quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Veneno

Ele a esperava, no corredor. Baixou a voz:

— Preciso bater um papinho contigo.

— Quando?

— Logo mais.

— E onde?

— No jardim.

— OK.

Mas ouviram passos na escada. Marina pediu, num sopro de voz: “Cuidado com minha filha! Cuidado com minha filha!”. Fugiu ao longo do corredor, abriu a porta do quarto e entrou, trancando-se. Veio sentar-se diante do espelho; disse para si mesma: “Estou maluca! Completamente maluca!”. E uma coisa, sobretudo, a aterrava: que sua filha Terezinha, de treze anos, descobrisse e desconfiasse. O fato é que, depois de catorze anos de felicidade matrimonial, ela experimentava um primeiro flerte, olhava para um homem que não era seu marido. Uma amiga desquitada, que estava no mesmo hotel, ponderava: — “Isso não é nada do outro mundo”. E sugeria: — “Aproveita, aproveita!”. Esse conselho claro ou mesmo cínico foi de uma grande e pungente doçura para Marina. Ainda assim perguntou, com uma expressão de tormento nos olhos e na boca:

— E minha filha?

AS DUAS

Estavam naquele hotel de montanha há quinze dias, ela, o marido (Godofredo) e a filha única (Terezinha). O marido descera naquela tarde para a cidade, para atender a um chamado urgente. Terezinha, que adorava o pai, levara-o até o ônibus. Ao despedir-se, depois de beijar e ser beijada, a menina prometera, fixando no pai os olhos serenos:

— Eu tomo conta de mamãe.

Godofredo achou graça. Homem sem imaginação e sem ciúmes, não pedira essa vigilância. Pois bem. Partiu o ônibus e as duas ficaram sozinhas. E, para Marina, a pior forma de solidão era a companhia da filha. Ao longo dos anos, não conseguira conquistar a menina. Não havia entre elas nenhuma confiança, nenhum abandono, nenhum carinho possível. Desesperada, Marina perguntava a si mesma: “Mas o que foi que eu fiz a essa menina? Que foi?”.

De fato não fizera nada, absolutamente nada. Mas a verdade é que existia, de uma para a outra, uma sutil, uma secreta hostilidade. Um dia, no confessionário, teve que admitir: “Eu não sou a mãe que devia ser”. Fez um esforço para acrescentar: — “Não gosto de minha filha”. Desejaria ser como as outras mães, mas qualquer tentativa que fazia no sentido de acariciar a menina a amargurava. Essa falta de amor era tão ilógica que, na sua meditação, agarrava-se à explicação espírita: “Quem sabe se em encarnações anteriores...”. Agora estavam as duas sozinhas num hotel, fechadas, cada qual no seu mundo de solidão.

O FLERTE

Depois que a família chegara ao hotel, começara o primeiro flerte pós-matrimonial. Para si mesma e para a amiga desquitada, ela fazia questão de sublinhar: “O primeiro, o primeiro!”. Chamava-se Gustavo e estava à porta quando a família desembarcou. Ela o achou talvez bonito demais para um homem. Mais tarde, já no quarto, abrindo as malas, guardando as roupas na gaveta, pensava naquele rosto que mal percebera nos atropelos da chegada. O pior não foi a impressão muito intensa, mas a certeza imediata de que se apaixonaria por ele. Na mesa, parecia distraída, ausente ou nervosa. De repente, porém, tomou um susto. Percebeu que a filha não a desfitava, como se lesse com apavorante vidência os seus pensamentos mais secretos. Dissimulou, tanto quanto possível. Riu alto a pretexto de nada. Mas sentiu no próprio riso um som falso. Pouco depois, a amiga desquitada vinha dizer-lhe: “Viste que pedaço de homem?”. Disfarçou: “Sim”. Foi ainda essa amiga quem, dias após dias, exasperou sua imaginação. Começou por dizer: “Está te olhando. Olha também, sua boba!”. Foi assim que começou aquele flerte. O primeiríssimo. O marido não via, não observava nada. Marina, porém, tinha medo da filha, muito sensível, sagaz e atenta. Se não fosse a cumplicidade e o estímulo da amiga, teria talvez desistido. Mas a outra a cercava por todos os lados:

— Flerte não tem importância. É uma coisa à toa.

Marina reagia:

— Mas eu sou casada!

— Ora, fulana! Você pensa que então a mulher casada é um paralelepípedo? Tinha graça!

Apenas balbuciou a pergunta:

— E minha filha? Muxoxo da amiga:

— Manda tua filha lamber sabão!

O BEIJO

Era realmente flerte, apenas flerte, nada mais, na sua forma inócua e clássica, ou seja, à distância. Limitavam-se a olhares que, entretanto, eram de uma delícia mortal. Jamais haviam trocado uma palavra, um aperto de mão, uma carícia. A desquitada, que estava no caso esportivamente, sem nenhum interesse, já resmungava: “Vocês estão bobeando! Ah, se fosse comigo!”. Marina sofria, a verdade é que sofria. Até então, julgara-se feliz e, de repente, descobre que sua felicidade não existia, nunca existira. Tinha agora abstrações, melancolia; um perfume a fazia chorar ou desfalecer. Acabou admitindo para a desquitada:

— Amo este homem. — E repetiu numa espécie de angústia: — Amo.

A desquitada a instigou:

— Mergulha de cara! Mergulha de cara!

E, uma noite, pouco antes do jantar, aconteceu uma fatalidade deliciosa e terrível. Cruzou, no corredor, com o bem-amado. Tudo aconteceu de uma maneira irresistível. Sem uma palavra, Gustavo se apoderou de sua mão e a beijou, longamente. Foi um minuto ou muito menos. Mas ela saiu dali numa embriaguez completa. E o que tornava sua delícia mais aguda era o sentimento do pecado. Correu à amiga, pois sentia necessidade imediata de uma confidência. Contou que o Gustavo a beijara na mão... Fulana exclamou: “Na mão?”.

Confiou, convulsa: “Pois é”. Fez a outra pôr a mão no seu peito para sentir as palpitações furiosas. Mas a desquitada parecia insatisfeita: “Vocês são dois moscas-mortas. Ora veja!”. Para Marina, porém, o episódio se revestia de um significado terrível. Pela primeira vez, o caso saía da espiritualidade pura e se materializava. Foi nessa noite que o marido recebeu o chamado. A desquitada esfregou as mãos:

— Está pra ti! Ou é agora ou nunca!

O FATO

O marido partiu. E, à noite, no corredor, Gustavo pedira: “Um papinho”. No jardim, Marina teve de esperar que a filha, que dormia com uma coleguinha, se recolhesse. Até o último momento teve um pavor: “Será que ela vai cismar de dormir comigo?”-. Felizmente, a menina, sem desconfiar, foi com a colega para o quarto. Então Marina deslizou como uma criminosa, com o coração aos pinotes e uma sensação de crime. Parecia-lhe, então, que jamais tivera qualquer amor, qualquer carinho, qualquer afinidade com o marido; pensava nele como o último dos estranhos. Ficou no jardim com o Gustavo uma meia hora. Desde o primeiro instante, sentiu-se frágil, indefesa, derrotada. Lembrava-se que o marido voltaria no dia seguinte e que só lhe restava uma noite livre. Essa urgência do pecado era fascinadora. Por outro lado, Gustavo foi altivo, ousado, quase brutal. E a deslumbrava com um argumento de cinismo absoluto: — “Uma vez só. Uma vez não são todas”. Ela evitava, embora sabendo que se abandonaria. Na verdade, resistia à idéia de capitular sem luta, sem conquista, sem namoro. E mal ia escutando:

— Deixa a porta encostada, apenas encostada... À meia-noite, eu vou lá e... Sim?

Respondeu, num sopro:

— Sim.

Voltou correndo. Mas o deslumbramento inicial se extinguira. O que havia no mais íntimo de si mesma era uma angústia intolerável, a vontade de fugir e, ao mesmo tempo, um ressentimento contra o marido que não se fizera amar. Pensava também na filha: “Imagina se ela sabe ou imagina!”. De repente, aparece a desquitada e, ao saber que está tudo combinado, pisca o olho: “Felicidades!”. E sai.

À meia-noite em ponto, Gustavo empurra a porta encostada.

O REMÉDIO

Marina acordou tarde. Toda sua angústia desaparecera: estava de novo feliz e com a sensação de que só agora começava a viver. Levantou-se, pôs as chinelinhas róseas e, na camisola muito leve, que era quase a nudez, correu ao espelho como se quisesse ver a própria imagem depois do pecado. E, pelo espelho, viu quando Terezinha entrava. Trazia um copo com um líquido qualquer. Marina virou-se, mas a simples presença da filha feriu de morte todo o seu encanto de viver. Estavam as duas, no meio do quarto, face a face. Até aquele momento, havia entre mãe e filha uma polidez que era o disfarce de um sentimento mais turvo, mais profundo e mais envenenado. E, pela primeira vez, ambas viam o rosto verdadeiro da outra. Naquele instante, ocorreu novamente a Marina a explicação espírita de que na outra encarnação... Então, com o rosto erguido, quase sem mover os lábios, Terezinha foi dizendo:

— Eu me escondi detrás do guarda-roupa... Fiquei lá a noite toda...

E repetiu, trincando nos dentes as palavras:

— Detrás do guarda-vestidos...

O DILEMA

Marina sentiu que a mentira seria inútil. Teve um brusco pavor daquela filha. Foi fraca, pusilânime. Indefesa, perguntou:

— Que queres que eu faça?

