mas vejam vocês: — a despeito da nossa intimidade, só consigo chamá-lo, por extenso, como num cartão de visitas, de José Lino Grünewald. Eu diria ainda que ele é neopagão, poeta concreto, amigo de Ezra Pound.

Todos os dias, antes de sair de casa, o José Lino Grünewald vai ao guarda-roupa e apanha uma pose. Não uma pose qualquer, intranscendente. O neopagão não se pode comportar como um vago e convencional pai de família. A pose que ele veste, calça e abotoa é a de um cínico, de um amoral, de um perverso. Por outro lado, a soma dos dados já referidos — neopagão, poeta concreto e amigo de Ezra Pound — sugere não sei que abjeções inenarráveis.

Sem nada dizer, para não o humilhar, a verdade é que sempre o julguei um puro. Lembro-me de que, certa vez, chamei um amigo comum, o Francisco Pedro do Coutto, e disse-lhe: — "Quando vejo o José Lino Grünewald, tenho vontade de oferecer-lhe alpiste na mão".

E, com isso, queria dizer que o nosso Grünewald (belo nome naval) é um terno, um manso, portador de não sei quantas virtudes exemplares.

O Francisco Pedro do Coutto ouviu-me e concordou com a idéia do alpiste manual. Mas o que faltava, a mim e ao Coutto, era a evidência das virtudes que atribuíamos ao amigo. Em suma: — precisávamos de um fato sólido, de uma atitude concreta. E, de repente, tudo aconteceu. Imaginem vocês que almoçamos, ontem no Nino, eu, o José Lino Grünewald, o Francisco Pedro do Coutto, o Marcello Soares de Moura e o "Marinheiro Sueco".

E o que notei, ao primeiro olhar, foi a luminosidade escandalosa de José Lino Grünewald. Se ele falava, sentia-se nas suas palavras como que um halo intenso. Seu olhar vazava luz. Eis a pergunta que nos fazíamos, sem lhe achar resposta: — que teria acontecido? Ninguém sabia, só Deus.

Era um neopagão e, pois, um sujeito sem nenhum compromisso com a melancolia. Mas, certa vez, entrei no Correio da Manhã e o surpreendi arriado numa cadeira. Vendo-o pingar tristeza, fui perguntar-lhe: — "Mas que tristeza é essa?". Reagiu: — "Eu sou um dionisíaco". E não teve nem forças para acrescentar à sua tirada um necessário ponto de exclamação.

Citei o episódio para concluir: José Lino Grünewald é sujeito a cavas depressões como qualquer cristão.

E, no almoço, sua presença foi uma festa irresistível. Até que, de repente, anuncia: — "Vou fazer anos dia 13". Nenhum comentário. Deixa passar alguns minutos e insiste:

— "Vou fazer anos dia 13". E nos olhava, aflito, na esperança da reação, que tardava. Berrei então com vários dias de antecedência: — "Gentil aniversariante!". Ele, transfigurado, repetia: — "Pois é. Dia 13, dia 13". Juntou o dado histórico:  — "Nasci numa sexta-feira 13".

Percebi tudo. Diante de nós, estava o brasileiro. Não mais o amigo de Ezra Pound, não mais o poeta concreto, não mais o neopagão. Num único lance, extrovertera toda uma inconfessa verdade interior, toda uma verdade negada. Ali estava o anticínico, o antiamoral, o antiperverso. Era apenas o aniversariante. E, no Brasil, um aniversário jamais é intranscendente.

Estamos longe do dia 13. Pois o José Lino Grünewald, com uma semana de antecedência, anda por aí, trêmulo de felicidade; e já providenciando os salgadinhos, as mães-bentas, os guaranás.

Ai de nós, e, ai de nós. Somos 80 milhões de aniversariantes, e, repito, 80 milhões com alma de aniversariantes. Passo agora a outro assunto. Se a emotividade do nosso Grünewald é tão autêntica, tão brasileira, não posso dizer o mesmo dos rapazes da Escola de Belas-Artes (não falo de todos, mas de um grupo). Vocês conhecem o caso.

Dias atrás, a cidade esbugalhou-se lendo no jornal o seguinte: — rapazes de belas-artes iam queimar, em praça pública, poemas de amor. Ora, o estudante brasileiro nunca foi "isso". De mais a mais, a solenidade projetada era uma cínica imitação nazista. A Alemanha de Hitler queimava livros; aqui, ia-se tocar fogo em poemas de amor e porque eram de amor.

No fim, os rapazes nem coragem tiveram de queimar. Simplesmente, rasgaram os poemas. Alguém dirá que os jovens tinham a atenuante da burrice. Não, não. A burrice que assassina livros não tem perdão. O melhor que se poderia talvez dizer é que os estudantes tinham a coragem cínica e suicida de afrontar toda uma cidade, toda uma população.

E, no entanto, vejam vocês: — os culpados distribuem agora uma circular em que gaguejam explicações e só faltam dizer: — "Nós não tivemos a menor intenção etc. etc.". Pior do que a atitude foi a explicação. Estarei disposto a admitir um canalha que trepe numa mesa e anuncie: — "Meus senhores e minhas senhoras, eu sou um canalha". Um canalha assim translúcido e assim confesso estaria salvo. O pior do canalha é que se quer passar por gentil-homem.

Goebbels, quando viu seu mundo perdido, matou a mulher, seis filhos e se matou. Não estava brincando. Eu aceitaria os tais rapazes de Belas-Artes se, ao menos, tivessem a coragem, a consciência, a fúria do próprio gesto. Se queriam queimar poemas, por que não o fizeram? À última hora, resolveram apenas rasgar. Já essa concessão foi uma vergonha.

Muito bem: — rasgaram. E só porque os jornais meteram o pau, soltam uma circular deprimente. Pareciam uns bárbaros, uns possessos, e me saem uns parnasianos.

Eis o que eu desejaria notar: — o que se procura no bem e no mal é a autenticidade. O José Lino Grünewald vai fazer anos dia 13. Como um brasileiro puro, está numa alegria honrada e profunda. Como já disse, todos nós somos, acima de tudo, aniversariantes.

José Lino Grünewald não trapaceia. E os jovens de belas-artes fazem trapaça. À primeira resistência, caem num pânico profundo. Com um pouquinho mais de pressão, acabam recitando o nosso J. G. de Araújo Jorge, com um piano ao fundo, tocando a Dalila.

[8/2/1968]   
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Os falsos canalhas

Um dos momentos mais patéticos da minha infância foi quando ouvi alguém chamar alguém de "canalha". Note-se: — era a primeira vez. Teria eu que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Vá lá: — cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: — de medo. Foi medo e não espanto.

Para mim, uma palavra estava nascendo, era o nascimento de uma palavra.

Paro de escrever. Por um momento, repito para mim mesmo: — "Canalha, canalha". O som ainda me fascina como na infância. E pergunto a mim mesmo se "o canalha" é uma dimensão obrigatória de cada um. Pode haver alguém que não tenha um mínimo de canalha? Um santo, talvez, ou nem isso. Disse não sei quem que há santos canalhas.

Eis o que eu queria dizer: — o medo dos cinco anos perdura em mim até hoje.

Ainda agora me pergunto se alguém tem o direito de chamar um semelhante de canalha. Poderão objetar que pulha é um insulto equivalente. Ilusão.

Vi um sujeito ser chamado de "pulha". Retrucou ao outro: — "Pulha é você!". E o incidente morreu aí. Dez minutos depois, os dois pulhas estavam, na esquina, bebendo cerveja.

O sujeito pode ser pulha e como tal beber cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e a cerveja. Mas ninguém pode ser canalha. A simples palavra constrói uma solidão inapelável e eterna.

Eis o que eu queria dizer: — o canalha é o pior solitário. Esse destino de solidão é o seu, eternamente.

Mas tinha eu, como já disse e repeti, cinco anos. Meio século depois, me pediram um programa de televisão.

Recomendaram: — "Coisa original". Tratei de recorrer à minha originalidade. E, então, lembrei-me da cena de Aldeia Campista. Diante de mim estava um sujeito chamando o outro de canalha (e meio século depois, a minha úlcera teve contrações de víbora agonizante). Imediatamente, ocorreu-me a idéia. Liguei para o patrocinador. Disse-lhe: — "Já tenho o título". O anunciante esperou. E eu anunciei: — Os falsos canalhas.

