sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Carvalhinho

Carvalhinho (Rodolfo da Rocha Carvalho), ator e comediante, nasceu em Recife, PE, em 24/05/1927, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, RJ, em 01/03/2007. Iniciou sua carreira no final da década de 40 no cinema e no teatro, inicialmente como Rodolfo Carvalho.

O Carvalhinho surgiu como seu nome artístico definitivo apenas na década de 60, quando já era conhecido por muitas peças e várias comédias não cinema.

Seus trabalhos mais importantes foram em nenhum cinema: "Dona Xepa" em 1959; "Como ganhar na Loteria Esportiva Sem perder um" em 1971; "O Varão de Ipanema" em 1976, "O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros Contras como Panteras" em 1978; "Bububu não Bobobó" em 1980 e "Irma Vap - O Retorno" em 2006, que foi seu último trabalho.

Ao longo de uma carreira de quase 60 anos ele participou de quase 30 filmes e fez inúmeras peças de teatro, além de ter feito parte do Elenco de humorísticos como "Balança Mas Não Cai" e "Zorra Total".

Ele também esteve presente nas novelas "Deus Nos Acuda", "Da Cor do Pecado" e "Torre de Babel", além da minissérie "Agosto", todas produções da Rede Globo.

Não teatro, Carvalhinho fez sucesso em "A Gaiola das Loucas" ao lado de Jorge Dória, espetáculo com o qual viajaram pelo País todo e também se arriscou como autor, Escrevendo uma comédia "O Amante do Meu Marido", montada no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Carvalhinho passou mal em sua casa após o jantar e mesmo levado às pressas para um hospital na Zona Norte do Rio de Janeiro não resistiu a um ataque cardíaco.

Fonte: Famosos que partiram; Dramaturgia Brasileira - In Memoriam.

Cardoso de Menezes

Cardoso de Menezes (Frederico Cardoso de Menezes e Souza), compositor e revistógrafo, nasceu no Rio de Janeiro em 31 de março de 1878, em uma casa na rua Bento Lisboa no bairro do Catete.

Filho de Antônio Frederico Cardoso de Menezes e Souza e Judith Ribas Cardoso de Menezes e Souza, foi criado no meio de intelectuais e artistas famosos da época, que se reuniam na casa de seus pais.

O pai foi músico, escritor, poeta e teatrólogo bastante popular no período entre 1875 e 1910; a mãe era também musicista, tendo sido colaboradora de Arthur Napoleão, famoso editor de partituras musicais. Seu avô paterno foi João Cardoso de Menezes e Souza, o Barão de Paranapiacaba (1827-1915), homem de grande erudição, autor de várias obras e traduções e que gozava de prestígio e influência junto a D. Pedro II.

Em 1900, Cardoso de Menezes casou-se com Amélia Juventina Ferreira, com quem teve quatro filhos; nenhum seguiu a carreira artística. Desde de 1895 foi funcionário público, passando pela Alfândega e se aposentando no Tesouro Nacional.

Cardoso de Menezes não quis se dividir entre música e teatro, como seu pai e, resolvendo se dedicar exclusivamente ao teatro, e especificamente ao teatro da Praça Tiradentes, pode conciliar as duas artes, trabalhando nos gêneros ligeiros musicados.

Assim nos relata Brício de Abreu: contou-me ele que, certa vez, ainda no curso preparatório, com 14 anos [1892] escreveu uma “mágica”. Em vez de estudar, estava escrevendo quando o pai [...] perguntou-lhe o que fazia [...] “Estou escrevendo uma “mágica”[...], o velho Cardoso de Menezes respondeu sorrindo para o filho : “Duvido que seja boa, e só irá à cena quando as galinhas tiverem dentes!”[...] Em 1905, [para] a sua primeira peça representada, “Comes e Bebes”, mandou convidar o pai, com um cartão onde dizia: “As galinhas criaram dentes, venha ver!” E desde então o pai se orgulhou do filho.(Abreu, 1963:248)