A resposta veio sumária, quase doce: “Bebe isso”. Não compreendeu imediatamente. Apanhou o copo; ergueu-o contra a luz. Tornou a perguntar: “Mas isso é o quê?”. E a outra, com os lábios negros:

— Veneno.

Recuou, aterrada, sem coragem de atirar longe aquele copo, de parti-lo em mil estilhaços. Sentiu-se agarrada. Terezinha dizia-lhe: “Então, bebo eu. Ou tu ou eu. Uma de nós tem de beber”. Marina olhou com assombro o líquido claro, enquanto a filha repetia:

— Ou tu ou eu.

Marina fechou os olhos, foi bebendo, até o fim. Largou então o copo, que se estilhaçou no chão.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Tônia Carrero

Tônia Carrero
“Ela fala pelos cotovelos!….Mas que cotovelos”, disse o escritor Rubem Braga no Degrau, bar do Leblon, sobre a mulher por quem era apaixonado, Tônia Carrero. Eles já tinham se tornado apenas amigos. Braga sussurrou isso a Paulo Mendes Campos, numa mesa boêmia. Ele, calado como sempre. Ela, desinibida, encantava como sempre.

Tônia Carrero (Maria Antonieta Portocarrero Thedim), atriz, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 23 de agosto de 1922. Após longos anos de carreira, é considerada uma das mais consagradas atrizes do Brasil, com marcantes interpretações em cinema, teatro e televisão.

Apesar de graduada em educação física, a formação de Tônia como atriz foi obtida em cursos em Paris, quando já era casada com o artista plástico Carlos Arthur Thiré, pai do ator e diretor Cecil Thiré. Ao voltar da França, protagonizou o filme Querida Suzana. Foi a estrela da Companhia Cinematográfica Vera Cruz - São Bernardo do Campo - SP, tendo atuado em diversos filmes.

A estréia em teatro foi no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) em São Paulo, com a peça Um Deus Dormiu Lá em Casa, onde teve como parceiro o ator Paulo Autran. Após a passagem pelo TBC formou, com seu marido na época, o italiano Adolfo Celi e com o amigo Paulo Autran, a Companhia Celi-Autran-Carrero que, nos anos 50 e 60 revolucionou a cena do teatro brasileiro ao constituir um repertório com peças de autores clássicos, como Shakespeare e Carlo Goldoni, e de vanguarda, como Sartre.

Em 1965, sem a presença de Adolfo Celi, que havia guiado e impulsionado a sua carreira, Tônia cria a sua própria empresa, a Companhia Tônia Carrero, que não é mais um conjunto estável, mas uma firma que viabilizará as esporádicas montagens protagonizadas pela estrela. Interpreta com graça, ao lado de Paulo Autran, A Dama do Maxim's, de Georges Feydeau; agora dirigida por outro diretor italiano, Gianni Ratto, 1965.

Em 1968, alcança um ponto alto em sua carreira, com a patética Neusa Suely, personagem principal de Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Sob a vigorosa direção de Fauzi Arap, artista que muito a influencia nessa fase, Tônia despe-se da sua proverbial beleza e elegância, para mergulhar fundo no sofrimento e nas humilhações de uma miserável prostituta, levando os prêmios Molière e Associação de Críticos Cariocas.

Em 1970, volta a ser dirigida por Fauzi, experimentando, em companhia de Autran, um drástico insucesso em uma montagem de Macbeth, de William Shakespeare.

Em 1971, ela interpreta a Nora de Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, sob a direção do seu filho Cecil Thiré. Ainda com ele, em 1974, comemora seus 25 anos de teatro com o grande sucesso comercial de Constantina, de Somerset Maugham.

Protagoniza Doce Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams, com direção de Flávio Rangel, 1976. Dirigida por Antunes Filho, faz a pesonagem Marta de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, 1978. Com direção de Adolfo Celi, em visita ao Rio de Janeiro, faz a comédia Teu Nome É Mulher, de Marcel Mithois, 1979. Protagoniza A Volta Por Cima, texto e direção de Domingos Oliveira, com direção do autor, 1982. Volta a contracenar com Paulo Autran, e sob a direção deste, no árduo texto de Marguerite Duras, A Amante Inglesa. Interpreta em 1984, com êxito de bilheteria, o papel de Sarah Bernhardt, em A Divina Sarah, de John Murrel, direção de João Bethencourt.

Com Anselmo Duarte no filme "Tico-Tico no Fubá" (1952)
A partir de 1986, Tônia Carrero parece mudar radicalmente os rumos de sua carreira, deixando de investir em clássicos e textos de resultado garantido, para correr o risco na produção e na interpretação de textos modernos, com encenadores de linguagem investigativa. Sua interpretação surpreende público e crítica em Quartett, de Heiner Müller, dirigida por Gerald Thomas, que ela conhece na Off-off Brodway, em Nova York, e traz para o Rio de Janeiro, recebendo o Molière de melhor atriz. 

Em 1989, sob a direção de Marcio Aurelio, comemora 40 anos de carreira encenando um solo: vivendo Zelda Fitzgerald em Esta Valsa é Minha, de William Luce, Tônia mostra agilidade movimentando-se coreograficamente entre tapadeiras móveis no palco do Teatro Glória. Em 1990, reencontrando o parceiro de cena Paulo Autran, aventura-se em Mundo, Vasto Mundo, uma coletânea de textos de Carlos Drummond de Andrade.

Na década de 1990, atua novamente sob a direção do filho Cecil Thiré em Ela É Bárbara, de Barillet e Grédy. Em 1999, associa-se mais uma vez a um encenador mais jovem, Eduardo Wotzik, para realizar Um Equilíbrio Delicado, de Edward Albee. Em 2000, está ao lado de Renato Borghi em O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov, direção de Élcio Nogueira.

Na TV, um dos seus personagens mais marcantes foi a sofisticada e encantadora Stella Fraga Simpson em Água Viva (1980), de Gilberto Braga. Tônia viria a trabalhar novamente com o autor, em 1983, na novela Louco Amor, dessa vez interpretando a não menos charmosa e chique Mouriel. Tanto em Água Viva como Louco Amor, Tônia perdeu o papel da vilã para Beatriz Segall e Tereza Rachel, respectivamente. Mesmo assim os dois personagens que interpretou foram um sucesso.

É avó dos atores Miguel Thiré, Luísa Thiré e Carlos Thiré, que foi casado com a atriz Isabela Garcia, que é irmã da atriz Rosana Garcia. Prestes a completar 89 anos, tendo quase sete décadas dedicadas às artes, saiu de cena. Involuntariamente. Por motivos de saúde, uma das maiores estrelas do teatro e da TV brasileira, que viveu intensamente seu ofício, está reclusa em casa, no Jardim Botânico, zona sul do Rio.

Carreira no teatro

* 1949 - Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo, com direção de Adolfo Celi
* 1950 - Amanhã, se Não Chover, de Henrique Pongetti, com direção de Ziembinski
* 1953 - Uma Certa Cabana, de André Roussin (tradução de Brício de Abreu), com direção de Adolfo Celi
* 1954 - Uma Mulher do Outro Mundo, de Noel Coward, com direção de Adolfo Celi
* 1954 - Cândida, de Bernard Shaw, com direção de Ziembinski
* 1956 - Otelo, de William Shakespeare, com direção de Adolfo Celi
* 1956 - Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, com direção de Adolfo Celi
* 1960 - Calúnia, de Lillian Hellman, com direção de Adolfo Celi
* 1960 - Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello, com direção de Adolfo Celi
* 1965 - A Dama do Maxim's, de Georges Feydeau, com direção de Gianni Ratto
* 1968 - Navalha na Carne, de Plínio Marcos, com direção de Fauzi Arap
* 1971 - Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, com direção de Cecil Thiré
* 1976 - Doce Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams, com direção de Flávio Rangel
* 1978 - Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, com direção de Antunes Filho
* 1984 - A Amante Inglesa, de Marguerite Duras, com direção de Paulo Autran
* 1984 - A Divina Sarah, de John Murrell, com direção de João Bethencourt
* 1986 - Quartett, de Heiner Müller, com direção de Gerald Thomas
* 2003 - A Visita da Velha Senhora, de Friedrich Dürrenmatt , com direção de Moacyr Góes

No cinema

* 2008 - Chega de Saudade
* 2005 - Vinicius (documentário), com direção de Miguel Faria Jr
* 1990 - O Gato de Botas Extraterrestre, com direção de Wilson Rodrigues
* 1988 - Sonhos de Menina Moça, com direção de Tereza Trautman
* 1988 - Fogo e Paixão, com direção de Isay Weinfeld e Márcio Kogan
* 1988 - A bela Palomera, com direção de Ruy Guerra
* 1977 - Gordos e Magros, com direção de Mário Carneiro
* 1969 - Tempo de Violência, com direção de Hugo Kusnet
* 1962 - Copacabana Palace, com direção de Steno
* 1962 - Sócio de Alcova, com direção de George Cahan
* 1962 - Esse Rio que Eu Amo, c/direção de Carlos Hugo Christensen
* 1961 - Alias Gardelito, com direção de Lautaro Murua
* 1955 - Mãos Sangrentas, com direção de Carlos Hugo Christensen
* 1954 - É Proibido Beijar, com direção de Ugo Lombardi
* 1952 - Apassionata, com direção de Fernando de Barros
* 1952 - Tico-Tico no Fubá, com direção de Adolfo Celi
* 1950 - Quando a Noite Acaba, com direção de Fernando de Barros
* 1949 - Caminhos do Sul, com direção de Fernando de Barros
* 1947 - Querida Suzana, com direção de Alberto Pieralisi

Na televisão

* 2004 - Senhora do Destino .... Madame Berthe Legrand
* 2000 - Esplendor .... Mimi Melody
* 1995 - Sangue do meu sangue .... Cecile Renon (SBT)
* 1993 - Cupido Electrônico .... D. Nenette (co-produção RTP)
* 1989 - Kananga do Japão .... Letícia Viana (Rede Manchete)
* 1987 - Sassaricando .... Rebeca
* 1983 - Louco Amor .... Mouriel
* 1981 - O Amor é Nosso .... Gilda
* 1980 - Água-Viva .... Stella Fraga Simpson
* 1979 - Cara a Cara (Rede Bandeirantes)
* 1972 - Uma Rosa com Amor .... Roberta Vermont
* 1972 - O Primeiro Amor .... Maria do Carmo
* 1971 - O Cafona .... Beatriz
* 1970 - Pigmalião 70 .... Cristina Melo de Guimarães Cerdeira
* 1969 - Sangue do Meu Sangue .... Pola Renon (Rede Excelsior)

Fontes: Wikipédia; Época; Enciclopédia Itaú Cultural.