Era o título. Expliquei o resto. Seria uma revisão de valores. No Brasil, como em qualquer país, a história, a glória, a lenda são tecidas de equívocos fatais. Nunca se sabe se o grande homem é grande homem, se o gênio é um débil mental, se a senhora honesta é uma messalina.

Eu queria fazer, justamente, o processo dos nossos falsos canalhas. Assim como há a falsa virtude, existe a falsa abjeção. E os falsos canalhas andam por aí. Nós os encontramos nas primeiras páginas, nos editoriais; ou na boca das esquinas e dos botecos. Estão no parlamento, nos consultórios, nos lares e no banho de mar.

Começaríamos o programa, exatamente, com Roberto Campos. A meu ver, não há, em todo o Brasil, e por toda a nossa história, um falso canalha mais translúcido e mais exemplar. Ou por outra: — era tão canalha como O inimigo do povo, de Ibsen. O herói ibseniano acabou apedrejado como uma adúltera bíblica. E, súbito, ele descobriu que o grande homem é o que está "mais só".

Falei em solidão e já retifico. O falso canalha é mais solitário do que o verdadeiro. O poder foi, para Roberto Campos, a solidão total. Não houve ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Queriam matá-lo, simplesmente matá-lo. Vi um pau-d'água berrando: — "Dou um tiro nesse Roberto Campos!". Ao mesmo tempo que dizia isso, pendia- lhe do lábio a baba elástica e bovina do homicida.

E Roberto Campos seria o meu primeiro falso canalha. Mas acabei desistindo do programa e explico. Foi tudo o medo antigo, pueril e insuportável de uma palavra, de um som, de um efeito auditivo. Quando me sentei à máquina para fazer o script do programa e escrevi a palavra canalha, aconteceu isto: — senti a minha úlcera vibrando como uma víbora. Tirei o papel da máquina e o rasguei. Liguei para o patrocinador; disse-lhe: — "Olha. Nada feito. Esse título me dá vômito".

Ao mesmo tempo, prometi a mim mesmo não chamar ninguém, jamais, de canalha. Queria-me parecer que é mais puro o sujeito que nasce, vive, envelhece e morre sem usar, contra outro homem, a mais cruel e inapelável das palavras.

E, no entanto, vejam vocês, nem pensei nas surpresas do mundo.

Eis o caso: — li, ontem, isto é, anteontem, um artigo do dr. Alceu. Sou, não nego, o seu mais fiel e obstinado leitor.

Diga-se de passagem que, quando repasso os seus escritos, caio em frustração e pena. Durante vários anos, tentei ser seu amigo e fracassei. Muito bem: — e que diz em tal artigo o notável pensador católico?

Houve, em Cuba, um congresso, ou coisa que o valha, de quatrocentos intelectuais. E começa o dr. Alceu: — "Não sei, realmente, se os quatrocentos intelectuais reunidos em Cuba se esqueceram ou não de protestar contra o resultado iníquo de mais esse crime contra a liberdade de inteligência que acaba de ser cometido em Moscou". Bem. Em primeiro lugar, ninguém esqueceu" nada.

Os totalitários são insuscetíveis de tais lapsos. Simplesmente, os quatrocentos intelectuais estão inteiramente a favor da polícia soviética e apóiam, de alto a baixo, "mais esse crime".

Mas o que me faz rilhar os dentes de horror é que venha o dr. Alceu, para a imprensa, dizer que "não sabe". Não sabe que, por trás de toda a Cortina de Ferro, e em qualquer regime totalitário, inclusive Cuba, não existe nenhuma liberdade de pensamento, de criação artística, de inteligência ou que seja? E se o dr. Alceu "não sabe", nem desconfia do óbvio ululante, como ousa assinar uma coluna de jornal?

Insisto: — se "não sabe", então que devolva o dinheiro que o dr. Britto lhe paga pela colaboração tão cega e tão surda.

Mas sabe. Aí é que está o grave, o patético, o inconcebível: — o dr. Alceu sabe. Sabe que, há pouco tempo, um poeta foi processado, em Moscou, por vadiagem, e condenado.

Quando lhe perguntaram pela profissão, respondeu: — "Sou poeta". E o juiz, fulminante: — "Isso não é profissão!". A Rússia encarcerou o poeta pelo crime de ser poeta. Aliás, esse juiz não é juiz, mas um tira abjeto.

Insinuará alguém a seguinte hipótese: — o dr. Alceu tem uma boa-fé obtusa. Nem isso. Sabe. E insisto na pergunta: — "E, se sabe, por que vem dizer, de olhos baixos:

— 'Eu não sei'?". Mas, se sabe, não deve nem rezar. O dr. Alceu pode enganar, a mim, ou ao dr. Britto, ou aos seus leitores. Mas não enganará a Deus. Deus também sabe e sabe que o dr. Alceu sabe. Ou achará que Deus é um dr. Britto?

Mas eu direi ao eminente sábio, sob minha palavra de honra:

— Deus não é o dr. Britto. Amém.

O que é que eu ia dizer mais? Já sei. Ia dizer que o dr. Alceu vê a torpeza e não a identifica, vê a podridão e não lhe sente o cheiro.

Direi, por fim, que os quatrocentos intelectuais de Cuba em nada diferem dos oitocentos que, na Rússia, assassinaram Pasternak. São canalhas uns e outros.

[5/2/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O palhaço Dudu

Eduardo Sebastião das Neves (Dudu), palhaço de circo, poeta e principalmente cantor, foi o nosso artista negro mais popular do começo do século XX. Nasceu em 1874 no Rio de Janeiro e morreu na mesma cidade em 11 de novembro de 1919. Foi pai do famoso cantor e compositor Cândido das Neves (Índio).

Aos 21 anos foi guarda-freios da Estrada de Ferro Central do Brasil. Demitido passou a ser soldado do Corpo de Bombeiros, de onde também foi expulso por freqüentar fardado rodas boêmias.

Em 1895 tornou-se palhaço e cantor, apresentando-se em circos e pavilhões. Nesta profissão percorreu vários estados brasileiros.

A partir de 1906, igualmente a Bahiano, Mário Pinheiro, Cadete e Nozinho era cantor contratado da Casa Edison. Seu extenso repertório versava entre cançonetas, chulas, canções, lundus e modinhas.

Foi Eduardo das Neves quem aproveitou a canção napolitana Vieni sul mare e fez a adaptação para glorificar a chegada do encouraçado Minas Gerais, que se juntaria à esquadra brasileira. Mais tarde, adulterada pelo povo, passou a celebrar tão somente o estado brasileiro e não mais ao navio. 

Entre seus sucessos estão: A conquista do ar (Santos Dumont), de 1902. Ficou conhecido também como Palhaço Negro, Diamante Negro, Dudu das Neves e Crioulo Dudu.

Fonte: Cifrantiga - História da MPB e Cifras; Enciclopédia da Música Brasileira - Editora Art PubliFolha.

Dercy Gonçalves

A imagem de Dercy Gonçalves, já uma senhora, mas ainda muito bonita em seu maiô rebordado de strass, as imensas plumas coloridas de avestruz na cabeça e na cauda, liderando — vedete absoluta, como mandava o figurino — o elenco reluzente da Companhia Dercy Gonçalves, era a da grande estrela, em seu elemento, o palco.

Meados dos anos 50, o teatro era o desaparecido Santana, na rua 24 de Maio, em São Paulo. Só ver Dercy encerrar o espetáculo cantando o samba Até amanhã de Noel Rosa, secundada por atores, atrizes, lindas mulheres, todos entregando-se ao ritmo brasileiro que, então, dominava por completo o teatro de revista, valia o ingresso.

Boa cantora, bela figura, desenvolta e com jeito brasileiro em cena, logo se tornou caricata e intérprete de sambas, desde que chamou a atenção da crítica, na revista Rumo A Berlim, de Freire Júnior e Walter Pinto, em 1942, no Teatro Recreio.

Cresceu tanto que, em 1944, já imitava ninguém menos que Araci Cortes, a rainha da revista, em Barca da Cantareira, de Luiz Peixoto e Custódio Mesquita. Cantando samba, naturalmente. Como sempre o faria, no decorrer dos 30 anos em que foi das vedetes mais aplaudidas do país.