Antes de Comes e bebes Cardoso de Menezes havia escrito, em 1904, aos 26 anos, uma revista para ser encenada pelo grupo amador Clube Dramático de Ouro, de São Cristovão: São Cristovão por um óculo. Foi na ocasião desta apresentação que Cardoso de Menezes conheceu Chiquinha Gonzaga e Alvarenga Fonseca, que o incentivaram a continuar escrevendo. E foi o que fez, sozinho ou em parceria, o nosso revistógrafo, tornando-se um dos autores de revistas, burletas e operetas mais famosos do Rio.(Abreu, 1963:248)

Com a burleta Comes e bebes deu-se sua estréia profissional, que contou com intérpretes que se tornariam célebres, pouco tempo depois, no teatro ligeiro carioca. A estréia ocorreu justamente na Companhia do Teatro São José, em 4 de janeiro de 1912, com Alfredo Silva, Cinira Polônio, Júlia Martins, Pepa Delgado, Franklin de Almeida e outros. Vieram logo depois, ainda em 1912, a opereta Casei com titia, com música de Chiquinha Gonzaga, apresentada no Teatro São Pedro pela Companhia João de Deus e Zé Pereira com música de Francisco Nunes , também no São José. (Abreu, 1963:248)

Cardoso de Menezes, aliando-se primeiro à grande Chiquinha Gonzaga e logo após a Carlos Bittencourt, produziu revistas, burletas e operetas que ficaram como modelos do gênero. A revista, então chamada de “Carnaval”, teve nele o seu grande autor, “Gato, Baêta e Carapicú” foi dos maiores êxitos de sua época com o ator Alfredo Silva. Depois da fundação da Cia. Nacional de Revistas e Burletas por Paschoal Segreto, para o Teatro S. José, em 1913 [sic], não creio que algum autor tenha ultrapassado com êxito a dupla Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes. (Abreu, 1963: 249)

Cardoso de Menezes foi um dos raros autores a ter o privilégio de ver suas peças em cena por mais de cem representações consecutivas; o que era considerado, para os padrões da época, e do teatro ligeiro, um claro indicativo de qualidade. Segundo Gill (1944: 8) as peças de Cardoso de Menezes [constituíam] acontecimentos expressivos principalmente para os cofres das empresas teatrais [...] e como revistógrafo, descobriu o ovo de Colombo do teatro no Rio quando criou a sua primeira revista exclusivamente carnavalesca. Foi autor de muitas peças, e grande parte desse sucesso, devido certamente a sua “maestria” na escrita destes gêneros teatrais e a conseqüente boa acolhida do público, realizou com seu mais regular e igualmente bem sucedido colaborador, Carlos Bittencourt.

Faleceu em 30 de março de 1958, às vésperas de completar 80 anos, dos quais mais da metade foram dedicados ao teatro. Sua última peça foi ainda uma revista, Fogo no pandeiro, montada em 1950, pela Companhia Ferreira da Silva no Teatro João Caetano, tendo como intérpretes, entre outros, Dercy Gonçalves, Colé, Silva Filho e Walter D’Ávila.

Fonte: Frederico Antonio Cardoso Menezes - Uma Dinastia de músicos no Porto / Trecho da dissertação de mestrado de Maria Filomena Vilela Chiaradia, p.79-82.

O segredo da guilhotina

Às 7 horas da noite de 5 de junho de 1864, o Dr. Edmundo Couty de La Pommerais, que fora transferido das prisões da Conciergerie à da Roquette, estava sentado na cela dos condenados à morte. Taciturno, imóvel, com os olhos parados, apoiava-se numa cadeira. A vela sobre a mesa iluminava seu rosto pálido, paralisado. A dois passos dele um carcereiro com os braços cruzados, encostado na parede, o vigiava.

Quase sempre, prisioneiros eram obrigados a trabalhar todos os dias e do soldo que recebiam era descontado pela administração, como prioridade, o custo de um caixão no caso de morte. Mas os condenados à morte não tinham trabalho obrigatório.

No rosto do prisioneiro não havia nem medo nem esperança. Tinha 34 anos, moreno, de estatura mediana, forte; nas têmporas os cabelos começavam a clarear; o olhar instável, a testa larga, mãos agitadas; a fisionomia calma e os modos distintos.