Bussunda

Bussunda
Bussunda (Cláudio Besserman Vianna), comediante, nasceu no Rio de Janeiro RJ, em 25/6/1962, e faleceu em Vaterstetten, Alemanha, em 17/6/2006. O apelido teria nascido na adolescência, com a mistura dos nomes Besserman e Sujismundo surgindo "Bessermundo" e mais tarde, "Bussunda". Já o próprio humorista dizia que o apelido era a mistura "das duas coisas que eu mais gosto".

Filho de Luís Guilherme Vianna e Helena Besserman Vianna, era torcedor do Flamengo e, em 1989, casou-se com a apresentadora Angélica Nascimento, de quem teve uma filha, Júlia.

Seu irmão Sérgio Besserman foi presidente do IBGE (por isso às vezes o IBGE era chamado no programa humorístico Casseta & Planeta de "Instituto do Irmão do Bussunda").

Bussunda não tinha interesse pelos estudos. Quando adolescente, chegou a ser reprovado com nota zero em todas as matérias. Ainda assim, no vestibular ficou em penúltimo lugar para o segundo semestre do curso de comunicação social da UFRJ. Como o mesmo disse: "Na faculdade pública meus pais não podiam reclamar que pagavam mensalidade e a faculdade ajudava no meu projeto de vida de não fazer nada. Não me formei, mas foram ótimos anos."

Começou sua carreira trabalhando como redator do jornal humorístico Casseta Popular. Fundado por Beto Silva, Marcelo Madureira e Hélio de la Peña em 1978, o jornal fez sucesso no início da década de 1980 ao combinar o humor escrachado com a crítica política e de comportamento. Na época, ele ainda era estudante de jornalismo na UFRJ. Esse jornal daria origem à revista Casseta Popular e viria a se tornar um dos embriões do Casseta & Planeta.  Além do bom humor, uma de suas fortes características era zombar do próprio fato de ser glutão, o que o levava a imitar personagens com semelhante qualidade.

Nos anos 80 inicia suas participações na TV, primeiro como apresentador do programa adolescente de debates Cabeça Feita (TVE Brasil), mais tarde (1988) contratado como redator do programa TV Pirata, que era exibido na Rede Globo. Ainda em 1988, Bussunda se tornou destaque natural do show Eu vou tirar você desse lugar, início da parceria musical da Casseta Popular com o Planeta Diário (mais tarde, Banda Casseta & Planeta). A parceria se estenderia aos programas Doris para Maiores (1991) e Casseta & Planeta, Urgente! (1992 ).

Desde 1992, era um dos protagonistas do programa humorístico Casseta & Planeta, Urgente!, exibido pela Rede Globo. Mesmo após a criação do programa, Bussunda continuou a atuar como cronista e jornalista independente.

Com os mesmos companheiros de televisão escreveu onze livros, lançou três discos, encenou uma peça de teatro e protagonizou um filme em 2003, A Taça do Mundo é Nossa (e Seus Problemas Acabaram, lançado em 2006 postumamente). Ainda no cinema, fez uma participação especial no filme Como ser solteiro e dublou o personagem principal da animação Shrek.

Faleceu na Alemanha, com apenas 43 anos, enquanto realizava a cobertura da Copa do Mundo de 2006 para o Casseta & Planeta.

Fonte: Biografia baseada na Wikipedia.

Antônio Fagundes

Antônio Fagundes (Antônio da Silva Fagundes Filho), ator, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 18/04/1949. Um dos mais bem-sucedidos intérpretes de sua geração, transita dos tipos rústicos aos refinados, englobando uma extensa galeria de criações do repertório nacional e internacional. Nasceu no Rio, mas mudou com seus pais para São Paulo aos oito anos de idade e morou lá por mais de 30 anos.

Iniciou no teatro amador e estudantil em 1963, sendo absorvido pelo Teatro de Arena de São Paulo na montagem de Farsa do Cangaceiro, Truco e Padre, de Chico de Assis, pelo Núcleo 2 da companhia, em 1967. 

Permaneceu no Teatro de Arena até sua dissolução, nas montagens de Arena Conta Tiradentes, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, La Moschetta, de Angelo Beolco, e O Círculo de Giz Caucasiano, de Bertolt Brecht, em 1967; Primeira Feira Paulista de Opinião, com textos de Lauro César Muniz, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Plínio Marcos e Augusto Boal, em 1968, e A Resistível Ascensão de Arturo Ui, também de Bertolt Brecht, em 1970, direções de Augusto Boal.

Em 1969 esteve em Hair, de Gerome Ragni e James Rado, com Ademar Guerra; O Cão Siamês, de Antônio Bivar, ao lado de Yolanda Cardoso e Marta Saré, de Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, com Fernanda Montenegro e direção de Fernando Torres. Castro Alves Pede Passagem, texto e direção de Gianfrancesco Guarnieri foi criado em 1971; participando, no ano seguinte, de Pequenos Assassinatos, texto de Jules Feiffer, dirigido por Osmar Rodrigues Cruz. Com o mesmo diretor, em seguida, integrou a montagem de Um Grito de Liberdade, de Sérgio Viotti, produção do Teatro Popular do Sesi - TPS.

Em 1973 protagonizou duas realizações bem-sucedidas: Godspell, um musical da Broadway, e O Evangelho Segundo Zebedeu, de César Vieira, numa direção de Silnei Siqueira para o Teatro da Cidade de Santo André. As criações de Caminho de Volta, texto de Consuelo de Castro, em 1974, e Muro de Arrimo, de Carlos Queiroz Telles, em 1975, ligam-no ao teatro de resistência do período mais conturbado com a Censura.

Nos anos seguintes surgiu em montagens significativas, sempre com muita projeção, como Gata em Telhado de Zinco Quente, de Tennessee Williams, encenação de Paulo José, numa produção da Companhia Tereza Raquel, em 1976; A História é Uma História, de Millôr Fernandes em 1978, e, sobretudo, Sinal de Vida, de Lauro César Muniz, 1979. Associado a Antônio Abujamra empreendeu um projeto de longa duração, ocupando o Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, com uma programação voltada ao experimentalismo. Ali, lançou novos autores nacionais, ele próprio escrevendo Pelo Telefone, um dos textos encenados, em 1980.

A bem-sucedida montagem de O Homem Elefante, de Bernard Pomerance, em 1981, impulsionou Fagundes à criação de uma companhia com elenco fixo e uma linha artística de repertório, que no ano seguinte, estreiou Morte Acidental de um Anarquista, de Dario Fo, como Companhia Estável de Repertório - CER. Seguiram-se: Xandu Quaresma, de Chico de Assis, em 1983; e Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, espetáculo de Flávio Rangel, em 1985; Carmem com Filtro, primeira direção de Gerald Thomas em São Paulo, em 1986, mesmo ano em que criou Nostradamus, de Doc Comparato, direção de Antônio Abujamra.

Nos anos seguintes, a CER buscou um repertório mais experimental, com a ambiciosa adaptação teatral de Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes, encenação de Ulysses Cruz, em 1988. Uma associação com artistas franceses resultou na mal-sucedida O País dos Elefantes, de Louis Charles Sirjacq e direção de Alain Millianti, espetáculo que mesclou anseios de liberdade em diversos pontos do planeta, apresentado no Festival de Avignon, França.

Com Ulysses Cruz, participou da montagem de História do Soldado, de Igor Stravinsky e C. F. Ramuz, montagem comemorativa do vigésimo aniversário do Teatro Municipal de Santo André, em 1990; e produziu: Macbeth, de William Shakespeare, em 1992; a comédia Vida Privada, de Mara Carvalho, em 1994; Oleanna, de David Mamet, em 1996. Sob a direção de Jorge Takla, atua em Últimas Luas, de Furio Bordon, em 1999, e com direção de Bibi Ferreira, em Sete Minutos, comédia de sua autoria, 2002.

Estreou na televisão em 1969, na telenovela Nenhum Homem é Deus, da TV Tupi. Começou na Rede Globo em 1976, na telenovela Saramandaia. Atuou também, por vários anos, como protagonista da série Carga Pesada, de 1979 a 1981, e de 2003 a 2007.

O ator tem quatro filhos: Dinah Abujamra Fagundes, empresária, Antônio Fagundes Neto, publicitário, e Diana Abujamra Fagundes, produtora e radialista, de seu primeiro casamento com a também atriz, bailarina e diretora Clarisse Abujamra com quem foi casado por 15 anos, e Bruno Fagundes, com sua ex-mulher a atriz Mara Carvalho.