Filha de alfaiate e neta de coveiro, Dolores Gonçalves Costa (nascida a 23 de junho de 1907), ficou sem a mãe muito cedo. A lavadeira Margarida descobriu que o marido tinha uma amante. Ofendida e humilhada arrumou as trouxas e foi para o Rio de Janeiro, largando os sete filhos para que o infiel tomasse conta. Vitória, a amante de seu Manoel, passou a freqüentar a casa. "Ficavam namorando na sala, de mãos dadas. Mas papai nunca assumiu o romance. A certa altura da noite, ela ia embora."

Dercy, bilheteira de cinema, escandalizava a cidade ao pintar o rosto como as atrizes dos filmes mudos. Dançava para alegrar os hóspedes do Hotel dos Viajantes em troca de um prato de comida. Na missa, de vestido de chita, cantava de pé num banquinho abraçada à imagem de Jesus. Aí se apaixonou por Luís Pontes, um rapaz de bons modos. "Foi a primeira pessoa que me deu carinho. Mas a família dele proibiu o namoro." Quando encontrou a companhia de teatro mambembe, Dercy tinha todas as razões do mundo para fugir de casa.

Em Conceição de Macabu (RJ), passou a ser assediada pelo cantor Eugenio Pascoal. "Não sabia que eu era moça, não tinha virado mulher." Só tomou coragem para se entregar quando a turnê chegou a Leopoldina (RJ), duas semanas depois. Gentil, Pascoal saiu do quarto para que ela colocasse a camisola feita de saco de arroz. Tinha até inscrito no peito: "Indústria Brasileira de Arroz Agulhinha, arroz de primeira." Os carinhos preliminares não a incomodaram, mas quando ele a penetrou Dercy deu um pulo. Viu que estava sangrando e imaginou-se ferida. "Sentei o pé nele e saí porta afora. Socorro! Esse homem me furou! Imaginei que tinha enfiado um facão e rasgado minhas tripas."

Nunca mais houve clima para romance, mas eles se tornaram grandes amigos, até Pascoal morrer, tuberculoso. Pior: contagiou Dercy. Foi quando ela encontrou Ademar Martins, exportador de café mineiro, casado, muito católico. Levou-a para um sanatório perto de Juiz de Fora, aparecia uma vez por semana para vê-la e pagar a conta. Depois, instalou Dercy num hotel na praça Tiradentes, no Rio. Só então transaram pela primeira vez. Nasceu Dercimar, a única filha de Dercy. "Teve aulas de boas maneiras, aprendeu francês e casou com um quatrocentão da Tijuca. É uma dama na expressão da palavra", deleita-se Dercy.

Estrela das comédias da praça Tiradentes e das revistas musicais do Cassino da Urca, fez do palavrão cavalo de batalha. "Sou um retrato do País, que é a própria escrotidão", dispara. Ao imitar os trejeitos de Carmen Miranda, coçava o corpo todo. Ironizava o caminhar manco de Orlando Silva e fazia troça do vozeirão de Vicente Celestino.

Fez 36 filmes e, a partir de 1957, entrou também na televisão. Nos anos 60, Consultório sentimental, na TV Globo, uma espécie de talk-show primitivo ela esculhambava o convidado, chegou a ter 90% da audiência dos aparelhos ligados.

"Sou uma escola de irreverência." Dercy chega aos 92 anos sozinha. Casou na década de 40 com o jornalista Danilo Bastos, dez anos mais jovem. "Não era amor, e sim troca." Teve um caso tórrido com o acrobata Vico Tadei, mas amor verdadeiro, de chorar, só o Luís Pontes, o rapaz de bons modos de Madalena. "Escrevia cartas e as lágrimas caíam no papel. Mas o tempo passou e eu esqueci Luís Pontes. Ai de nós se não houvesse o esquecimento."

Fontes: Isto É - 0 Brasileiro do Século; História do Samba - Editora Globo.

O diabo no corpo

Manuelinha era uma mulata dos seus 18 anos incompletos e um verdadeiro modelo de mestiça bonita e apetitosa.  Não tinha alta estatura; pelo contrário, era toda miudinha de corpo e de formas, porém enxuta de carnes, de braços e pernas roliças, anca refeita, seio agradavelmente espontado debaixo da chita do corpete, pescoço cilíndrico...

Os seus olhos eram grandes, amendoados, negros, vivos e pestanudos, a boca pequena, de lábios carnudos e guarnecida de dentes muito brancos e juntos, nariz perfeito, pele fina, macia, suavemente amorenada, cabeleira farta, sem ser crespa em demasia.

Muito viva, tinha movimentos brevíssimos, olhar ligeiro e petulante, adêmanes rápidos, e sabia rir-se de qualquer coisa com graça encantadora; o muxoxo na sua boca tinha um quê especial.

Demais Manuelinha tinha consciência da sua beleza e sabia fazê-la valer. Debalde muito cabra valente, num pé de viola, lhe tinha feito roda. Inutilmente os arrieiros faziam piegas nos seus cavalos aparelhados de prata, quando passavam junto à sua porta. Manuelinha olhava a todos por cima do ombro; e se algum mais ousado animava-se a dirigir-lhe uma graçola qualquer, por exemplo, um:

– Puxa, mulata, machucadeira de coração!.. – era infalível da sua parte um atrevido:

– Não se enxerga seu sujo?!

ou então:

– Vai te lavar na maré, pato choco!

E assim vivia Manuelinha, contente descuidosa, cortejada por todos, porém sempre esquiva e orgulhosa da sua beleza e da fascinação que exercia sobre todos os homens, que, nos dias de pagode em sua casa, nunca ali faltavam, como que atraídos pela interessante rapariga.

* * *

Toda a rapaziada da vizinhança derretia-se por Manuelinha. Mas dentre a chusma de seus adoradores um merece ser destacado com certo relevo, não só pelo importante papel que vai representar na seqüência desta história, como pela extravagância do tipo.

Esse apaixonado era, nada mais, nada menos que Pedro Camundá, africano com perto de 70 anos, e tio-avô da mulatinha.

Por artes do diabo, aquele "cação", como lhe chamava a malcriada mulatinha, enamorou-se perdidamente da sobrinha-neta, e lavava todo o santo dia a importuná-la, apesar das insolentes rebatidas da rapariga.

Pedro Camundá, ou antes, para dizer exatamente o seu nome com todos os seus estrambólicos apelidos, por ele mesmo forjados, Pedro Camundá Lopes Martins Júnior, Filho do Gama Pesca de Dia, de Noite Escama, Cócôriôcô, Galo Quando Canta É Dia, entendia lá no seu bestunto que, sendo-se tio-avô de Manuelinha tinha mais do que qualquer outro direito de possuí-la, e pouco se lhe dava a diferença de idade entre os dois e a repugnância que em geral a mulata sente pelo negro.

Pedro Camundá não refletia nisso. Era tio e essa consideração do parentesco julgava ele suficiente para destruir todos os obstáculos. Não desanimava, pois, de fazer render a rapariga à sua concupiscência.

É claro, porém, que a moça, por mais depravado que fosse o seu gosto, nunca poderia entregar-se voluntàriamente àquele urutu de venta esborrachada, carapinha enredada, cambaio, desdentado e de olhos sangrentos. Era, portanto, em vão, que Pedro Camundá Lopes Martins, etc., etc., ostentava para agradá-la diversas habilidades que possuía, tais como: tocar flauta de taquara pelo nariz, pegar cobras com a mão, tirar ponto de jongo e outras astúcias mais.

Manuelinha cada vez o aborrecia mais, e se não o enxotava de casa é que Pedro Camundá tinha fama de grande feiticeiro. Nessa qualidade ela o temia extraordinàriamente; maus tratos, porém, não lhe poupava, e a todo o momento lhe assacava epítetos os mais injuriosos.

* * *

Era de uso antigo em casa de Manuelinha festejar-se com uma grande pagodeira o dia de Nossa Senhora da Conceição, que era a madrinha celeste da mulatinha. Chegado o dia, começaram a afluir visitas de toda a parte, tanto homens como mulheres, pois essa festa tinha fama na vizinhança.

Cantava-se uma ladainha, ia-se depois para uma mesa bem servida de suculentas iguarias, e depois caía-se no batuque, que durava até amanhecer.

Entre outras pessoas estranhas que vieram pela primeira vez a essa pândega, notava-se o sr. Antônio Guimarães, ilhéu chegado pouco antes do Faial e hortelão de uma fazenda da vizinhança.

Era um sujeito grosso de corpo e de espírito, usando barba de varre-lama e de queixo e beiço raspado.