No Tribunal do Sena, a defesa do advogado Lachaud, apesar de brilhante, não alterara na consciência dos jurados a impressão transmitida pela acusação do senhor de Vallés. E La Pommerais, acusado de ter ministrado, com premeditação e fim delituoso, doses mortais de digitalina a uma senhora sua amiga - a Sra. De Pauw - ouviu a sentença de morte, conforme artigos 301 e 302 do Código Penal.

Naquela noite ele ainda ignorava a rejeição do recurso da pena e de qualquer audiência solicitada pelos seus familiares. Seu defensor foi atendido com displicência pelo imperador. O venerável abade de Crozes, que a cada execução suplicava branduras nas Tulherias, voltara sem nada conseguir. Comutar uma pena de morte poderia aparecer como uma abolição. Abrir-se-ia um precedente muito grave. O carrasco fora avisado que a execução seria no dia 9, às 5 horas da manhã.

Subitamente, um estrepitoso bater de coronhas de fuzil ressoou no corredor, a fechadura rangeu, a porta se abriu e o diretor da Roquette surgiu acompanhado de visitante que La Pommerais reconheceu como sendo Armand Velpeau, ilustre cirurgião. A um sinal o carcereiro saiu e o diretor, após formal apresentação entre os dois colegas, também se retirou.

* * *

Velpeau alcançava seus 60 anos. No apogeu da sua fama, herdeiro da cátedra de Larey no Instituto, primeiro professor de clínica cirúrgica de Paris, era tido, pelos trabalhados executados, um luminar da patologia da época.

Depois de breve silêncio, ele disse:

- Entre médicos as condolências são inúteis. Por outro lado, uma moléstia - da qual morrerei nos próximos dois anos, ou, no máximo, dois e meio - me classifica, com alguns meses de distância do colega, na categoria dos condenados à morte. Vamos então ao que interessa.

- Então, segundo o colega e professor, a minha situação é sem esperança? - interrompeu La Pommerais.

- Teme-se - respondeu, simplesmente, Velpeau.

- Assim, a minha hora está marcada?

- Eu ignoro. Como ainda não está nada concretizado, o colega pode contar com alguns dias.

La Pommerais enxugou a fronte pálida com a manga da sua roupa de prisioneiro.
- Seja o que for, estou pronto. Quanto antes acontecer, melhor.

- Se o seu recurso não foi até agora rejeitado - prosseguiu Velpeau - a proposta que venho fazer é condicionada. Se for salvo, tanto melhor, caso contrário...

- Caso contrário?...

Sem responder, Velpeau apoiou o dedo médio no pulso do jovem condenado.

- Senhor La Pommerais, - disse - sua pressão revela tratar-se de um homem muito calmo, de uma firmeza rara. O que pretendo propor ao colega, que deve ficar em segredo, pode parecer, dirigida desta maneira a um médico cheio de energia e bastante destemido, uma extravagância ou mesmo uma intenção maldosa. Mas, mesmo que ela possa consterná-lo, no primeiro instante, espero que o colega a leve em consideração.

- Tem toda a minha atenção - respondeu La Pommerais.

- O amigo não ignora - continuou Velpeau - que uma das questões mais interessantes da fisiologia moderna é saber se algum resto de memória, reflexão, sensibilidade, persiste no cérebro do homem, depois que a cabeça lhe é decepada.

Ante tal preâmbulo, o condenado assustou-se, mas recompôs-se em seguida:

- Quando o professor entrou, - respondeu - eu imaginei mesmo alguma coisa nesse sentido, mas que pudesse ser interessante para mim.

- O colega certamente está informado dos trabalhos escritos sobre tais problemas: de Sommering, de Sue, de Sédillot, e de Bichat, até os mais modernos.

- Certa vez assisti seu curso sobre dissecação no cadáver de um justiçado.

- Ah! E tem noções exatas, numa visão cirúrgica, sobre a guilhotina?

La Prommerais respondeu com frieza:

- Não.

