quinta-feira, 14 de julho de 2011

Recado ao Senhor 903

Rubem Braga
"Vizinho - Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento.

Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia.

Quem trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois, como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros.

Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 - que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua.

Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7, pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305.

Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos.

Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.

... Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: 'Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou'. E o outro respondesse: 'Entra, vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela'.

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Janeiro, 1953"

Fonte: BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. São Paulo: Círculo do Livro, 1977. p. 225 - 226.

Hollywood e a telefonia celular

Hedy como Dalila em “Sansão e Dalila”.
Hedy Lamarr (Viena, Áustria, 9/11/1913 — Altamonte Springs, EUA, 19/1/2000), atriz, ficou muito conhecida na Europa por ter aparecido nua em um filme em 1933, e seu papel responsável por seu sucesso em Hollywood, foi o de Dalila em “Sansão e Dalila”.

Depois de seu sucesso em Hollywood, recebeu um convite de Walt Disney para ser inspiração de “A branca de neve” em 1937. Lamarr casou seis vezes e teve três filhos. Foi casada com o austríaco fabricante de armas, Fritz Mandl em 1933 a 1937 e o acompanhou em diversos jantares com a ascendente elite nazista, o que lhe fez ter um conhecimento consideravel sobre a guerra e seus meios.

Porém o que mais impressiona na vida dessa grande atriz, foi uma invenção um tanto quanto usada hoje e que, com certeza, muita gente não acreditaria que veio da mente de uma atriz de Hollywood.

Em uma noite entendiada, Hedy Lamarr e seu amigo, o compositor George Antheil, brincavam de dueto no piano. Ela repetindo em outra escala as notas que ele tocava. O que à levou a pensar que duas pessoas podem conversar entre si mudando frequentemente o canal de comunicação simultaneamente. A partir de tal raciocínio, foi criado o celular.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Lamarr criou um sofisticado aparelho de interferência em rádio para despistar radares nazistas e o patenteou em 1940, usando o seu verdadeiro nome, Hedwig Eva Maria Kiesler. Porém, não foi aceito quando ofereceu a novidade ao Departamento de Guerra norte-americano.

Quando a patente expirou, a empresa Sylvania adaptou a invenção, que hoje é o equipamento que acelera as comunicações de satélite ao redor do mundo e foi usado para criar a telefonia celular.

Fonte: Wikipedia; Mary Diamond's Blog.

O analista de Bagé

Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vêm de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta.

Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada) mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.

Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.

- Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.

- O senhor quer que eu deite logo no divã?

- Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.

- Certo, certo. Eu ...

- Aceita um mate?

- Um quê? Ah, não. Obrigado.

- Pos desembucha.

- Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?

- Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.

- Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe.

- Outro...

- Outro?

- Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.

- E o senhor acha...

- Eu acho uma pôca vergonha.

- Mas...

- Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!

Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.

- Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira...

Mas acabou concordando.

- Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! Qual é o causo?

- Bem - disse o homem - é que nós tivemos um desentendimento...

- Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?

- Eu não meti a espora. Não é, meu bem?

- Não fala comigo!

- Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.

- Ela tem um problema de carência afetiva...

- Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.

- Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento, porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...

- Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?

- Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?

- Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?

- O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.

- Mas isso tá ficando mais enrolado que linguiça de venda. Te deita no pelego.

- Eu?

- Ela. Tu espera na salinha.
___________________________________________________________________

Por: Luís Fernando Veríssimo

Fonte: VERÍSSIMO, Luís Fernando. O gigolô das palavras. Porto Alegre: L&PM, s.d. .p. 78-80.