Ainda vinha metido na pesada saragoça de além-mar, com o clássico remendão nos fundilhos, e trazia atarracado à alentada pata o grosso tamanco de beiça grande e revirada, guarnecido de cravos fortes de cabeça chata.

Guimarães logo que pousou a vista na mulŽtinha, nesse dia vestida e penteada a capricho, começou a sentir umas comichões na garganta e pôs-se a mexer no banco, todo esquerdo, todo casmurro. Via-se logo que aquela alma ilhoa queria reza; mas, o que é mais singular, Manuelinha, a invencível mestiça, a tirana que havia orgulhosamente desprezado o amor da mais desempenada caipiragem, simpatizou igualmente com o forasteiro, e logo todos, inclusive Camundá, perceberam que os dois, no fim de meia hora, estavam de namoro trançado.

Muitos se arreliaram com isto. O negro velho. porém, encheu-se da maior das raivas, e os seus olhos, que pareciam duas postas de sangue, não se despregavam da sobrinha, como que ameaçando-a.

* * *

Todavia este incidente não desmanchou a festa.

Ao contrário, como Manuelinha parecia ainda mais alegre que de costume, a rapaziada fez vista grossa ao namoro com o ilhéu e entrou no batuque, desembaraçada de qualquer preocupação. Ora bolas! ela era senhora de gostar de quem quisesse.

Muitos, até, começaram logo a lançar os seus olhares para as outras raparigas, quando mais não fosse para moerem a impostora que tinha desprezado os seus patrícios e estava agora a derreter-se com um sujeito à-toa, vindo da Estranja ou de onde o diabo perdeu as botas, isto só porque o pé-de-chumbo era de sangue sem mistura.

– A negrinha quer limpar o sarro da senzala na barba do portuga, – diziam uns para os outros despeitados.

No entanto estrugia o sapateado e quando cessava era apenas para se fazer ouvir algum cantador que extravasava os seus queixumes ou os seus fingidos desdéns numa quadrilha estribilhada pelo Quero mana, lerê, quero mana! ou pelo Vai de roda, siá dona Geralda e outros.

Todos folgavam ou pareciam folgar com a maior alegria. Só Pedro Camundá, o preto velho, acocorado a um canto da sala, remoia a sua grande raiva concentrada.

* * *

Em um dos intervalos do batuque, e depois que alguns cantadores trocaram algumas trovas em desafio, Manuelinha chegou-se ao Guimarães, que não tirava os olhos de cima dela, e disse, com muitos requebros no corpo e doçura na voz e na fala:

– Cante alguma coisa para a gente ouvir seu Antônio.

Guimarães, assim rogado tão agradavelmente, ficou um tanto envergonhado, e a torcer a tramela da porta, para disfarçar a confusão, disse:

– Lá o cantar eu cantava, pois com a ajuda de Deus não nasci com a língua pregada, mas é que eu sei somente cantar à moda da minha terra e talvez as pessoas que aqui estão não gostem.

– Por que não se há de gostar? – disse a mãe de Manuelinha, uma mulata escura que outrora vivera amasiada com um português. – Por que não se há de gostar? Até tem mais graça porque é uma coisa nova.

– Decerto que sim, – confirmaram algumas outras mulheres. – A gente já anda tão enfarada dessas modas daqui.

– Cante seu Antônio, – rematou Manuelinha arrebitando o nariz. – Se alguém não gostar, não faltará quem lhe aprecie.

Ao ouvir tais palavras Guimarães entendeu que não devia mais resistir e assim falou:

– A sora dona Manuela manda em quem bem quer lhe servir. Benha daí uma biola. Lá pelas nossas terras antes dum homem se pôr a cantar bota pra baixo um bom picheI de vinho. Mas como ele não há por cá, mandem-me uma pouca de aguardente para desencatarrar o peito.

Sendo logo servido no que pedira, o Antônio tomou uma viola, afinou-a a seu jeito, e, ao som de um estabanado rasgado, cantou o seguinte:

Ai! belas manhãs da Lapa,
E eu fui aos caramujos,
Quando bejo mulher belha,
Tiro meu chapéu e fujo.

Sôra Maria,
Mestre Manel,
Quem mora na rua
Nan paga aluguel.

Riram-se todos a bandeiras despregadas com os versos do casmurro, e Manuelinha exultou de contentamento, por demonstrar àquela gente que o homem a quem distinguia não era pra aí qualquer pasmado. Todos gostaram dos versos, ou por muito estúpidos, ou simplesmente por serem novidade naquele meio, afeito às doçuras langues do Passo branco avoou e outras composições matutas. Todos gostaram, exceto, porém, Pedro Camundá. Esse sempre sentado, ao canto da sala tornava-se cada vez mais sério e embezerrado. Dir-se-ia que tinha ciúmes do triunfo que o português alcançava.

No entanto ninguém dava por isso, e Antônio Guimarães, animando-se aos poucos, destampou outra vez o peito e berrou:

Oh! munina da labada,
Rega o teu manjaricão,
Que hoje estou devoleto
Amanhã estarei ou não.

Senhor João do Norte
Bem todo ratado,
Co'as buxigas loucas
Do ano passado.

Novas gargalhadas acolheram tal destempero poético: a caipirada achava um cômico irresistível nos versos do ilhéu, e Manuelinha, interpretando os risos como sinais de admiração, no tamborete em que se achava, remexia-se de contentamento.

Pedro Camundá, cada vez mais enfiado, mastigava em seco no canto da sala, e Antônio Guimarães, impando de orgulho, e querendo mostrar à cabritada que era homem de recursos no braço de uma viola, variando a música e o ritmo despejou de um só fôlego toda essa embrulhada:

Quando Cristo frumou Judas,
Palácios de grande altura,
Muita gente lá morreu
Foram para a sepultura

Casa grande tem fartura
Andam lebres nos trigais,
Comem-n'as aves o milho,
Quaim paga são-n'os pardais.

Cabalo grande é trangola
Puquenino é perereca,
Pau furado é biola
De caracol é raveca.

E deixando pender o corpo todo para Manuelinha, que se achava sentada a seu lado, rematou por esta forma extravagante a sua lengalenga:

E agora, senhores meus,
Uma coisa bou dizeire,
Andam cabras pelo monte,
Muito custa um bem quereire.

Esta munina é minha
Compei-a numa audiência
Na Relação de Lisvôa
Na mesa da consciência.

Todos compreenderam perfeitamente a alusão que o português fazia à facilidade com que havia realizado a sua conquista amorosa, a despeito dos cabras que andavam por aquele monte, e Manuelinha mostrava estar satisfeita com aquela declaração brutal.

Um murmúrio surdo de indignação fez-se ouvir logo. Os caipiras olhavam uns para os outros, como se quisessem consertar algum plano contra o ilhéu, pois aquilo já estava cheirando a desaforo grosso, e Pedro Camundá, que tinha ouvido toda a versalhada do Guimarães, dando sempre os sinais mais visíveis de indignação, entendeu que devia mostrar a todos que também sabia cantar. Deslumbraria o português, e conjuntamente a mulatinha, que não podia deixar de preferir o seu canto.

* * *
Assim, logo que o português se calou, Pedro Camundá, como se houvesse sido mordido pela tarântula, pulou para o meio da sala e a desengonçar-se todo e a bater palmas, berrou descompassadamente na sua meia língua:

Eh! Eh! Eh! Eh!
Maria sobe moro,
Bunda teremê,
Coração min dóe.

Pedro Camundá não pôde continuar. Manuelinha, envergonhada e irritada com aquela entrada estapafúrdia do tio, tão fora de tempo e de propósito, foi ao seu encontro, e gritou-lhe com a insolência que lhe era própria:

– Cala a boca, burro.

– Burro não, sua malcriada. Mais respeito com seu tio! – retrucou Camundá enfurecido.

– Que tio! que nada! Vocemecê não vê que não sabe cantar? Para que está aborrecendo a gente com essa porcaria de jongo. Sempre mostra que é negro!...

Manuelinha não chegou a terminar bem a frase.

Pedro Camundá, enciumado e ferido no seu amor-próprio de modo tão público, desandou-lhe tão violenta bofetada, que a mulatinha estendeu-se a fio comprido no chão.

Levantou-se logo grande celeuma entre os foliões, e Antônio Guimarães, irritado com aquela ofensa à mulata, a qual já considerava como coisa sua, arrancou do pé o grosso tamanco ferrado de cravos de cabeça chata, e cibrou-o com toda a força na cabeça do negro, de onde escorreu pronto um fio de sangue.