- Hoje mesmo estudei detalhadamente a guilhotina - prosseguiu Valpeau, sem comoção. - É um instrumento perfeito. Age a um só tempo como foice e como clava, corta o pescoço do paciente num terço de segundo, exatamente. O decapitado, com a rapidez fulminante do golpe, não sente nenhuma dor, como a de um soldado que perde o braço na explosão duma granada. A sensibilidade, pela exigüidade do tempo, é nula.

- Talvez a dor venha depois...

- Bérard fez justiça a essa fantasia - interrompe prontamente Velpeau. - Estou plenamente convicto, baseado em numerosas experiências e observações generalizadas, que o rompimento instantâneo da cabeça resulta numa anestesia absoluta. Saber que a síncope, provocada pela repentina perda de quatro a cinco litros de sangue - freqüentemente com força de expansão de projeção circular de um metro de diâmetro - deveria tranqüilizar os mais medrosos.

Quanto às reações inconscientes da estrutura carnal, mesmo que subitamente sustada no seu processo, não são indícios de sofrimento como no frêmito de uma perna cortada, cujos músculos e nervos se contraem depois da amputação, sem sofrimento do indivíduo. Eu digo que a febre nervosa da incerteza, a preparação da solenidade da execução, o assombroso despertar no dia fatal, se apresentam como os terríveis sofrimentos. Sendo, portanto, imperceptível a amputação, a dor real é imaginária.

Um golpe assim violento na cabeça, não só não é sentido, como não lhe deixa a consciência do fato: a simples lesão das vértebras provoca absoluta insensibilidade. A rescisão da cabeça, o corte da espinha dorsal, a interrupção das relações orgânicas entre o coração e o cérebro, não seriam então suficientes para exterminar qualquer sensação, mesmo íntima ou vaga, da dor? Creio que sim.

- Pelo menos eu espero que sim, mais ainda do que o professor! - responde La Pommerais. - Ainda que haja qualquer sofrimento físico - apenas concebido pela desordem sensorial e o sufoco crescente da morte - não é isso que eu temo. E outra coisa...

- Pode me explicar? - perguntou Velpeau.

- Escute, - murmurou Velpeau, depois de um instante de silêncio. - Eu penso que os órgãos da memória e da vontade estejam isolados na passagem da lâmina! Temos experimentado muitos equívocos até hoje, para que se possa falar da inconsciência imediata de um decapitado. Quantos homens, questionados, têm se dedicado ao problema?... Memória dos nervos? Movimentos reflexos? Não. Recorda-se da cabeça daquele marinheiro que, na clínica Brest, um quarto de hora após sua decapitação, moveu seus maxilares, talvez voluntariamente, partindo em dois um tudo colocado entre eles?... Para não escolher apenas este exemplo entre tantos outros, a questão seria saber se existe ou não o ego deste homem, que contrai os músculos da cabeça exangue. Quem poderia revelar isso? Antes de oito dias eu vou saber, mas... também esquecerei!

- Depende mesmo do colega esclarecer a humanidade a respeito, definitivamente - respondeu calmamente Velpeau, olhos fixos no interlocutor. - E falemos claro, é exatamente por isso que estou aqui. Fui delegado por uma comissão dos mais eminentes colegas da Faculdade de Paris, junto ao colega, aqui, para fazer a última tentativa junto ao imperador.

- Explique... Não entendo... - respondeu perplexo La Pommerais.

- Senhor de La Pommerais! Em nome da ciência, que nos é muito importante e que não conta mais com inúmeros mártires magnânimos, venho reclamar - na hipótese de alguma experiência entre nós for possível - reclamar de todo seu ser toda a energia e a coragem que se possa conseguir de um ser humano. Se o seu recurso de graça for negado, o colega estará numa condição ímpar como médico, competente e lúcido, a sofrer uma suprema e fatal cirurgia. Assim, seria inestimável sua cooperação comunicação experimental, em busca de esclarecimentos sobre o corpo e as sensações. A ocasião deve ser aproveitada. No caso de um sinal de inteligência, identificado depois da execução, o colega vai deixar um nome cuja glória científica obscurecerá para sempre a lembrança da sua culpa social.