Carreira artística

Novelas

* 1968 - Antônio Maria
* 1969 - Nenhum Homem é Deus.... Netinho
* 1972 - A Revolta dos Anjos.... Vítor
* 1973 - Mulheres de Areia.... Alaor
* 1974 - O Machão.... Petruchio
* 1972 - Bel-Ami.... Cadu
* 1976 - Saramandaia.... Lua Viana
* 1977 - Nina - Bruno
* 1978 - Dancin' Days.... Cacá
* 1983 - Champagne.... João Maria
* 1983 - Louco Amor.... Jorge Augusto
* 1984 - Corpo a Corpo.... Osmar
* 1988 - Vale Tudo.... Ivan Meireles
* 1990 - Rainha da Sucata.... Caio Szimanski
* 1991 - O Dono do Mundo.... Felipe Barreto
* 1993 - Renascer.... José Inocêncio
* 1994 - A Viagem.... Otávio César Jordão
* 1995 - A Próxima Vítima.... Astrogildo
* 1996 - O Rei do Gado.... Bruno Mezenga / Antônio Mezenga
* 1997 - Por Amor.... Atílio
* 1999 - Terra Nostra.... Gumercindo
* 2001 - Porto dos Milagres.... Félix Guerrero / Bartolomeu Guerrero
* 2002 - Esperança.... Giuliano
* 2002 - Vale Todo.... Salvador
* 2007 - Duas Caras.... Juvenal Antena
* 2008 - Negócio da China.... Ernesto Dumas
* 2010 - Tempos Modernos - Leal Cordeiro
* 2011 - Insensato Coração - Raul Brandão

Minisséries e Seriados

* 1978 - Caso Especial: Jorge, um Brasileiro.... Jorge
* 1979/1981 - Carga Pesada.... Pedro
* 1981 - Amizade Colorida.... Edu
* 1982 - Avenida Paulista.... Alex Torres
* 1982 - Caso Verdade: Filhos da Esperança.... Jasper Palmer
* 1991 - Mundo da Lua.... Rogério Silva
* 1992 - Você Decide, O Sonho Dourado
* 1995 - Engraçadinha... Seus Amores e Seus Pecados.... Dr.Bergamini
* 1995 - A Comédia da Vida Privada.... Beto
* 1998 - Labirinto.... Ricardo Velasco
* 2002 - Brava Gente.... José
* 2003/2007 - Carga Pesada.... Pedro
* 2005 - Mad Maria.... Ministro J. de Castro
* 2010 - As Cariocas.... Oscar (Cacá)

Programas de auditório

* 1981/1983 - É Proibido Colar ... Apresentador

Outros programas

* 1992 - Você Decide.... Apresentador

No teatro

* 1964 - A ceia dos cardeais
* 1966 - Atlantic’s queen
* Arena canta Tiradentes
* Feira paulista de opinião
* A resistível ascensão de Arturo Ui
* Castro Alves pede passagem
* 1980 - Pelo telefone
* 1985 - Cyrano de Bergerac
* 1986 - Xandu Quaresma
* 1988 - Fragmentos de um discurso amoroso
* 1992 - Macbeth
* 1994 - Vida privada
* 1996 - Oleanna
* 1999 - Últimas luas
* 2002 - Sete minutos
* 2005 - As Mulheres da Minha Vida
* 2008 - Restos

No cinema

* 1967 - Sandra, Sandra
* 1969 - A Compadecida
* 1971 - Eterna Esperança
* 1975 - A Noite das Fêmeas
* 1975 - Eu faço... Elas Sentem
* 1976 - Elas São do Baralho
* 1977 - Vida Vida
* 1978 - A Noite dos Duros
* 1978 - Doramundo
* 1979 - O Menino Arco-Íris
* 1979 - Gaijin – Os Caminhos da Liberdade
* 1980 - Os Sete Gatinhos
* 1981 - Pra Frente, Brasil
* 1982 - Tchau, amor
* 1982 - As Aventuras de Mário Fofoca
* 1982 - Das Tripas Coração
* 1982 - Carícias Eróticas
* 1983 - A Próxima Vítima
* 1983 - O Menino Arco-Íris
* 1985 - Jogo duro
* 1986 - Besame mucho
* 1986 - Anjos da noite
* 1987 - Eternamente Pagu
* 1987 - A Dama do Cine Shanghai
* 1987 - Leila Diniz
* 1988 - Barbosa
* 1989 - O Corpo
* 1992 - Beijo 2348/72
* 1993 - Era Uma Vez no Tibet
* 1996 - Doces Poderes
* 1998 - Fica Comigo
* 1999 - No Coração dos Deuses
* 1999 - O Tronco
* 1999 - Paixão Perdida
* 2000 - O Grinch (dublagem)
* 2000 - Bossa nova
* 2000 - Villa-Lobos - Uma Vida de Paixão
* 2003 - Sete Minutos
* 2003 - Deus É Brasileiro
* 2004 - A Dona da História
* 2005 - A Marcha dos Pinguins (dublagem)
* 2005 - Achados e perdidos

Discografia

* 1999 - Tributo a João Pacífico

Prêmios

* 1985 - Prêmio Molière, melhor ator de teatro por Cyrano de Bergerac.
* 1988 - Rio Cine Festival, melhor ator (cinema) por A Dama do Cine Shanghai
* 1988 - Prêmio Molière, melhor ator de teatro por Fragmentos de um Discurso Amoroso.
* 1991 - Troféu Imprensa, melhor ator de televisão por O Dono do Mundo.
* 1992 - Festival Internacional del Cine (Cartagena de las Indias), melhor ator de cinema por O Corpo.
* 1993 - Troféu APCA, melhor ator de televisão por Renascer.
* 1993 - Troféu Imprensa, melhor ator de televisão por Renascer.
* 1997 - Prêmio Contigo! - melhor ator de televisão por Por Amor'.
* 1999 - Prêmio da Casa da Cultura de Roma, teatro
* 1999 - Prêmio Qualidade Brasil, melhor ator de teatro e televisão pelo conjunto de trabalhos.
* 1999 - Troféu APCA, melhor ator de teatro por Últimas Luas.
* 2000 - Troféu Super Cap de Ouro, televisão por Terra Nostra.
* 2001 - Prêmio Qualidade Brasil, RJ - melhor ator de televisão por Porto dos Milagres.
* 2001 - Prêmio Qualidade Brasil, SP - melhor ator de televisão por Porto dos Milagres.
* 2001 - Melhores do Ano, Domingão do Faustão - melhor ator de televisão por Porto dos Milagres.
* 2001 - Prêmio Contigo! - melhor ator de televisão por Porto dos Milagres.
* 2008 - Prêmio Qualidade Brasil - melhor ator de televisão por Duas Caras.
* 2008 - Troféu Super Cap de Ouro, televisão por Duas Caras.

Fontes: Wikipédia; Enciclopédia Itaú Cultural - Teatro.

O cemitério

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas.

Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.

Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas - coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas; em vão procurei ler nelas celebridades, notabilidades mortas; não as encontrei.

E de tal modo a nossa sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas vontades, a lutar...

Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.

Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes que a arrematavam pretensiosamente.

Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo do vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se estivesse na rua do Ouvidor, não pude suster um pensamento mau e quase exclamei:

- Bela mulher!

Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de gordura.

Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve, instantâneo, e fugaz.

Abalei-me! Eu que dizia a todo mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade - eu meditar como um cientista profeta hebraico! Era estranho! Remanescente de noções que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera! Quem pode fugir a elas?

Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o pescoço, esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos...

Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma, viva, que me falava.

Com surpresa, verifiquei isso.

Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos, despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na rua do Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do cemitério! Era curioso.

E, por mais que procurasse explicar, não pude.

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por Lima Barreto

Lima Barreto

Chamado "o romancista da primeira república", Lima Barreto foi um crítico virulento da vida carioca nesse período histórico. Não se limitou a estigmatizar o farisaísmo e a mediocridade arrogante da burguesia nascente, mas recriou também o panorama social da existência miserável e triste dos subúrbios, com seu rebuliço e sua áspera luta pela vida.

Entre o realismo psicológico machadiano e a explosão modernista, foi esteticamente um solitário, que se orientou pela linha inovadora de um realismo crítico de cunho popular e rebelde.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro RJ, em 13 de maio de 1881. Mulato, de família muito pobre, perdeu a mãe aos sete anos. Estudou no Colégio Paula Freitas, onde também se preparou para a Escola Politécnica, em cujo vestibular foi aprovado em 1896. Em 1902, seu pai enlouqueceu e, no ano seguinte, o escritor abandonou o curso de engenharia para trabalhar na Diretoria de Expediente da Secretaria da Guerra. Em 1904, Lima Barreto começou a escrever a primeira versão de Clara dos Anjos.

O escritor foi rejeitado pela maioria dos escritores de seu tempo, não propriamente por sua origem de classe e de raça, mas por não ter abdicado dessa condição na consciência e na prática, já que sempre rejeitou as receitas éticas e estéticas impostas de cima para baixo, o falso refinamento e a gramática da intelligentsia ainda submissa aos padrões estrangeiros.

Ao erigir uma obra em estilo brasileiro, impregnada de tipicidades do linguajar carioca e voltada para a crítica social, foi um dos primeiros a romper com o complexo colonial da literatura brasileira. Boicotado por críticos, jornais e editores, enfrentou muitas dificuldades para publicar seus livros. O primeiro a aparecer foi Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), itinerário de um anti-herói negro, em tom autobiográfico.

