terça-feira, 6 de setembro de 2011

Artur Azevedo

O contista, poeta, teatrólogo e jornalista Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo) nascido em São Luís (MA), em sete de julho de 1855, é considerado o pai do teatro musicado brasileiro. Filho de David Gonçalves de Azevedo e Emília Amália Pinto de Magalhães, aos oito anos demonstrou gosto para o teatro e fez adaptações de textos de autores como Joaquim Manuel de Macedo.

Muito cedo começou a trabalhar no comércio. Foi empregado na administração provincial e logo após foi demitido por publicar sátiras contra autoridades do governo. Ao mesmo tempo lançou as primeiras comédias nos teatros de São Luís (MA).

Antes de completar seus 20 anos foi para o Rio de Janeiro (1873) empregando-se no Ministério da Agricultura e também ensinando português no Colégio Pinheiro.

Mas foi no jornalismo que se desenvolveu em atividades que o projetaram como um dos maiores contistas e teatrólogos brasileiros. Fundou publicações literárias, como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum. Colaborou em A Estação, ao lado de Machado de Assis, e no jornal Novidades, junto com Olavo Bilac, Coelho Neto, entre outros.

Nessa época escreveu as peças dramáticas como a opereta francesa La Filie de Madame Angot; fez a paródia A filha de Madame Angu (1876), que chamou as atenções gerais e criou as oportunidades para o começo de sua carreira teatral; O Liberato e A Família Salazar, que sofreu censura imperial e foi publicada mais tarde em volume, com o título de O escravocrata. Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artísticos, principalmente sobre teatro (figura ao lado: chamada para peça "O Bilontra": O Mequetrefe - Rio de Janeiro - 1885).

Suas operetas e revistas introduziram no Brasil o teatro musicado, sendo pioneira O Mandarim(1884), seguindo-se Cocota (1885) e O Bilontra (1886). Os textos críticos e bem-humorados sempre eram aplaudidos, mesmo pelos criticados. Um século depois, continuam a ser encenados, como A Capital Federal, escrita em 1897.

Em 1889, reuniu um volume de contos dedicado a Machado de Assis, seu companheiro na Secretaria da Viação. Em 1894, publicou o segundo livro de histórias curtas, Contos fora de moda, e mais dois volumes, Contos cariocas e Vida alheia. Morreu no Rio de Janeiro em 22 de outubro de 1908.

Ariano Suassuna

Ariano Suassuna - Dramaturgo e romancista paraibano. É um dos principais expoentes do movimento Armorial, voltado para a recuperação das raízes históricas do Nordeste.

Ariano Vilar Suassuna (16/6/1927-) nasce na cidade de João Pessoa. Estuda literatura, mas forma-se pela Faculdade de Direito do Recife em 1946.

Nomeado professor da Universidade Federal de Pernambuco, dá aulas de estética e história do teatro e ajuda a fundar o Teatro do Estudante de Pernambuco. 

Escreve a primeira peça, Uma Mulher Vestida de Sol, ainda em 1947, demonstrando clara inspiração popular combinada à convicção cristã. Em seus trabalhos seguintes recupera o auto religioso medieval em peças como Auto de São João da Cruz (1950) e O Arco Desolado (1952).

O reconhecimento nacional chega em 1955, com Auto da Compadecida, com forte influência do dramaturgo Gil Vicente e da tradição folclórica luso-brasileira. Em A Pena e a Lei (1959), peça premiada no Festival Latino-Americano de Teatro, utiliza elementos típicos do teatro de marionetes, como as máscaras e a mecanização dos movimentos.

No ano seguinte funda o Teatro Popular do Nordeste, no qual apresenta A Farsa da Boa Preguiça e A Caseira e a Catarina. No final da década de 60 interrompe a carreira de dramaturgo para dedicar-se à prosa de ficção e ao trabalho de animador cultural do movimento Armorial.

O Auto da Boa Preguiça fala de uma terra de pobres, mas rica no aspecto pitoresco-humano: coronéis, vaqueiros e frades. Suassuna desfila seus tipos nordestinos fazendo críticas aos problemas sociais (a seca e a fome) e ao poder da igreja e dos coronéis (política). A eterna luta do bem e do mal.
Entre seus livros mais conhecidos estão Romance da Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) e História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão ao Sol da Onça Caetana (1976). 