- Ah! - murmurou La Pommerais, pálido mas com um sorriso resoluto. - Começo a compreender!... E de que natureza seria a experiência? Choque elétrico? Excitação do nervo ciliar? Injeção de sangue arterial?

- Ao colega é dispensável salientar que, depois da triste cerimônia, o seu cadáver irá repousar em paz sob a terra e que nenhum dos nossos instrumentos serão usados nele - acrescentou Velpeau. - Ao cair da lâmina estarei de pé diante do colega, junto à guilhotina. O mais rápido possível, a sua cabeça passará das mãos do carrasco às minhas. Então, gritarei, claramente, ao seu ouvido: "Senhor de La Pommerais, pode neste momento abaixar três vezes a pálpebra do olho direito, conservando o outro aberto?"

Se então puder o colega, quaisquer que sejam as outras contrações faciais, puder fazer o tríplice piscar de olhos, me avisando que me ouviu e compreendeu, provando assim o uso da memória e da vontade através do seu músculo palpebral, do nervo zigomático e da conjuntiva - controlando todo o horror e a onde de impressões do seu ser - bastará para iluminar a ciência e elevar nossas convicções. E seu nome, esteja certo disso, será anunciado de maneira que o colega será lembrado no futuro, não como um delinqüente, mas como um herói.

Diante destas palavras, La Pommerais pareceu tão emocionado que, com suas pupilas dilatadas e fixas no cirurgião, permaneceu alguns minutos em silêncio, imóvel. Depois se ergueu e deu alguns passos, balançando a cabeça com ar tristonho:

- A horrível violência do golpe vai me fazer desmaiar. Realizar o que me pedes, fica acima de toda a vontade e esforço humano. Mas, diz-se que as chances de vida não são as mesmas para todos os guilhotinados. Então volte, professor, no dia da execução. Responderei se concordo ou não com a empreitada, ilusória e impressionante. Se eu não concordar, conto com a sua palavra que a minha cabeça sangrará totalmente, até a última gota, no vaso de barro.

- Está bem, senhor de La Pommerais - disse Velpeau, levantando-se - reflita bem sobre o caso. Em seguida o doutor Velpeau saiu da cela. O carcereiro reapareceu e o prisioneiro se deitou, resignado, para dormir ou sonhar.

* * *

Quatro dias depois, às cinco e meia da manhã, o diretor da Roquette, o abade Crozes, os senhores Claude e Potiers, este conselheiro da corte imperial, penetraram na cela.

O doutor de La Pommerais, ao saber da notícia fatal, se conservou de cabeça baixa, muito pálido. Depois se levantou e se vestiu rapidamente. Em seguida, conversou cerca de dez minutos com o abade Crozes, ao qual já agradecera a visita. Ao avistar o doutor Velpeau anunciou:

- Tenho trabalhado, veja!

E, durante toda a leitura da sentença, conservou fechada a sua pálpebra direita, olhando o cirurgião com o olho esquerdo bem aberto.

Ao final, Velpeau se inclinou demoradamente diante do colega, depois voltou-se para o carrasco, que entrava com seus ajudantes, e trocou com ele um sinal, como a confirmar um tratado.

O apresto foi rápido. O fenômeno dos cabelos que se branqueiam rapidamente ao corte da tesoura nos condenados à morte, não ocorreu. La Pommerais recusou o copinho de aguardente e o cortejo seguiu pelo corredor. Diante do pátio, estando na porta o colega, murmurou-lhe:

- Daqui a pouco... adeus!

* * *

De repente os grande portões de ferro do presídio, que davam para a rua, se abriram.

A aurora despontava. Via-se a praça, organizada por um duplo cordão de cavalarianos. No centro, num semicírculo de guardas a cavalo, surgia o patíbulo. A uma certa distância, além do grupo de jornalistas, não havia ninguém. Mais embaixo, atrás das árvores, ouviam-se os rumores bestiais da multidão, cansada da vigília. Nas coberturas das tavernas, nas janelas, jovens corrompidas, lívidas, em roupas excêntricas; outras, ainda trazendo nas mãos as garrafas de vinho - surgiam acompanhadas de tristes casacas pretas. Já as andorinhas, madrugadoras, voavam em círculos, sobre a praça.