Angustiado, presa do álcool e da vida boêmia, o escritor teve em 1914 sua primeira internação no Hospício Nacional, para onde voltaria cinco anos depois. Em 1915 editou O triste fim de Policarpo Quaresma, sua obra-prima, que traça o destino tragicômico de um homem tomado pelo patriotismo ingênuo, em quixotesca luta contra a corrupção dos políticos.

Em Numa e a ninfa (1915), criou uma galeria grotesca de figurões da República Velha, recheados de vícios e de apetite pelo dinheiro. Particularmente interessante é o retrato do deputado Numa Pompílio de Castro, paradigma do bom-mocismo cínico e da estupidez atarefada. Em 1918, divulgou no semanário ABC seu manifesto de apoio à revolução russa.

No ano seguinte, candidatou-se à Academia Brasileira de Letras, mas recebeu apenas dois votos. Sua verve satírica reservou um lugar especial para a diplomacia brasileira em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), onde a principal personagem é a cidade do Rio de Janeiro, poucas vezes tão bem retratada. Em 1920, publicou Histórias e sonhos, livro de contos.

Muitas obras de Lima Barreto foram publicadas postumamente. Merecem referência especial os romances Clara dos Anjos, inacabado, e Cemitério dos vivos, de que o escritor deixou apenas fragmentos. No primeiro, retomou o tema do preconceito racial na vida de uma moça de subúrbio, seduzida e abandonada por um conquistador de camada social superior.

A fragilidade do argumento revela um Lima Barreto decadente e minado pela doença. Apesar disso, nos dois únicos capítulos de Cemitério dos Vivos, onde predomina a atmosfera do hospício, percebe-se o quanto ainda poderia realizar o talento do romancista se contasse com melhores condições materiais e de saúde.

O descaso crítico e editorial com relação à obra do autor foi amplamente compensado com a organização das Obras de Lima Barreto, publicadas em 1956 em 17 volumes. A coleção reúne não só as obras citadas, como também as coletâneas de crônicas e artigos Bagatelas, Feiras e mafuás, Vida urbana e Marginália, as sátiras Os Bruzundangas e Coisas do reino do Jambon, o livro de crítica literária Impressões de leitura, além do Diário íntimo e de dois tomos de Correspondência.

Lima Barreto morreu no Rio de Janeiro em 1º de novembro de 1922.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Vassoura bruxólica

"É, neste mundo de Deus, há muitos mistérios e esta gente simples aqui da Ilha vive estas coisas quase como uma realidade. Meus lobisomens, bruxas, demônios e boitatás existem.

Sempre foi crença do povo hospitaleiro desta Ilha dos famosos bois de mamão que, na Sexta-Feira-Santa, não se deve tomar instrumentos de trabalho para usa-los, seja qual finalidade for.

É também costume tradicional deste povo, descendentes de colonos açorianos, que, na Sexta-Feira-Santa, a partir de zero hora, devem banhar-se nas ondas do mar, levando consigo animais domésticos, para purificarem-se e protegerem-se de todos os males do corpo físico e espiritual. As águas colhidas nesta hora servem para todo o tipo de cura.

É a fé, longínqua dos tempos, aliada a superstição, ao medo e ao amor pela conservação do corpo físico, na cura dos males que atacam o homem em franca vivência espiritual e física com o seu Deus. As forças atuantes de práticas religiosas freiam os instintos animalescos do homem, encaminhando-o, espiritualmente, para viver com bons modos junto com o seu Deus, com a cultura, na sociedade e conseqüentemente com o seu próximo.

Entrementes, sempre aparecem nos meandros desses cenários fantásticos, e outros moderados, pessoas que se arrojam contra os poderes divinos, maltratando esses conjuntos de sociedades freadoras, veículos insubstituíveis de abrandamento de sofrimentos que martirizam e açoitam a criatura humana.

Um caso de desrespeito espiritual aconteceu há muitos anos passados, lá pras bandas do sul da Ilha de Santa Catarina. A Maria Vivina, moradora da praia dos Naufragados, fez uma aposta com a Carrica, de que, na Sexta-Feira-Santa daquele ano, ela tomaria uma vassoura e com a mesma, varreria o quintal de sua casa e,certeza tinha, nada lhe aconteceria de extraordinário. Apostaram um par de tamancos contra uma botina. E firmaram a promessa da aposta, casando-a.

Quando a Vivina deu a primeira varredela, a vassoura soltou-se de suas mãos qui nem um relâmpago, metamorfoseou-se em bruxa, ganhou altura sobre o morro do Ribeirão da Ilha e desapareceu, num repente, no espaço sideral das alturas incomensuráveis da quimera.

A Maria Vivina caiu de joelhos no terreiro, rezou e pediu perdão aos céus pelo ato impensado que havia cometido contra as ordens divinas, chorando copiosamente. A Carrica abraçou-se com ela e ambas choraram e sentiram o amargo do néctar da desobediência humana. Nenhuma das duas era bruxa, porque a vassoura, que e um instrumento de montaria de bruxas, foi embora, viajar pelo espaço sideral, sozinha.

Oh! Minha querida Ilha de Santa Catarina de Alexandria, és a graciosa sereia que repousa sobre brancas areias de comoros errantes, sambaquis seculares, banhada pelas ondas acasteladas do oceano, perfumada pela brisa acariciante dos ventos e enxuta com as toalhas felpudas dos raios solares que beijam calorosamente seu corpo mitológico."

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Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Boitatá




Franklin Joaquim Cascaes/Ilha de Santa Catarina

Este boitatá está passeando sobre a Ilha de Santa Catarina.

É meia-noite. Ele está apreciando, de riba, as sessenta praias que ela possui, brancas quiném jasmim.

Para afugentá-lo a pessoa que o avista deve chamar a outra que estiver mais perto e gritar assim: "Zenobra, trás a corda do sino mode amarrar o boitatá, que lele anda por aqui!"

Ele foge imediatamente do mundo fascinante da fantasia humana.



Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Nossa Senhora, o Linguado e o Siri

Conta a estória que certa ocasião Nossa Senhora precisou atravessar o mar, mas não tinha certeza se a maré iria encher ou vasar.

Estava parada na praia; praia esta que deveria ser no continente, mas ela queria passar para a mais bela ilha da terra, a Ilha de Santa Catarina, quando surgiu um bonito linguado nadando alí perto dela.

Com toda sua beleza e ternura celestial, dirigiu-se ao peixe linguado, indagando-lhe se sabia ou não se a maré ia encher ou vasar.

O linguado respondeu a pergunta da Senhora, remedando-a. Ficou com a boca torta.

Um siri que havia escutado a indagação da Senhora e a deseducada resposta do linguado, dirigiu-se a ela com toda educação sirinesca, e lhe ofereceu uma carona até a praia onde ela queria alcançar.

Afirma a estória que o resultado deste acontecimento lendário é o seguinte: o linguado ficou com a boca deformada. No casco do siri se observa, em baixo relevo, a figura de uma senhora segurando os lados da saia, para não molhá-la. Deve ser o retrato de Nossa Senhora, num ato celestial sublime de sincero agradecimento, pela atitude hospitaleira do frágil crustáceo. 
 

Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Mulheres bruxas atacando cavalos

Foi do pensamento inculto do homem de argila humana crua, que nasceu as estórias de que cavalos galopeiam pelos ares, quando são atacados por mulheres bruxas em atividades extra-terrenas, para chupar-lhes o sangue.

Contam que no dia seguinte, os animais que foram atacados durante a noite, e que galopearam pelos espaços siderais, apresentam-se sangrando, e com nós indesátaveis nas crinas e nos rabos.

Apontam como responsáveis pelos atos demoníacos bruxólicos, mulheres de suas comunidades, que são magras, feias e sujas, e que apresentam um dente no céu estrelado da boca e falam grosso quénem Homem gordo, nariz aquelino, etc.

Na ilha de Santa Catarina é muito comum o homem do interior cercar os ranchos ou estrbarias onde recolhem o seu gado, com redes de pescaria usadas, porque as bruxas também os chupam, acreditam, dentro da noite.

Hoje, no século vinte, a madame ciência afirma que quem faz os cavalos galoparem é o morcego, transmissor da raiva, não pelos ares, mas sim, campo a dentro.

Ora vejam, meus amigos,
Que nesta Ilha encantada,
Até bruxas são astronautas,
Que pilotam cavalhada.

Na bonita praia do Rapa,
De aguá azul e saborosa,
Elas entram de biquini,
E saem cobertas de rosas.


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Único beijo

No terceiro ou quarto dia de namoro, perguntou à namorada:

 — Quem é aquela pequena?

— Qual delas?

E ele:

— Aquela que estava contigo, ontem, na janela, quando eu passei e dei adeus para ti.

Pareceu incerta:

— Loura?

— Loura.

Riu:

— Minha mãe.

— O quê?!

Mag teve que repetir que era sua mãe, sim. Norberto caiu das nuvens:

— Não pode ser! Não é possível! Tua mãe como? Onde? Se é um verdadeiro brotinho!

Divertida e, no fundo, lisonjeada, orgulhosa da mãe juvenil e linda, confirmou:

— Pois é, pois é!

Norberto bufou:

— Estou com a minha cara no chão! Besta!

DESLUMBRAMENTO

Quando chegou em casa, ainda conservava a impressão profunda. Convocou a mãe e as irmãs:

— Vocês não sabem da maior!

Ele, tirando o paletó e colocando-o na cadeira, começou:

— Imaginem vocês que, ontem, eu vi, pela primeira vez, a mãe da minha pequena.

— Que tal?

Arregaçando as mangas, explodiu:

— Um espetáculo! Parece a irmã mais nova da minha namorada! No duro que parece!