Em 1989 é eleito para a Academia Brasileira de Letras.Secretário de Cultura de Pernambuco, cargo que ocupa até o início de 1999, prepara mais um livro, no qual fará um balanço de sua obra. Além de escrever, produz iluminogravuras, conforme denomina suas gravuras coloridas á mão.

Em 1999, estréia o filme O Auto da Compadecida baseado em sua obra de mesmo nome com a atriz Fernanda Montenegro e o ator Selton Melo no elenco. A obra, noentanto, já ganhou outras duas versões anteriores para o cinema, uma com Regina Duarte e Antônio Fagundes nos anos 60 e outra com os Trapalhões nos 80.

Sua obra foi escolhida como tema da escola de samba Império Serrano, para o Carnaval de 2002.

A feia nudez

A propósito da melindrosa de 1929, escrevi, certa vez:

— "Como é antigo o passado recente". Gostei da frase e pinguei-lhe um ponto de exclamação. De então para cá, sempre que posso repito, e não sem uma certa vaidade autoral: — "Como é antigo o passado recente".

E, de fato, não há mulher mais antiga, mais fenecida, do que a melindrosa de 1929. É anterior a qualquer baixo-relevo assírio, fenício ou que outro nome tenha. Há pouco, andei repassando um dos primeiros números de O Cruzeiro. Exatamente de 1929, se não me engano.

E vi as grã-finas da época. Já não falo do vestido sem cintura, nem do penteado, nem do sapato etc. etc. O que me importa é valorizar o espantoso olhar e o espantoso sorriso. Cada época sorri de certa maneira, olha de uma certa maneira. Repito: — por um olhar, ou por um sorriso, pode-se dizer de uma certa dama: — "Esta é do século Fulano, ou do século Beltrano". E quanto mais antiga, a pessoa mais se parece conosco. Ao passo que há, entre nós e a melindrosa, como que uma distância abismal.

Dirá alguém que de 1929 para cá são passados apenas 39 anos. Ah, não acreditem no falso tempo das folhinhas. A idade da melindrosa de O Cruzeiro nada tem a ver com esses míseros, escassos 39 anos. E ela sorri de um tal jeito, e olha de tal jeito, que, por vezes, me ocorre a seguinte suspeita: —"A melindrosa de 1929 nunca existiu".

Se me perguntarem o que havia no seu olhar e no seu sorriso, eu diria que ambos eram idiotas. Recorram às velhas edições de O Cruzeiro e, mais velhas ainda, do Fon-Fon, da Revista da Semana. Vejam as mais belas mulheres e as mais amadas do tempo. Olhavam e sorriam como débeis mentais. Aí está dito tudo: débeis mentais. E só admira que alguém as suportasse, ou pior, que alguém as desejasse.

Não sei se me entendem. Se estou sendo obscuro, paciência.

Mas, como ia dizendo: — desdobro aqui a minha meditação de ontem. Falei do biquíni, que, a meu ver, é muito, muitíssimo anterior ao primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. O biquíni, repito, tem a idade do impudor, que podemos estimar em para mais de, sei lá, 40 mil anos. Digo 40 mil anos, como poderia dizer milhões. Bastam os 40 mil. O impudor era certo, natural, consagrado, na mulher pré-histórica. Mas, quando a mulher se tornou um ser histórico, o pudor foi a sua primeira atitude, o seu primeiro gesto. Mesmo as mais degradadas preservavam um mínimo de pudor. E eis que, de repente, em nossos dias, há todo um movimento regressivo. Aí está o biquíni.

Dirão que tenho a fixação do biquíni. (A nossa vida moral depende de uma meia dúzia de nobilíssimas idéias fixas. O santo ou, nem tanto, o simples homem de bem há de ser um obsessivo. Tenho um amigo que só pensa em biquíni. Nos pesadelos, os umbigos o atropelam).

Durante séculos e séculos, a História preservou o mistério e o suspense do umbigo. Era como se a mulher não o tivesse. Através das idades, só o marido de civil e religioso, ou o parteiro, conseguia vê-lo. Para os outros, o umbigo era irreal, utópico, absurdo. E, súbito, começam a aparecer, aqui e ali, as praias pré-históricas. Tal como no tempo em que os homens viviam em hordas bestiais. E começamos a época da nudez sem amor, do nu de graça e, repito, sem o pretexto do amor. A nudez exclusiva para o ser amado deixou de existir.