Então ferveu o sarceiro. Diversos caipiras, querendo tornar-se agradável a Manuelinha, colocaram-se ao lado do português. Outros, porém, declararam-se em favor de Camundá, e o pau roncou deveras, fazendo as mulheres grande berreiro.

Quebraram-se diversas cabeças e muitos ficaram cheios de contusões, mas, afinal, todos se reconciliaram. Houve explicações de parte a parte, trocaram-se desculpas; e todos mostraram-se dispostos a recomeçar o pagode.

Quem não se acalmou, porém, foi Pedro Camundá. Recusando lavar o sangue que lhe escorria da cabeça lascada pelo tamancão do ilhéu, parecia endemoninhado, e vendo que todos se voltavam contra ele, pela sua obstinação em insultar a sobrinha, pôs arrebatadamente na cabeça o chapéu de palha, dirigiu-se à porta, e dali, cuspindo três vezes para dentro da sala e lançando à mulatinha um olhar terrível, disse:

– Negro, hein?! Negro?! Tu me pagarás!... – Acabando de pronunciar tais palavras, desapareceu na escuridão da noite, deixando todos sob o peso daquela terrível ameaça dirigida à rainha da festa.

* * *

Não era uma coisa à-toa esse projeto de vingança formulado pelo preto velho.

Todos o tinham por feiticeiro terrível, e sabia-se que ele fazia de rei nos canjerês arranjados pela negrada das fazendas vizinhas.

A sua habitação, uma choupana esburacada e mal coberta, metida no sambambaial da lomba de uma serra onde ele vivia sozinho com um gato preto e um bode velho, estava atulhada de coisas estranhas, e todos a evitavam com horror: eram cobras mansas, morcegos espetados pelas paredes, sapos, braços de crianças pagãs que desenterrava dos cemitérios, dentes de animais peçonhentos e outras bruzundangas.

Ali vivia ele desde que se libertara, e muita gente se queixava dos seus feitiços. Dizia-se que o seu olhar continha um fluido venenoso que matava os animais e causava moléstia nas criaturas. Pelas suas artes realizava desuniões nos casais. Mil outras perversidades se lhe atribuíam.

Por isso ficaram todos apreensivos com a sua ameaça. Pedro Camundá não era para graças; aquilo era negro danado, negro do couro azul, diziam os caipiras uns para os outros, comia brasa de fogo, fazia vez de cururu.

* * *

Decorreram alguns dias depois da pouco edificante cena que acabamos de descrever.

Assustada durante os primeiros dias com a ameaça do tio, afinal Manuelinha esqueceu-a completamente.

Guimarães pouco e pouco foi se insinuando cada vez mais no espírito da gentil mestiça, sabendo conquistá-la, seduzi-la, até que veio a assenhorear-se completamente do seu coração, dos seus desejos, das suas vontades, chegando a possuí-la. Falava-se num futuro casamento, mas ninguém acreditava nele, porquanto o português já quase que morava em casa de Manuelinha, dormindo lá nos sábados, passando o domingo todo, para só se retirar na segunda-feira.

A ameaça de Pedro Camundá não fora entretanto vã, e durante certo tempo veio transtornar a paz em que a rapariga vivia.

Num domingo pela manhã, achando-se em casa o Guimarães, como de costume, Manuelinha pôs à cabeça um pote de barro e dirigiu-se à fonte, a fim de trazer água para cozinhar o almoço.

A fonte era pouco distante da casa. Descia-se apenas uma pequenina ribanceira, e ela surgia, a jorrar cristalina água, cantante, muito clara, muito fresca, deslizando por entre imensas pedras limosas, e toda cercada pelas largas folhas de inhames e de taiobas.

A moça chegou ao puríssimo veio d'água, lavou o rosto e os braços, encheu o pote, e preparava-se para pô-lo à cabeça, quando sentiu um ruído nas folhas secas do matal vizinho.

Tornando a descansar o pote no chão, procurou observar o que se passava e, agachando-se, para olhar por baixo da ramaria, avistou um moleque muito preto, coberto de andrajos, e com grande quantidade de latas velhas amarradas pelo corpo.

Assim que os seus olhos pousaram sobre ele, o moleque começou a fazer-lhe trejeitos e caretas. A moça, assustadíssima, correu para casa a relatar o que tinha visto à mãe e ao amante.

Guiados por Manuelinha correram os dois à fonte. Apenas chegados, a mulatinha, muito nervosa, gritou, apontando para o mato:

– Lá está o moleque, mamãe! Veja, seu Antônio! T'esconjuro, diabo!...

A mulata velha e o português olharam atentamente para o lugar indicado por Manuelinha, porém nada viram.

– Onde? onde? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.

– Ali, gente! mesmo em frente de nós. É moleque muito preto, todo coberto de molambos e com uma porção de latas velhas penduradas pelo corpo. Ouçam como batem as latas umas nas outras!...

– Eu não bejo nada! – exclamou Guimarães esfregando os olhos já cansados de tanto olhar.

– Nem eu! – disse a mulata velha.

– Ó homem! vocês estão cegos? – disse Manuelinha tornando-se cada vez mais agitada. – Credo! o moleque virou num sapo muito grande e com cada olho! Aquilo é coisa mandada com certeza. Olhem como o sapo está inchando?!...

– Raios parta o sapo mal-o o moleque! –disse Guimarães já um tanto aborrecido. – Pelas cinco chagas de Cristo que eu nãn bejo nada!

– Xi... – continuou a mulatinha. – O sapo virou numa cobra vermelha. T'arrenego, coisa ruim!

– Tu estás douda, rapariga! – exclamou Guimarães. – Ali não há cobra, nem cousa biba nenhuma! Tu não estás voa, com certeza!

– Pois você não vê ali uma cobra tamanhona! Olhe, veja bem como ela se enrosca nos paus e dá botes para todos os lados. Ai, meu Deus! virou agora num lagarto. E lá vem ele para cima de nós. Foge, seu Antônio, foge mamãe... Aquilo é coisa mandada!

E não pôde dizer mais nada. Caiu redondamente no chão e entrou a estrebuchar em convulsões medonhas. Num momento as roupas lhe ficaram em tiras, e ela, com a barriga e as pernas nuas, torcia-se doidamente pelo chão, a ferir-se no saibro da vereda.

Os olhos viraram-lhe para trás, a boca torceu-se e dos cantos dos lábios começou a borbulhar uma espuma esverdeada.

– Meu Deus! que é isso que estou vendo? – disse a mãe, tomada de assombro. – Minha filha que é isso? Fala, responde a tua mãe.

Entrementes, Guimarães observava atentamente todos os movimentos da rapariga e transformações que se operavam no seu semblante transtornado. Dir-se-ia um médico embaraçado com um diagnóstico difícil.

Afinal bateu com a pesada mão no ombro da mãe de Manuelinha e disse, possuído da maior convicção:

– Bocemecê quer saber que tem sua filha?

– Diga, seu Antônio, pelo amor de Deus!

– Sua filha está com o diabo no corpo. São as artes do tal negro belho.

* * *

Depressa correu por toda aquela redondeza que Manuelinha, a flor das mulatinhas do sertão, estava com o diabo no corpo; e à sua casa começou a afluir visitas de mulheres e homens. Todos queriam verificar com os próprios olhos aquele caso estranho, e depois que examinavam a enferma, saíam plenamente convencidos de que a infeliz era presa de um demônio que se comprazia em torturá-la. E choviam as maldições sobre Pedro Camundá. Pois quem, a não ser ele, seria capaz de tamanha perversidade?

Na verdade os sintomas da moléstia eram muito singulares. A barriga começou a crescer-lhe de um modo espantoso, dir-se-ia em adiantada gravidez, e nas crises agudas ela torcia-se como uma possessa na cama, injuriava a todos, proferia obscenidades, e, o que é mais singular, às vezes ficava suspensa no ar durante um ou dois minutos. Nesses momentos, os seus olhos viravam mostrando somente o branco, a boca entortava, e dela escorria copiosa espuma.

Outras vezes discutia com o demônio que em si encerrava, e ao qual dava o nome de Caviru. Insultava-o ou rogava-lhe que a deixasse. Outras ainda a sua voz mudava: parecia a de uma outra pessoa e começava a dizer frases incoerentes ou de sentido misterioso.