Riram na sala. Jaci, a irmã mais nova, estava pondo verniz nas unhas. Mexeu com Norberto:

— Abre o olho!

— Por quê?

E ela, muito petulante:

— Você acaba se apaixonando pela sua sogra.

Saltou:

— Pára com esses palpites, essas piadas, sim?

O FENÔMENO

No seguinte encontro com Mag, quis saber de tudo: “Como é tua mãe? Que idade tem?”. Mag, que a adorava, deu todas as informações. Começou assim: “Mamãe é um doce”.

Norberto soube, então, que não era o único a espantar-se. Todo mundo pasmava para essa bonita senhora que, aos trinta e cinco anos, parecia uma adolescente. Quando as duas apareciam juntas, não se sabia qual era a mãe, qual era a filha. Fazia-se o comentário trivial e admirativo:

— Parecem irmãs!

Chamava-se Senhorinha, d. Senhorinha. Enviuvara cedo, com vinte anos. Foi assediada por novos e antigos pretendentes. Grave e triste, suspirava: “Nunca mais! Nunca mais!”. E concluía: “Nada mais me interessa! Vou viver pra minha filha!”. Amara o marido com a violência de um primeiro e último amor. Parecia-lhe que um novo casamento seria um adultério contra o morto. Até aquela data, não se lhe conhecia um flerte, um sorriso, um olhar, um gesto, que desse margem a suspeitas. Suas amigas, suas conhecidas, eram obrigadas a admitir:

— Séria até debaixo d’água!

E o próprio Norberto, quando foi apresentado à futura sogra, desabafou, em voz baixa, para Mag:

— Tua mãe é um fenômeno de circo!

Passaram a ser vistos juntos, sempre, nos teatros, nos cinemas, nas sorveterias. Mag confessava:

— Não sei fazer nada sem mamãe. Sem mamãe, não acho graça em nada.

Norberto pigarreia, lembrando:

— E quando a gente se casar?

Pareceu desconcertada. Súbito, tem a idéia:

— Mamãe mora com a gente, pronto! Não é uma solução genial? Você não acha?

Atrapalhou-se:

— Pois não! Claro! Evidente!

Mas quando foi dizer em casa, houve um certo mal-estar. A mãe tomou a palavra: “Não acho golpe!”. Admirou-se: “Por que, mamãe?”. A velha foi clara:

— Tua sogra é bonita, meu filho, bonita demais!

Alguém completou:

— Mais bonita que a filha!

Atônito, o rapaz ergueu-se. Perguntou: “Mas, afinal, vocês estão insinuando o quê?”. Exaltou-se:

— Quem vê diz que eu sou algum tarado, ora bolas! Acho uma graça!...

Novo suspiro materno:

— Meu filho, tenho visto coisas do arco-da-velha. Acho que você não deve ter muita intimidade com sua sogra. É minha opinião!

PRESSÁGIO

Pouco antes do noivado, um engraçadinho arriscou o seguinte veneno: “Tua sogra é duzentas vezes melhor que a filha!”. Teve que reagir com violência: “Não admito essas piadas!”.

Mas era feliz. Mag apaixonara-se por ele e de tal forma, com um fanatismo absoluto, que a própria d. Senhorinha ralhava:

“Assim já é demais!”. Mag replicava:

— Ora, mamãe! A senhora também não gostou assim de papai, não foi a mesma coisa?

Confessou:

— Foi.

E, de fato, eram de uma família em que as viúvas não se casavam mais, nunca mais. No fundo, d. Senhorinha gostava de ter amado uma vez só e para sempre. No dia em que ficou oficialmente noiva, Mag chamou a mãe. Angustiada, diz: “Mamãe, a senhora sabe que eu estou com um pressentimento? Um mau pressentimento?”. D. Senhorinha admirou-se:

— Mas por quê? Que bobagem, minha filha!

A pequena, dominada pelo presságio, teve um desespero maior:

— Se Norberto algum dia me abandonar, mamãe, eu me mato! Juro que me mato!

Pôs-se a chorar. A mãe pousou a mão na sua cabeça: “Não te abandonará, nunca, meu coração, nunca!”.

O DRAMA

De repente, d. Senhorinha começou a evitar a companhia dos noivos: “Hoje, eu não vou. Não estou me sentindo bem”. Isso aconteceu uma vez, duas, três e, por fim, sempre. Iam ao cinema, ao teatro sozinhos. Uma tarde, Mag estranha: “Você mudou, meu anjo!”. Ele pigarreou:

— Eu?

E ela, doce e triste:

— Você boceja tanto quando está comigo! Eu te dou sono, dou?

Recorreu à primeira desculpa: “Estômago, minha filha, estômago!”. Uns dois dias depois d. Senhorinha o procura, no escritório. Surpreso, ele a leva para o corredor.

A sogra começa: “Mag se queixa que você mudou e...”. Pára. Olham-se. Norberto ia mentir, ia dizer que não, que em absoluto. Súbito, a verdade rompe das profundezas do seu ser, como uma golfada:

— Mudei, sim. Não posso me casar com sua filha, porque amo a senhora!

D. Senhorinha encostou-se à parede; balbuciou: “Está maluco? Está louco?”.

No seu desvario, trincando as palavras nos dentes, repetia: “Te amo! Te amo! Te amo!”. Quis agarrá-la. Ela, porém, num movimento ágil desprendeu-se, fugindo pelo corredor. Nessa noite, quando chegou em casa, reduzido a um trapo, ele diria à mãe:

— Deu-se a melódia, mamãe! Apaixonei-me pela minha sogra. E agora?

AMOR

Na manhã seguinte, d. Senhorinha soluçava ao telefone: “Se você abandonar minha filha, ela morre!”. Foi um exasperante diálogo de umas duas horas. Por fim, Norberto capitulou:

— Eu continuarei com a sua filha, mas quero um beijo seu. Basta um. Um beijo, e pronto.

Pausa. Veio a pergunta: “Só um?”. E ele: “Só um”. Ele propôs um lugar não sei onde, que d. Senhorinha não aceitou. Encontraram-se, pouco depois, no corredor do escritório onde ele trabalhava. Ela impôs: “Jura que não abandonarás nunca minha filha?”. Jurou. E houve o beijo sem fim, desesperado, mortal.

Quando se desprendem, ela arqueja: “Eu nunca amei meu marido. Só amo a ti”. E fugiu, novamente. Quase ao encerrar o expediente, vem a notícia: a sogra fora atropelada, morrera na rua, antes que a ambulância chegasse. Então, com clarividente instinto, ele compreendeu que d. Senhorinha se matara, no remorso daquele beijo.

Durante o velório, Norberto se conservou numa dessas dores lúcidas, tranqüilas, enxutas. Mas quando a enterraram, ele não pôde mais. Atirou-se ao chão, mergulhou o rosto na terra ainda fofa, ainda fresca, e mordeu a terra com desesperado amor.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Jonathan Swift

Ao recorrer à sátira para ridicularizar os desmandos da vida política e social da Inglaterra do século XVIII e, por extensão, para expor as fraquezas de todo o gênero humano, Swift realizou uma obra que repercutiu na própria época e se projetou muito além. Ao mesmo tempo, impôs-se, com sua prosa rigorosamente clássica, como o satirista mais ferino e brilhante dos muitos que ainda iriam surgir na língua inglesa.

Jonathan Swift nasceu em Dublin, Irlanda, em 30 de novembro de 1667. Órfão de pai, passou a infância sob a dependência de tios, de cuja incompreensão guardou lembranças amargas.

Em 1682 ingressou no Trinity College de Dublin, onde foi mau aluno mas conseguiu se formar, "por favor especial", em 1686. Em meio às convulsões políticas de 1688, viajou para a Inglaterra: em Moor Park, Surrey, tornou-se secretário de Sir William Temple.

Amadureceu intelectualmente entre os livros de Temple e conheceu Esther Johnson (Stella), uma de suas duas paixões irrealizadas. Em 1692 graduou-se na Universidade de Oxford e em 1695 foi ordenado pela igreja anglicana. Depois de desempenhar uma série de funções menores, em 1713 tornou-se deão da catedral de Saint Patrick em Dublin. A essa altura já participava ativamente da vida política da Inglaterra, de início a favor dos whigs (liberais), depois dos tories (conservadores).

Admirado e odiado por seus panfletos satíricos, como A Tale of a Tub (1704; História de um tonel), em meio às muitas viagens que fez a Londres conheceu em 1710 sua segunda grande paixão, Esther Vanhomrigh, a Vanessa do poema Cadenus and Vanessa (1726). Swift permaneceu sempre indeciso entre as duas mulheres, que morreram na época da publicação de suas obras principais: Vanessa em 1723, Stella em 1728.

A obra-prima de Swift, Gulliver's Travels (1726; As viagens de Gulliver), que fez sucesso imediato, é um dos livros mais famosos e inteligentes da literatura universal. Da sátira aos whigs, recriados nos anões de Lilliput, à invectiva contra a humanidade em geral, o autor recompôs o mundo de acordo com sua fantasia mordaz. O grotesco é explorado sob todos os ângulos: na pequenez desprezível dos lilliputianos; na ampliação escatológica da miséria física dos gigantes de Brobdingnag; nas diatribes contra os juristas e a arte militar; na idiotice dos intelectuais de Laputa; e na superioridade do cavalo sobre o ser humano no reino dos Houyhnhnms. Expurgado das verdades e sátiras, esse livro se transformou num clássico da literatura infantil.