Todas se despem, para o ser amado e para outros, inclusive o crioulinho do Grapette. Deixo de lado os outros povos. O que me interessa é o nosso. Nunca o povo brasileiro viveu tanto do passado, das rendas do passado. Somos devorados por misteriosas nostalgias. Dizia-me, ainda ontem, o meu amigo Luís Eduardo Borgerth: — "Nós somos vestidos pelos nossos avós". O próprio Borgerth anda, por aí, estranhíssimo.

Inaugurou um bigode que me deu o que pensar. Eu quebrava a cabeça perguntando-me a mim mesmo: — "Onde é que eu vi esse bigode?". E, súbito, um nome faísca na treva: "Rio Branco, barão do Rio Branco". O nosso Luís Eduardo pôs o bigode espectral do barão.

E o Carlos Alberto, presidente do Banco do Estado da Guanabara? Doce figura. Um belo dia aparece com os bigodões de um longínquo avô. Quando ele entra, ou quando ele sai, dá a sensação de que é avô de si mesmo, ou o neto de si mesmo. No dia 2 ou 3 do presente janeiro, fui receber na TV Globo. Embolso o dinheiro e passo no gabinete do Walter Clark, o gênio da televisão. (Segundo o Otto Lara Resende, o Walter seria gênio do mesmo jeito, fosse arquiteto, veterinário, agrimensor ou bombeiro hidráulico).

Entro e vejo o meu amigo sem paletó, um vasto charuto. O charuto é o de menos. O transcendente eram os suspensórios. Não se pode falar dos suspensórios do Walter Clark sem lhes acrescentar um ponto de exclamação. Falei da melindrosa de 1929. Pois é esta a data dos suspensórios de Walter Clark, e repito: — era assim que os gângsteres da Grande Depressão seguravam as suas calças. Não só os suspensórios. Também o colarinho, a gravata, a camisa listrada, as botinas.

Eu disse 1929 e já não sei se a sua elegância não será um pouco anterior. O fato é que, ao me despedir, tive vontade de perguntar-lhe: — "Estás faturando bem com a Lei Seca?". Mas o leitor sairia frustrado se eu não contasse uma singularidade: — os suspensórios do Walter Clark têm paisagem. Neles há o Pão de Açúcar, corações flechados, faunos de gaitas, sátiros de pés de cabra etc. etc.

Para sair da Grande Depressão, tive de deixar o gabinete. E cá fora, no corredor, já comecei a respirar o ano de 1968. Mas por toda parte continuo sentindo focos do passado. Na quinta-feira passada, apareceu aqui, de repente, o Otto Lara Resende. Vinha de Lisboa. Às sete horas da noite, sua presença explodiu na casa do Hélio Pellegrino.

Mas era um outro Otto, sem nenhuma relação com o que daqui saíra para conquistar Portugal. Durante sua ausência mandara-me uma carta em que julguei perceber um sotaque lisboeta de Leopoldo Fróis. Mas na casa do Hélio Pellegrino deu-me outra impressão. Lusíada da cabeça aos sapatos. Ou melhor: Eça puro. O Otto instalou ali, na rua Nascimento Bittencourt, todo um clima antigo. E ele próprio parecia alguém expelido do ventre da primeira edição de Os Maias.

[15/1/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O ex-covarde

Entro na redação e o Marcello Soares de Moura me chama.

Começa: —"Escuta aqui, Nelson. Explica esse mistério". Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: —"Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?". Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: — "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas confissões. É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: — Por quê?".

Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcello foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: — "É uma longa história". O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Coutto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcello me fustigava: — "Por quê?". Quero saber: — "Você tem tempo ou está com pressa?". Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcello já estava insuportável.

Começo assim a "longa história": — "Eu sou um ex-covarde". O Marcello ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a TV. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

Marcello interrompe: —"Somos todos abjetos?".

Acendo outro cigarro: — "Nem todos, claro". Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salva e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça, nem por acaso. O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total. Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. E o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.

Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o dr. Alceu renegar os 2 mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira".

Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.

Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: — "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?". Eu já fumara, nesse meio tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: — "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc. etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: — 'Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra'. E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da Grande Revolução, que o dr. Alceu chama de 'o maior acontecimento do século XX', sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: — do que a experiência concreta do Socialismo".

Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, uma espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: — "Essa bala era para mim". Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre.

Éramos unidos como dois gêmeos. Durante quinze dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: —"Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário". Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, d. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.

Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim.

Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

Eis o que eu queria explicar a Marcelo: — depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: — "Sou um ex-covarde". É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol — posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".

[14/1/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.