Vieram muitos curandeiros visitar a inditosa rapariga. Várias mulheres fizeram-na engolir drogas nauseabundas mas ninguém fazia melhorar a pobre moça que de dia para dia definhava sobre o catre.

Todos se condoíam do lastimável estado da pobrezinha, e Antônio Guimarães estava inconsolável.

* * *

Essa triste situação durou algumas semanas e a moça ia cada vez a pior, quando veio visitá-la uma preta velha, que era a sua madrinha de apresentação.

Manuelinha, assim que a madrinha assomou à porta começou a gritar horrivelmente, como se a cruciassem dores pungentíssimas.

Todos se admiraram com o que estavam presenciando, porém tia Maria não se abalou e disse aos mais que ficassem tranqüilos, pois ela ia tirar o diabo do corpo de sua afilhada.

– O coisa-ruim já me conhece. Agora vai ele ver o ruço comigo.

– Quando ele, o estapoire saire, logo se conhece: a rapariga há de daire um grande bufa.

– É tal e qual, – confirmou tia Maria.

E dizendo isso a preta agarrou a afilhada pelos pulsos e gritou:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina? Fala coisa-ruim!

A moça torceu-se toda, porém seus lábios não se descerraram.

– Você fala ou não fala, Caviru?

Nada; nenhuma resposta se ouviu.

– Ah! – disse a preta, – essa Peste está reinando! Vão buscar uma vara de guiné e um galho de arruda. Ah! negro velho caborgeiro, eu bem conheço as tuas maldades! Fazer isso com a pobre da minha afilhada!

E a velha pôs-se a rezar e a benzer a sobrinha em todas as direções.

Daí a pouco trouxeram-lhe a vara de guiné e o galho de arruda.

– Vão agora buscar um gato preto, para o diabo passar para o corpo dele.

– E só quando a rapariga der um bufo é que ele sai.

Enquanto procuravam o gato, tia Maria amarrava com um largo cinteiro o galho de arruda sobre o roliço ventre da rapariga, e chegando o gato, ordenou ao Guimarães que o sugigasse.

* * *

Todos acompanhavam esses preparativos com o maior interesse, e tia Maria, depois de riscar três cruzes com o dedo molhado em azeite, sobre os seios da moça, que se achava completamente nua sobre a cama, pegou da flexível vara de pau-guiné e gritou de novo:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina?

Como das outras vezes nenhuma resposta se fez ouvir. Então a preta velha vibrou com a vara de guiné uma forte vergastada nas nádegas carnudas da rapariga.

Manuelinha deu um grande grito e espernegou na cama.

– Anda, peste! – tornou de novo tia Maria. – Quem te meteu aí?

Ainda nada de resposta e a vara de guiné tornou a silvar no ar e a cair sobre as carnes da moça.

– Fala, desgraçado! Quem foi que te meteu aí?

E como o demônio se obstinasse em não dar resposta, a velha amiudou as varadas, aos gritos da infeliz que pinoteava no leito, até que afinal a rapariga, como que fazendo um grande esforço sobre si mesma, gritou convulsivamente:

– Foi Pedro Camundá!

– Eu nãn lhes havia dito que era aquele estapaire! – disse logo Guimarães.

– Segure o gato, seu Antônio! – exclamou a preta. – Caviru já obedece, agora ele tem que sair, quer queira quer não.

E toca a zurzir a vara nas nádegas da moça, aos berros de Sai! sai maldito!

A moça, já com as carnes todas lanhadas, cada vez gritava mais.

– Segure o gato, seu Antônio! O bicho está aqui, está fora. Segure o gato, seu Antônio!

– Cá o tainho bem preso pelo toutiço.

Entrementes a vara não descansava. A mãe de Manuelinha segurava-a pelos braços, uma outra agarrava-lhe as pernas. Guimarães, no meio do quarto, segurava o gato pelo cangote.

De repente a rapariga inteiriçou-se toda no catre e exalou um suspiro. Ao mesmo tempo o seu ventre, que até então se conservara duro como o diafragma de um zabumba, emurcheceu subitamente e um forte cheiro de gás ácido sulfúrico, acompanhado de estrondo, espalhou-se pelo aposento.

– Solte o gato, seu Antônio!

Guimarães soltou o bicho dizendo:

– Eu nãn lhes disse que o estapoire só sairia do corpo da rapariga, quando ela desse uma grande bufa?

O gato, assim que se viu livre das garras do ilhéu, ganhou a janela de um salto e a miar como um desesperado fugiu para o mato com a cauda erguida e o pêlo todo eriçado.

– Vai-te, excomungado; vai-te para as areias gordas, – gritava tia Maria. – Graças a Nossa Senhora da Conceição, saiu o diabo do corpo de minha afilhada. Ah! Pedro Camundá! feiticeiro danado! No inferno tu hás de pagar esta grande maldade. Te, esconjuro, coisa ruim!

Todos ficaram convencidos de que o tinhoso escapulira do corpo da rapariga; e, por conseguinte, estavam terminados os seus sofrimentos.

Efetivamente Manuelinha, caindo primeiro numa grande prostração, foi depois se restabelecendo a poder de gordos caldos de galinha, e no fim de algumas semanas estava completamente curada.

Guimarães, daí a uns seis meses comprou um pequeno sítio, e lá foi viver com a mulatinha. Dentro de anos juntou alguns cobres, porém tinha sempre no nariz e nos ouvidos a grande bufa que a rapariga soltara, quando o diabo lhe saiu das entranhas.
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(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.239-251)

A vingança do morto

A história que passamos a contar e que desentranhamos de uma velha crônica, já rendada pela traça, remonta ao primeiro período da colonização do Brasil. Teve por teatro a velha capitania de Pernambuco, e começa em tempos da governação-geral de Manuel Teles Barreto.

* * *

Lopo de Vila-Flor era o que, com toda a franqueza e sem cerimônia, se pode chamar um refinadíssimo patife.

Bêbado, jogador, devasso, desordeiro e mesmo ladrão, quando se lhe oferecia ocasião de defraudar o alheio, o governo de Portugal viu-se obrigado a deportá-lo para o Brasil, não obstante ser ele filho espúrio de um dos condes de Vila-Flor, gente que surgia na primeira linha da nobreza lusitana.

Não eram raros os indivíduos desse quilate, entre os fidalgos do século XVI. Os extensos privilégios de que gozava a nobreza, a noção errônea e perniciosa do demérito trazido pelo trabalho, a divisão social em classes, a frouxidão da justiça, embaraçada e desvirtuada pela incompreensão do princípio de eqüidade, uma pesada ignorância, fanatismo e preconceitos de toda a casta, influíam tão diretamente na depreciação do caráter, que até príncipes herdeiros presuntivos da Coroa, como esse filho de Henrique IV de Inglaterra, e outros, figuram às vezes na tradição como heróis de orgias, onde da bebedeira se passava ao roubo e ao homicídio, sendo em seguida tudo isso lavado da consciência por uma rica dotação a um convento ou uma peregrinação aos grandes centros de devoção cristã – Jerusalém, Roma, Santiago, etc.

Ora, nestes casos estava o herói da presente história. Filho do conde de Vila-Flor com a viúva de um fidalgo que morrera na Índia, pelejando pelo lustre das quinas portuguesas, Lopo fora criado com todo o carinho e mais que exagerada solicitude no faustoso solar do conde. Crescera, sendo-lhe permitidas pelo pai todas as extravagâncias, e cedo os fâmulos e servos começaram a suportar o gênio caprichoso e brutal do fidalguinho, sempre desculpado pelo velho conde que por ele tinha um afeto vivíssimo.

Chegando à idade viril, Lopo começou, dilatado, assim, o campo das suas aventuras, a exercer a sua índole, mas nos simples campônios, que o tinham por verdadeiro demônio: quotidianamente chegavam ao pai notícias de espancamentos, desrespeitos a donzelas, e perversidades de toda a espécie praticadas pelo seu Benjamim, e tanto este cresceu em audácia e cinismo que um dia levantou mão criminosa contra o pai, quando o repreendia por certo delito.

Indignou-se por tal forma o velho e honrado conde, com esse iníquo procedimento do infame, que, fazendo calar o grande amor que lhe consagrava, o expulsou da casa paterna, cobrindo-o de maldições.