Ao nível prático e histórico, a intenção mais elevada dos panfletos de Swift era lutar pelos interesses da Irlanda contra a corte e a aristocracia inglesas. Um exemplo claro é a também famosa Modest Proposal for Preventing the Children of Poor People from Being a Burden to their Parents or the Country (1729; Modesta proposta para impedir que as crianças pobres se tornem um peso para seus pais ou o país). Trata-se de sátira trágica, de um humor devastador, que propunha que as crianças pobres da Irlanda servissem para abastecer como comida o mercado inglês.

Além de várias outras obras em prosa, o criador de Gulliver também escreveu poesia. Após anos de um progressivo declínio, agravado em 1742 por um derrame que o deixou paralítico, Swift morreu em Dublin em 19 de outubro de 1745.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

J. R. R. Tolkien

A trilogia épica de J. R. R. Tolkien, ambientada num passado mítico, narra as lutas entre vários reinos bons e maus pela posse do anel mágico que podia alterar o equilíbrio de poder no mundo.

A obra tornou-se verdadeiro fenômeno sociocultural na década de 1960, pela atração que exerceu sobre os jovens.

John Ronald Reuel Tolkien nasceu em Bloemfontein, África do Sul, em 3 de janeiro de 1892. Levado para a Inglaterra aos quatro anos de idade, serviu na primeira guerra mundial e graduou-se em Oxford em 1919.

Professor de inglês e literatura inglesa, publicou em 1925 seu primeiro livro, Sir Gawain and the Green Knight (Sir Gawain e o cavaleiro verde), a que se seguiu Beowulf: The Monsters and the Critics (1936; Beowulf: os monstros e os críticos).

Em 1937, quando já trabalhava na trilogia, escreveu para seus filhos The Hobbit, que serviria de introdução à série.

A trilogia The Lord of the Rings (1954-1955; O senhor dos anéis), consta de The Fellowship of the Ring (A irmandade do anel), The Two Towers (As duas torres) e The Return of the King (O retorno do rei).

John Ronald Reuel Tolkien morreu em Bournemouth, Hampshire, Inglaterra, em 2 de setembro de 1973.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Enterro cubano

Toda a família, em Cuba, surpreendeu-se quando chegou de Miami um ataúde com o cadáver de uma tia muito querida. O corpo estava tão apertado no caixão que o rosto parecia colado no visor de cristal. Quando abriram o caixão encontraram uma carta, presa na roupa com um alfinete, que dizia assim:

"Queridos Papai e Mamãe: Estou lhes enviando os restos de tia Josefa para que façam seu enterro em Cuba, como ela queria. Desculpem-me por não poder acompanhá-la, mas vocês compreenderão que tive muitos gastos com todas as coisas que, aproveitando as circunstâncias, lhes envio. Vocês encontrarão, dentro do caixão, sob o corpo, o seguinte:

 12 latas de atum Bumble Bee; 12 frascos de condicionador; 12 de xampu Paul Mitchell; 12 frascos de Vaselina Intensive Care (Muito boa para a pele. Não serve para cozinhar!); 12 tubos de pasta de dente Crest; 12 escovas de dente; 12 latas de Spam das boas (são espanholas); 4 latas de chouriço El Miño.

Repartam com a família, sem brigas.

Nos pés de titia estão um par de tênis Reebok novos, tamanho 39, para o Joselito (é para ele, pois com o cadáver de titio não se mandou nada para ele, e ele ficou amuado). Sob a cabeça há 4 pares de 'popis' novos para os filhos de Antônio, são de cores diferentes (por favor, repito, não briguem!).

A tia está vestida com 15 pulôveres Ralph Lauren. Um é para o Pepito e os demais para seus filhos e netos. Ela também usa uma dezena de sutiãs Wonder Bra (meu favorito). Dividam entre as mulheres. Também os 20 esmaltes de unhas Revlon que estão nos cantos do caixão. As três dezenas de calcinhas Victoria's Secret devem ser repartidas entre as minhas sobrinhas e primas.

A titia também está vestida com nove calças Docker's e 3 Jeans Lee. Papai, fique com 3 e as outras são para os meninos. O relógio suíço que papai me pediu está no pulso esquerdo da titia. Ela também está usando o que mamãe pediu (pulseiras, anéis, etc). A gargantilha que titia está usando é para a prima Rebeca, e também os anéis que ela tem nos pés.

Os oito pares de meias Chanel que ela veste são para repartir entre as conhecidas e amigas ou, se quiserem, as vendam (por favor, não briguem por causa destas coisas, não briguem!!!). A dentadura que pusemos na titia é para o vovô, que ainda que não tenha muito que mastigar, com ela se dará melhor (que ele a use, custa caro). Os óculos bifocais são para o Alfredito, pois são do mesmo grau que ele usa,e também o chapéu que a tia usa.

Os aparelhos para surdez que ela tem nos ouvidos são para a Carola. Eles não são exatamente os que ela necessita, mas que os use mesmo assim porque são caríssimos. Os olhos da titia não são dela, são de vidro. Tirem-nos e nas órbitas vão encontrar a corrente de ouro para o Gustavo e o anel de brilhantes para o casamento da Katiuska. A peruca platinada, com reflexos dourados, que a titia usa também é para a Katiuska, que vai brilhar linda, em seu casamento.

Com amor, sua filha Carmencita."

PS: "Por favor, arrumem uma roupa para vestir a tia para o enterro e mandem rezar uma missa pelo descanso de sua alma, pois realmente ela ajudou, mesmo depois de morta. Como vocês repararam o caixão é de madeira boa (não dá cupim). Podem desmontá-lo e fazer os pés da cama de mamãe e outros consertos em casa. O vidro do caixão serve para fazer um porta-retrato da fotografia da vovó que está, há anos, precisando de um novo. Com o forro do caixão, que é de cetim branco (US$ 20,99 o metro), Katiuska pode fazer o seu vestido de noiva. Na alegria destes presentes, não se esqueçam de vestir a titia para o enterro!

Com amor, Carmencita."

PS2: "Com a morte de tia Josefa, tia Blanca caiu doente. Façam os pedidos com moderação. Bicicleta não cabe nem desmontada e carburador de Niva, modelo 1968, aqui ninguém ouviu falar... "

Nota do blogueiro: Poderia ser um enterro aqui no Brasil também. O que "nos states" custa x, aqui custa xxxx...eh eh eh ...

Fonte: um e-mail da amiga Nancy recebido agora.

Um miserável

Apanhou uma gripe danada. Contorcia-se nos acessos de tosse. E ela própria chamava o marido:

— Vem cá, Belmiro, vem cá.

Ele largava o jornal e vinha. A mulher pedia:

— Escuta só.

E, de fato, os brônquios de Zuleica só faltavam assoviar. Ela própria, no fim de cada crise, gemia:

— Acho que apanhei algum golpe de ar.

E Belmiro:

— Vou te levar ao médico.

— Médico pra quê, homem de Deus? Sossega!

Tinha pavor de médicos, acusava-os de exploradores e dizia a todo mundo: “O meu dinheiro é que eles não levam!”. Argumentava, fazia contas. Belmiro ganhava pouco, uma miséria; e o dinheiro que ela fazia com a costura não dava para nada. Discutia com o marido e era irredutível:

— Imagine se a gente for gastar dinheiro com médico e remédio.

Mas a gripe não a largava. Estava com febre há uma porção de dias, a respiração curta e suores frios noturnos. O pior de tudo, porém, era a tosse, que estalava os pulmões e a asfixiava. Parecia até coqueluche. Tentou um xarope, que lhe recomen¬daram. Não sentiu, porém, melhora nenhuma. De noite, acordava e sentava-se na cama para tossir. No seu desespero, chorava:

— Eu morro, meu Deus do céu! Morro!

O PULMÃO

Houve quem sugerisse:

— Por que a senhora não tira uma radiografia?

— E o dinheiro, criatura?

— Tire daquelas pequenininhas!

Zuleica era teimosa, sempre fora teimosa. Preferia morrer a entregar os pontos. Mas uma noite, depois de um acesso feroz, sentiu gosto de sangue na boca. Numa desconfiança, acendeu a luz, passou a língua no lençol e viu a saliva rósea no pano. Ela, que fingia não dar importância à doença, tachando-a de “resfriado bobo”, tomou-se de um medo súbito e selvagem. Lembrou-se de sua tia, irmã de sua mãe, que morrera doente do peito em Campos do Jordão. Sacudiu o marido, que dormia ao lado, aos gritos de:

— Sangue! Sangue!

Não dormiu mais, com a idéia fixa de tuberculose. E o gosto de sangue continuava. Já estava de lenço na cama. Qualquer coisinha, acendia a luz, e encostava a língua no lenço para ver a mancha cor-de-rosa. No dia seguinte, pela manhã, decidiu:

— Vamos ao doutor Borborema, agora mesmo.

O marido ainda fez a objeção:

— O doutor Borborema?! Aquele boboca? Mas ele é um errado, minha filha!

— Outro, não! Quero o doutor Borborema!

Belmiro, enfiando-se nos lençóis, fez o comentário:

— Amarra-se o burro à vontade do dono!

Ora, o dr. Borborema era um velhinho bastante gagá e de eficiência ultraproblemática. Não curava ninguém, o diabo do homem; e, sem dúvida, a sua maior virtude consistia nas caronas, o abatimento que conseguiam os clientes menos favorecidos. Dava consultas num consultório onde a imundície campeava íngreme; dizia-se até que foram encontrados, lá, não sei se escorpiões ou lacraias. No caminho, Belmiro, resmungando:

— Um zebu, esse doutor Borborema!

E ela, pirracenta:

— Deixa, não faz mal!

