domingo, 7 de julho de 2013

O rato

Respeito o rato. O rato, ao contrário de outros roedores, é sempre um rato. Nada redime o rato. O rato não é redondinho, não é peludinho, não é um amor. O rato não tem vida útil. O rato é ruim. O rato é reles. O rato rasteja. O rato repugna. O rato venderia a própria mãe na Praça Mauá, se houvesse comprador.

Há, é verdade, o ratinho. Pior, o ratinho branco. Algumas pessoas se enternecem com o ratinho. Crianças sonham em ter um ratinho branco em casa e chamá-lo Gilberto. Mas o ratinho branco se tivesse algo a dizer sobre o seu próprio destino, preferiria ser grande e cinzento e espalhar a cólera. O camundongo Mickey não é um herói entre os ratos. E a ovelha branca dos ratos, um traidor da raça.

Os ratos desprezam sol, água limpa, ar puro, essa literatura toda. Os ratos, quando vão à praia, ficam no banheiro do posto. Os ratos odeiam Debussy.

O Deus dos Ratos vive numa caverna do centro da Terra para onde vão todas as latas de cerveja e as cascas de todas as coisas quando preteiam. O Deus dos Ratos tem os olhos injetados de sangue e se alimenta de lava e fósseis. Os ratos maus, quando morrem, vão para o seu lado. Os bons criam asas e vão para o céu dos cachorrinhos, como castigo.

Respeito ao rato. Rato é rato. Rato assumiu. Rato não se regenera. Rato não quer nem saber. Deus criou a Terra e tudo que nela habita, inclusive a barata e o vendedor de enciclopédia, mas não se responsabiliza pelo rato. De todos os animais que existem só o rato não foi criado junto com o mundo. O rato se apresentou.

Quando a criação tiver cumprido o seu ciclo e só sobrarem sobre a Terra o esqueleto de alguns shopping-centers, os diamantes e o PFL os ratos tomarão posse. Sem qualquer solenidade. Sem rapapés e sem canapés. Sem discursos, sem conjeturas sobre o seu papel no grande esquema cósmico. O rato é o rei do resto.

O rato é a vida reduzida aos seus primeiros impulsos, e com bigodinhos. Certa vez pegaram um ratão do esgoto, deram um banho e entregaram para uma ótima, família criar. Queriam testar a influência de fatores ambientais no desenvolvimento do rato. O ratão teve tudo do melhor, desde talco Johnson até bolsas de estudo. Comia na mesa com a família. Estudou francês, história da arte e flauta doce. Aprendeu os valores morais e as virtudes de um orçamento equilibrado.

Finalmente, para completar a experiência, soltaram o ratão na rua para ver que profissão ele escolheria. Talvez alguma coisa em finanças, ou o Itamaraty. E a primeira coisa que o ratão fez foi entrar por um bueiro para procurar a sua turma. Hoje ele ainda visita escondido a casa em que foi criado. Mas não por motivos sentimentais. Desista do rato.

Não quer rever seu quarto com os pôsteres do Snoopy. Não vai visitar a mãe abnegada que lhe contava o martírio dos santos. Vai porque sabe onde guardam o queijo e qual é o olho ruim do gato.

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Luis Fernando Veríssimo - Jornal do Brasil - Primeiro Caderno / Opinião, 15/04/1990