Então Lopo de Vila-Flor passou-se para Lisboa, onde, em conseqüência do alto conceito que gozava sua família, recebeu logo ao chegar favorável acolhimento na Corte. Cedo, porém, revelando o degradante fundo do seu caráter, incompatibilizou-se com a sociedade lisbonense, e a Polícia do rei viu-se obrigada a deportá-lo para o Brasil, onde não seria tão prejudicial "por ser este país uma terra larga", dizia o alvará que o remeteu.

Eis o personagem que vai figurar como protagonista da presente história.

* * *

Com a mudança de ares não modificou Lopo o seu comportamento, e a população de Olinda contou desde o dia da sua chegada com mais um flagelo em seu seio. A sua vida decorria entre o bordel, a taverna e a espelunca, atribuindo-se-lhe grande número de desacatos às pessoas e lesões às propriedades. As coisas chegaram a tal ponto que o ouvidor lhe moveu séria perseguição, e o nosso valdevinos, para furtar-se às garras da Justiça, evadiu-se de Olinda, por uma madrugada, buscando a vila do Cabo. Com isto contentaram-se os moradores da velha capital pernambucana e o ouvidor deu por finda a sua missão.

A nossa, porém, irá mais longe, e nessa batida não abandonaremos mais o tresloucado fidalgote.

* * *

Havia duas horas que Lopo de Vila-Flor cavalgava em direção ao Cabo, e o sol já vinha rompendo, quando percebeu na sua frente um outro cavaleiro que seguia a mesma direção que ele. Lopo, interessando-se em saber quem era o cavaleiro, deu de esporas à égua que montava, e em breves minutos emparelhava com o matutino viandante.

Era dom Sancho, jovem fidalgo seu conhecido, bom rapaz, porém um tanto amigo do jogo, fato que permitiu a Vila-Flor travar com ele relações em uma espelunca.

Cumprimentaram-se alegremente e logo entabularam conversação. Dom Sancho ia à vila da Escada visitar um tio, rico proprietário de engenhos dessa localidade; Lopo Vila-Flor, ocultando o verdadeiro motivo da sua retirada de Olinda, disse ao companheiro que se dirigia à vila do Cabo por motivo de negócio.

Não falaram mais sobre os motivos da jornada, e começaram os dois, ao trote largo de suas cavalgaduras, a discretear sobre a vida em Olinda, e principalmente sobre aventuras de jogo.

Assim chegaram a um ponto em que o caminho era atravessado por um límpido regato. Aí, virando-se dom Sancho para Vila-Flor, disse-lhe:

– Amigo, já que o acaso nos reuniu para companheiros de jornada, permita que o convide a participar de um magro almoço que aqui trago, o qual, embora pouco sólido e variado, servirá para restabelecer em nossos estômagos um certo equilíbrio.

– De bom grado, – respondeu Vila-Flor,– mesmo porque o ar fresco da manhã e o trote deste cavalo abriram-me danadamente o apetite.

– Nesse caso façamos alto aqui, a fim de aproveitarmos esta belíssima água.

– Como queira.

Apearam-se, amarraram os cavalos no tronco de um espinheiro, e sentaram-se comodamente na barranca a fim de apreciarem o almoço, que constava de uma boa lasca de presunto, um requeijão, farinha de mandioca e um botijão de excelente vinho português. Comeram e beberam melhor, tudo na mais satisfatória harmonia, e, terminada a refeição, Lopo disse para o companheiro:

– Para que a nossa pequena festa seja completa devemos agora jogar alguns cruzados numa pequena parada.

– Mas onde estão os dados?

– Tenho-os aqui.

– Todavia não jogo, pois não venho suficientemente abastecido de dinheiro.

– Nem eu também me acho folgado. No entanto, vinte ou trinta cruzados que se percam não aleijam a ninguém, nem pelo temor de perdê-los deve-se deixar escapar tão boa ocasião.

– Vá lá, porém com uma condição.

– Aceito-a desde já.

– É que, quando qualquer de nós tenha perdido quarenta cruzados, não se jogará mais.

– Às mil maravilhas; todo o meu dinheiro é apenas cinqüenta cruzados e assim me ficarão ainda dez para os gastos.

Convém observar ao leitor que cinqüenta cruzados, ou por outra vinte mil réis, eram naquele tempo uma quantia assaz importante, a regular-se pelos ordenados dos governadores-gerais, os quais, embora representassem a pessoa real e tivessem um mando que ia até o direito de morte em peões e gentios, apenas percebiam 400$000 anuais.

Estabelecida a preliminar da suspensão do jogo, logo que um dos parceiros perdesse quarenta cruzados, Lopo de Vila-Flor, tirou do bolso do gibão uns dados de osso, e começou a partida. tendo cada um parado dez cruzados de mão.

Lopo perdeu, e dom Sancho embolsou o dinheiro.

Seguiu-se uma outra partida, também de dez, e Lopo tornou a perder. Já um tanto impaciente, Lopo jogou numa terceira partida o resto dos quarenta cruzados da convenção, isto é, vinte.

Tornou a perder, e dom Sancho, embolsando as moedas, levantou-se disposto a prosseguir em sua viagem. Deteve-o Vila-Flor com estas palavras:

– Amigo, joguemos mais uma partida.

– Por forma alguma; segundo dissestes, o vosso dinheiro constava unicamente de 50 cruzados, e perdestes 40. Com que dinheiro fareis o resto de vossa jornada, se a sorte continuar a fugir de vós numa nova parada? Eu tenho por princípio inabalável não restituir dinheiro ganho ao jogo, ainda que o perdesse o meu próprio pai, e depois foi a condição que ditei antes de começarmos o jogo...

– Com que, então dom Sancho, – redarguiu colérico o filho do conde de Vila-Flor,– me arrancaste quarenta cruzados e assim me deixais no meio da estrada, quase sem dinheiro para pagar a hospedagem na primeira albergaria?!. .. Permiti que vos diga, sr. dom Sancho, que o vosso procedimento se assemelha muito ao de um bandido de estrada.

Ao ouvir essa inconcebível insolência, dom Sancho corou até à raiz dos cabelos, e, colocando a mão no copo da espada, respondeu com altivez:

– Sr. Lopo, se a nobre família de Vila-Flor tem por hábito tragar sem protesto de ponta de espada insultos como o que acabais de proferir, nunca a dê Sancho de Miranda, em todos os seus descendentes; até o mais longínquo futuro, sofre-las-á sem responder ao atrevido, enristando-lhe o ferro dos desagravos honestos.

Eram de bom gosto nesse tempo essas tiradas infladas de basófia e sensitivos pundonores, mas assim como se dizia fazia-se, e, seguindo a regra dom Sancho procurou desnudar a espada.

Embaraçou-se, porém, em tirá-la da bainha, e o pérfido Vila-Flor aproveitando-se desse desarmamento momentâneo, sacou da sua adaga, e enterrou-a até as guardas no peito do inimigo.

Dom Sancho, sem soltar um gemido, tombou, golfando sangue pela boca.

Em três segundos era cadáver.

Lopo de Vila-Flor, saqueando-lhe as algibeiras, arrastou o corpo para junto de um penhasco, que da estrada não se percebia, e em seguida continuou a sua viagem, sem se preocupar o mais levemente possível com o monstruoso crime que acabava de perpetrar.

Ora... tinha na algibeira dinheiro suficiente para a crápula... Que lhe importava o cadáver feito por suas mãos, que ficava apodrecendo junto à estrada, sem ao menos uma cruz presidindo à final consumação da carne?

* * *

Passaram os tempos. Insuficiente como era a polícia no primeiro período da colonização do Brasil, tendo de exercer-se com minguadas forças e em dilatadíssimas extensões, apesar dos esforços empregados pela família de dom Sancho, a fim de descobri-lo, o crime de Lopo de Vila-Flor não foi conhecido, e o assassino continuou a desregrada vida de bebedeiras, jogatinas e crápula.

Cinco anos já eram decorridos, quando aconteceu um dia cursar Vila-Flor o caminho entre a Escada e Olinda. Era a primeira vez que isso lhe acontecia, depois que ali praticara o seu nefando homicídio, do qual bem pouco se lembrava já.

Cavalgando, chegou ao riacho, onde cinco anos antes havia feito a merenda e jogado aquela partida de dados que tão fatal fora a dom Sancho.