O cadafalso parecia prolongar até o horizonte a sombra dos seus braços estendidos, entre os quais, lá em cima, muito mais distante, no clarão da alvorada, se via brilhar a última estrela.

Diante deste fúnebre espetáculo, o condenado teve um calafrio; depois se aprumou e caminhou direto ao palco, inclinando-se na posição de entrega. A lâmina triangular brilhava junto ao negro madeirame; cinco pessoas se perfilavam no patíbulo e o silêncio, naquele momento, se tornou tão profundo que o leve rumor de um ramo quebrado pelos pés de um curioso chegou até o trágico grupo.

Soando a hora em que lhe foi negado o último recurso, o doutor de La Pommerais pôde ainda ver, do outro lado, seu ilustre colega, que o observava. Fechou os olhos, concentrando-se.

A mola escapou bruscamente, o botão cedeu e o brilho da lâmina oscilou. Um choque violento sacudiu a plataforma e os cavalos se agitaram, como a sentir o cheiro de sangue; o eco do barulho ainda vibrava quando a cabeça ensangüentada da vítima parecia palpitar entre as mãos do doutor Velpeau, avermelhando-lhe os dedos, os punhos, a roupa.

Era um rosto terrivelmente branco, olhos escancarados, com os supercílios arqueados e a boca contraída; os dentes pareciam soltos e o mento, na extremidade da mandíbula, estava cortado.

Velpeau curvou-se sobre a cabeça e, junto à orelha direita, fez a pergunta combinada. Apesar de preparado para aquela contingência, sobressaltou-se, sentindo um frio percorrer-lhe a coluna: a pálpebra do olho direito se abaixou, enquanto o olho esquerdo fixou-o, escancarado.

-Em nome de Deus e do nosso ser, mais duas vezes este sinal! - gritou, confuso.

Os cílios separaram-se, como sob esforço interno, mas a pálpebra não mais se ergueu e a fisionomia se tornou, aos poucos, rígida, gélida e, por fim, imóvel. Era o fim. Então o doutor Velpeau entregou a cabeça exangue ao carrasco, que a colocou num cesto, segundo os costumes, entre as pernas do corpo quase rígido.

O célebre cirurgião lavou as mãos numa das vasilhas destinadas à lavagem da guilhotina. O público se dispersava, silencioso. Também em silêncio, o doutor enxugou as mãos e caminhou a passos lentos, preocupado, até o coche que o esperava junto ao portão.

Ao sair observou a lúgubre carreta que se afastava rapidamente, para o cemitério dos justiçados.

por Villiers de L'Isle-Adam

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com

O defunto

Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e parece-lhe então que estava morto.

Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! que dolorosa e lenta agonia!

De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.

E sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!

Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do "cadáver" que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?

E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.

- Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão! - Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos; - oh! essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja

E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado' numa gruta profunda.

Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível.

A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo, - e sente uma a uma ensangüentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!

Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria..

Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.

Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se, - assim como uma cidade que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.

Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.

Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. - E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos, - nem viv'alma! Apenas sombras.

Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: - Marcha! Marcha! - As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão.

Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva - o defunto caminhava.

De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma idéia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa.

Devia ser tarde; ansiavam por ele. - Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava.

Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo - e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contacto, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam.

No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. - Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se "ele" ali estava oculto contemplando a felicidade do outro "ele"! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! se ele pudesse, também seguir-lhes o vôo!...

Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra - e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas.

Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... - Mas ele era cadáver e na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos...

Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! que deliciosa alegria! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo - coragem!

E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte...

Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.

* * *

Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.

Pensou, então, no seu sonho - e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.

Longas horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia infinita! Ah! como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...

* * *

Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol - único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.

Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro - longo como um deserto; a noite inteira - vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber

Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!

O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentara! A fome que ela fizera crescer! - E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado.

De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as - e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago crispado pela fome.

Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.

Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita - e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...
__________________________________________________________________
por Thomaz Lopes