Dentro do consultório miserável, o velhinho forrou as costas de Zuleica com uma toalha e fez ausculta. Como um médico do tempo de Dom João Charuto, com o ouvido nas costas da doente, comandou:

— Diga trinta e três.

E ela:

— Trinta e três.

— Agora tussa.

Tossiu várias vezes. E a tosse provocada acabou se tornando involuntária e irresistível; contorcia-se, esteve em risco de se asfixiar. Na parede estava emoldurado o seguinte dístico: “Enquanto no doente há vida, há esperança”. Belmiro, impressionado, perguntou:

— Então, doutor?

O velhinho já estava redigindo a receita, com a sua caneta-tinteiro. Sem deixar de escrever, deu sua opinião:

— Isso passa! Isso passa!

Belmiro, com a pulga atrás da orelha, insistiu:

— Nada no pulmão?

— Nada.

E o rapaz:

— O senhor me tirou um peso, doutor.

O médico ainda veio levá-los até a porta. Além de não cobrar nada, ou cobrar pouco, era gentil, educadíssimo.

Com uma dentadura dupla, móvel, ele a deslocava continuamente, a título de distração e vício.

A TRAGÉDIA

Zuleica voltou pior. E agora era ela quem, numa reviravolta inexplicável, malhava o dr. Borborema:

— Um burro! Não entende nada!

— Não foi você quem escolheu, ora essa?

E a moça, cravando as unhas no braço do marido:

— Eu vou morrer, Belmiro! Vou morrer!

— Oh, deixa de bobagem! Morrer coisa nenhuma! Parece criança!

Mas ela se entregava de corpo e alma à idéia fixa. E isso era mais que um presságio, era uma convicção, uma certeza inapelável. Sentou-se na cadeira de balanço na sala, e lá ficou horas a fio, numa meditação sem fim.

Quando o marido falou em aviar a receita, opôs-se:

— Não quero!

— Não queres por quê? Tem cada uma!

Baixou a voz numa obsessão:

— Porque é jogar dinheiro fora. Porque eu sei que vou morrer...

Belmiro ainda ligou para uma novela, que ambos ouviam. Ela, na sua tristeza de condenada, pensou que não poderia seguir as novelas, que escutava em horas diferentes. Nessa noite, não conseguiu dormir. Primeiro, por causa da tosse amaldiçoada; depois, porque queria pensar muito nesse mundo, que em breve ia deixar. E, na vigília, imaginou várias coisas, inclusive o próprio enterro. Queria que fosse muito bonito, de maneira a impressionar a rua inteira, sobretudo uma vizinha com quem se indispusera. Pena que os enterros modernos não fossem como os antigos, em que os carros fúnebres eram puxados por cavalos brancos empenachados. Súbito, ocorreu-lhe o problema: — e o dinheiro? Onde, como e quando Belmiro poderia conseguir o dinheiro para o enterro de luxo? Até o sol raiar, ela não pensou senão nos meios de que ele poderia lançar mão para os funerais. Queria que eles fossem espetaculares o bastante para humilhar a tal vizinha. E tanto pensou que, descobrindo uma solução, acordou Belmiro. Ele, com um sono danado, virou-se, agressivo, malcriado. Mas quando a ouviu falar em morte, controlou-se. Então, doce, persuasiva, Zuleica disse-lhe que queria um enterro bonito. Mas como sabia que ele não tinha dinheiro, ela sugeria que recorresse a Humberto. O marido pulou da cama:

— Mas eu nem conheço esse cara! Um sujeito metido a besta, só porque tem dinheiro!

E ela:

— Quando ele souber que é para mim, que é para meu enterro, te dá, Belmiro, paga tudo! Te juro pela minha salvação!

Só então Belmiro teve a suspeita:

— Mas vem cá! Dá dinheiro por quê? Hein? Por quê? O que que esse palhaço é teu?

Não sei se Zuleica diria ou não. Mas quando ia abrir a boca teve uma violentíssima hemoptise. Diante do sangue, que vinha em golfadas medonhas, dissolveram-se os ciúmes de Belmiro. Ele gritou; acudiram os vizinhos. Deram injeção, cálcio, puseram saco de gelo, mas quem disse que o sangue estancava? Nas hemoptises sucessivas, Zuleica só pensava na vizinha antipática e, mais do que nunca, desejou deslumbrá-la com um grande enterro. Olhava para o marido como se dissesse: “Quero um enterro de luxo!”. Se pudesse falar teria ampliado seu pedido para uma missa de sétimo dia, com violino, canto e não sei quantos coroinhas. Acabou não resistindo; fez um esforço supremo e sussurrou:

— Um enterro... bonito... missa, missa e...

Já suas unhas estavam roxas, e esse esforço a matou mais depressa. Diante da morte, Belmiro caiu numa crise violentíssima e teve que ser arrastado à força do quarto. Meia hora depois, na sala, enquanto cá no quarto se vestia a morta, ele pensava em Humberto. Era evidente que... Um vizinho interrompeu o curso de suas reflexões oferecendo-se para tratar do enterro. Sobressaltou-se:

— Obrigado, fulano. Mas eu mesmo trato disso.

OS FUNERAIS

Foi bem estranho o que aconteceu. Humberto, que Belmiro mal conhecia de vista, recebeu-o com certo espanto e, pelo que o outro pôde deduzir, com certo pânico. Ao receber, porém, a notícia da morte da Zuleica, teve, ali mesmo, na frente do marido espantado, quase que uma crise de loucura. E dizia com eloqüência justamente:

— Coitadinha! Coitadinha!

Ainda chorava quando soube dos últimos desejos da morta: o enterro caro e a missa.

Declarou que fazia questão de arcar com todas as despesas. Belmiro, com o máximo de discrição, disse:

— Vou saber quanto é, e volto já.

Na Santa Casa, a seu pedido, deram o orçamento de dois enterros: o mais caro e o mais barato. O primeiro fazia um total de quinze contos. Belmiro encomendou o mais barato, com grande espanto do agente funerário. Voltou ao escritório de Humberto, de quem recebeu os quinze contos e mais três para a compra de uma coroa monumental. No dia seguinte pela manhã saía, da casa de Belmiro, o coche fúnebre, quase de indigente. A vizinha, que não se dava com Zuleica, estava na janela quando passou o enterro. Na volta do cemitério, o viúvo já pensava na missa. Felizmente, Humberto não aparecera, por naturais escrúpulos. E, assim, Belmiro pôde procurá-lo, dias após, no escritório. Trouxe dinheiro para uma missa com três padres, cinco coroinhas, canto, violino etc. etc.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Charles Miller, o pai da matéria

Charles William Miller
O primeiro brasileiro a dominar a nobre arte de controlar a bola e marcar gols era quase um inglês chamado Charles William Miller (São Paulo, 24/11/1874 - idem, 30/06/1953). Nasceu perto da estação ferroviária do Brás, na época um bairro industrial e operário de São Paulo.

Seu pai era um escocês chamado John, que veio ao Brasil para trabalhar na São Paulo Railway Company (posteriormente Estrada de Ferro Santos-Jundiaí - EFSJ), e sua mãe uma brasileira de ascendência inglesa chamada Carlota Fox. Aos dez anos, foi estudar na Inglaterra. Lá, aprendeu – e bem – a jogar futebol.

Nos jogos oficiais do seu colégio, Charles era um artilheiro implacável. Marcou 41 gols em 25 partidas. “Nosso melhor atacante. Drible maravilhosamente rápido e chute brilhante. Marca gols com grande eficiência”, registrou na época o jornal da escola.

Seu belo futebol chamou tanto a atenção que acabou convocado para jogar no time do Southampton, a seleção local. Sem falar da partida que disputou pelo Corinthians famoso time amador inglês, o mesmo que anos mais tarde iria inspirar a fundação do Corinthians Paulista.

Mas quando desembarcou de volta ao Brasil, em 18 de fevereiro de 1894 para trabalhar na São Paulo Railway, Charles Miller se surpreendeu ao descobrir que ninguém praticava o esporte bretão por aqui. Sorte que trouxera duas bolas, uma agulha, uma bomba de ar e dois uniformes.

Começou então a catequizar os companheiros de trabalho e de críquete para tentarem o futebol.

O novo esporte vingou e, no primeiro campeonato disputado no Brasil (o Paulista de 1902), lá estava Miller encabeçando a lista de artilheiros com 10 gols em nove jogos.

O nosso primeiro homem-gol ainda jogou até 1910 pelo São Paulo Athletic, o time da colônia inglesa. Depois atuou como árbitro e, finalmente apenas como torcedor. Morreu em 1953, coberto de glórias por ter introduzido o futebol no país, mas sem ver o Brasil campeão do mundo.

Alguns historiadores contestam o pioneirismo de Charles Miller na história do futebol brasileiro, argumentando e apresentando documentação como prova de que o esporte mais popular do Brasil já era praticado no país antes da volta do famoso futebolista brasileiro da terra de seus antepassados. O escocês Thomas Donohoe teria sido o primeiro a promover uma partida de futebol no país.

Antes de Charles Miller, o futebol já havia sido jogado em terras nacionais. Tripulantes de navios mercantes e de guerra europeus costumavam bater bola sempre que desembarcavam no litoral brasileiro.

Em 1878, ocorreu uma famosa partida disputada no Rio de Janeiro, em frente à residência da Princesa Isabel. Como era entusiasta dos esportes, a princesa autorizou o jogo e, dizem alguns, até torceu.

O futebol só não vingou com os marinheiros porque, quando as partidas terminavam, eles voltavam para os navios, levando a bola embora.

Fontes: Revista Placar; Wikipedia.