Então veio-lhe ao pensamento todos os inciŽdentes daquela triste cena, e como por sugestão diabólica teve uma viva curiosidade de examinar o lugar em que havia depositado o cadáver do inditoso mancebo. Não pôde resistir à tentação, e, apeando-se, dirigiu-se para o penhasco. Logo o encontrou.

O cadáver apodrecera ali mesmo, e fora devorado pelos corvos. Os ossos achavam-se espalhados por um circuito de quatro a cinco braças, no qual a relva havia fenecido.

Bem no centro da ossada dispersa achava-se a caveira.

Lopo de Vila-Flor teve um gesto de horror, assim que avistou esses restos, porém domando tal movimento, procurou encher-se de coragem, e apostrofou a caveira da seguinte forma:

– Então, dom Sancho, queres agora jogar mais uma partida dos dados?

E sorriu-se, admirado do próprio cinismo.

Qual não foi, porém, o seu assombro ao ver a caveira torcer-se no chão com estalidos secos, e responder-lhe em voz de tão estranha modulação que lhe fez gelar o sangue nas veias:

Vai seguindo teu caminho,
Não perturbes minha paz,
Joga, encharca-te de vinho,
Faze tudo o que te aprazo

Por ora nada te oprime,
E não te digo mais nada,
Mas tua conta de crime,
Será na Bahia ajustada.

Lopo de Vila-Flor, ao ouvir tão estranhos versos, cujo sentido não compreendia, sentiu os cabelos levantarem-selhe na cabeça, e o corpo entrou-lhe todo a tremer. Assim permaneceu alguns segundos, porém, afinal, recobrando algum ânimo, correu espavorido para a estrada, montou a cavalo, e a todo galope fugiu daquele sítio assombrado.

* * *

As medonhas palavras que ouvira não podiam, no entanto, sair-lhe da mente; e, assim, na primeira povoação a que chegou, procurou um padre e pediu-lhe que o ouvisse de confissão, comunicando ao sacerdote o seu crime e a terrível ameaça da fantástica caveira.

O padre ficou assombrado com o que ouvira, e, prescrevendo ao criminoso dura penitência, aconselhou-o que nunca dirigisse os seus passos à Bahia pois as palavras da caveira lhe anunciavam que nesse lugar encontraria ele castigo do seu delito.

Durante alguns meses Lopo de Vila-Flor conservou-se apreensivo sobre o seu destino, mas afinal a vida de dissipação que levava, e bem assim o firme propósito que havia formado de nunca ir à Bahia, tranqüilizaram-no de todo, e pouco a pouco foi perdendo a lembrança do sucedido.

Por esse tempo os holandeses tinham invadido Pernambuco, e vencendo a tenaz resistência que lhes havia oposto o esforçado Matias de Albuquerque, haviam conseguido destruir o arraial do Bom-Jesus e expelir os portugueses de Pernambuco, depois de derrotá-los em diversos pontos.

Lopo de Vila-Flor pelejava ao lado dos portugueses, como comandante de uma companhia, e, assim, quando o príncipe de Bagnuolo, após o insucesso de Porto-Calvo, retirara-se para as Alagoas, Lopo de Vila-Flor, bem como todo o exército poŽtuguês ora obrigado a acompanhá-lo.

Senhores de Pernambuco, os batavos perseguiram os portugueses até as margens do São Francisco, e estes, não podendo oferecer resistência eficaz ao inimigo, em Sergipe, tiveram de se recolher à Bahia.

Achou-se, pois, Lopo de Vila-Flor sem o querer, e sem mesmo nisto pensar, no lugar que tanto temia, ali conduzido pelo acaso ou pelo desígnio da Providência.

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No entanto o filho do conde português não ligava mais a menor importância às suas antigas apreensões. Os episódios da grande guerra em que se achava empenhado, o espetáculo da morte que tantas vezes havia presenciado, tornaram-no inacessível ao remorso, e, como outrora, a sua única preocupação era jogar, beber e folgar.

Ora, de uma vez Lopo de Vila-Flor convidara alguns camaradas de armas para almoçar com ele e depois jogar algumas partidas. A reunião devia ter lugar numa sexta-feira, e Vila-Flor na manhã desse dia dirigiu-se à Praça a fim de comprar qualquer peça de carne com que regalasse os amigos.

Com a permanência das tropas pernambucanas na Bahia, a vida nesta cidade tornara-se muito difícil, sendo geral a escassez de víveres. Os que apaŽeciam nas feiras eram logo arrematados por preços elevadíssimos e muitíssimas famílias começavam a sofrer duras privações.

Assim, Lopo de Vila-Flor teve enorme dificuldade em encontrar um bom guisado para oferecer aos seus convidados. No mercado da cidade não havia mais nada de suculento para comprar, tendo Lopo que se contentar com uma cabeça de carneiro, cujo corpo já tinha sido arrematado por alguns oficiais que andaram mais adiantados do que ele.

Embora mortificado por esse contratempo, Lopo de Vila-Flor pagou bem caro a cabeça de carneiro, metendo-a dentro de um saco de estopa, e levou-a para casa, confiado que o seu cozinheiro, um crioulo baiano, saberia dar a essa peça inferior um tempero digno do paladar dos seus amigos.

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Quando chegou à sua habitação, já lá se achavam os convidados: eram uns quatro ou cinco rapazes alegres que o receberam com uma salva de palmas e exclamações jubilosas.

– Com que, então, – disse um deles, – temos hoje um almoço de arromba

– Qual o quê, – respondeu Lopo contristado, – nada encontrei digno de vós, nos mercados; tudo já tinha sido arrematado. Em caminho encontrei-me com um frade gordo de São Francisco, que conduzia embrulhado no hábito seboso um excelente capão. Tive ímpetos de assassinar aquele guloso servo de Deus, e roubar-lhe o bicho, que daria uma magnífica cabidela, porém temi encontrar-me no inferno com aquele patife, o qual, por seu compadresco com o diabo, me obrigaria a restituir-lhe o frangão.

Uma gargalhada acolheu essa tirada.

– Mas, então, nada encontraste

– Isso não; aqui trago uma bela cabeça de carneiro, que, sendo confiada à habilidade do nosso Lourenço, que em matéria de cozinha é mais perito do que o seu primo Henriques Dias, em questão de guerrilha, nos dará um almoço regular.

– Pois, então, viva a cabeça de carneiro, em falta de coisa melhor! – exclamaram os rapazes alegremente.

– O que lhes garanto é que é uma cabeça de carneiro do tamanho da de um novilho. Ei-la.

E, dizendo isso, Lopo desceu a boca do saco e fez rolar no soalho o conteúdo do mesmo.

Mas. .. oh! assombro!

Em lugar de uma cabeça de carneiro, rolou na sala, a espadanar sangue, uma coisa monstruosa. O que Lopo e seus convidados viram, no maior espanto, foi uma cabeça humana, medonhamente lívida, de olhos vidrados, lábios espumantes e cabelos empastados.

Um grito de pavor saiu de todos os peitos, e Lopo de Vila-Flor, não podendo conter a extraordinária emoção que dele se apoderou, exclamou trêmulo e de olhos esbugalhados:

– Dom Sancho de Miranda!

O assassino tinha reconhecido nos traços daquela espantosa cabeça as feições da sua vítima.

Nada mais pôde dizer: uma névoa densa obscureceu-lhe a vista, ganhou-lhe o corpo todo um torpor indizível, e rolou sem sentidos na sala.

* * *

Compreenderam logo os companheiros que se tratava de um crime nefando, pois alguns reconheceram igualmente aquela cabeça como a de dom Sancho que havia muitos anos tinha desaparecido da capitania de Pernambuco.

Assim entregaram Lopo de Vila-Flor à Justiça, e o indigno, sendo tomado de estranha confusão, revelou imediatamente o crime que havia cometido, com todas as suas minudências agravantes.

Foi-lhe instaurado processo; e, comparecendo em julgamento, condenado à morte, sentença essa que a Casa-da-Suplicação de Lisboa confirmou. Como era nobre, não subiu à forca: cortaram-lhe simplesmente a cabeça em uma das praças da Bahia, e assim se cumpriu a estranha ameaça proferida pela caveira de dom Sancho... "E", termina a crônica de onde extraímos esta história, "tudo assim aconteceu, para que não ficasse no mundo sem castigo um homem que tantos agravos às pessoas e bens havia praticado – um endurecido pecador que agora está purgando as suas grandes culpas nas profundezas do inferno".
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Fonte: "Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.83-95" in  Jangada Brasil.