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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O medo

Subimos ao tombadilho depois do jantar. Diante de nós, o Mediterrâneo não apresentava a mínima ondulação em toda a sua superfície, iluminado por uma lua grande e plácida. O grande barco deslizava, atirando ao céu semeado de estrelas uma enorme serpente de fumaça negra; e, atrás de nós, a água, toda branca, agitada pela rápida passagem da pesada embarcação, castigada pela hélice, espumava e parecia contorcer-se, desmanchando-se em tantos clarões que se diria que o luar borbulhava.

Éramos seis ou oito que ali nos encontrávamos, silenciosos, em contemplação, o olhar voltado para a África longínqua para onde nos dirigíamos. O comandante, que fumava um charuto conosco, retomou subitamente a conversa do jantar.

"Sim, tive medo naquele dia. Meu navio permaneceu seis horas com o rochedo encravado no bojo, sacudido pelo mar. Felizmente, fomos recolhidos à tarde por um carvoeiro inglês que nos avistara."

Então, um homem alto, de rosto tisnado e aspecto grave, um desses homens que nos dão a impressão de terem atravessado vastos e desconhecidos países, no meio de perigos constantes, e cujo olhar tranqüilo parece conservar, lá no fundo, algo das paisagens estranhas que viu, um desses homens que adivinhamos forjados na coragem, falou pela primeira vez:

"Comandante, o senhor diz que teve medo; não acredito nisso. Engana-se em relação ao sentido da palavra e à sensação que experimentou. Um homem enérgico jamais sente medo diante de um perigo iminente. Fica emocionado, agitado, ansioso; mas o medo é outra coisa".

O comandante replicou, rindo:

"Essa agora! Garanto-lhe que tive medo, sim".

Então, o homem de tez bronzeada falou com voz lenta:

- Permitam-me que me explique! O medo (e os homens mais valentes podem sentir medo) é algo terrível, uma sensação atroz, uma espécie de dilaceramento da alma, um tremendo espasmo da inteligência e do coração, cuja simples lembrança nos faz estremecer de angústia. Mas, quando se é corajoso, isso não acontece diante de um ataque, nem diante da morte inevitável, nem diante de qualquer das formas conhecidas do perigo; isso acontece em determinadas circunstâncias anormais, sob determinadas influências misteriosas e diante de riscos vagos. O verdadeiro medo é algo como uma reminiscência dos terrores fantásticos de outrora. Um homem que acredita em fantasmas e que imagina ver espectros à noite deve sentir o medo em todo o seu medonho horror.

Quanto a mim, descobri o medo em pleno dia, há cerca de dez anos. Tornei a senti-lo durante o inverno passado, numa noite de dezembro.

E, no entanto, passei por muitos perigos, por muitas aventuras que pareciam mortais. Lutei muitas vezes. Fui largado como morto por ladrões. Na América, fui condenado à forca como insurreto, e fui atirado ao mar do tombadilho de um navio, nas costas da China. Em cada uma dessas ocasiões, julguei-me perdido e resignei-me à situação sem sentir compaixão nem lamentar-me.

Mas o medo não é isso.

Pressenti-o na África. Entretanto, ele é filho do Norte; o sol dissipa-o como a um nevoeiro. Reparem bem, senhores. Para os orientais, a vida não tem valor; a resignação é fácil; as noites são límpidas e sem lendas, as almas igualmente livres das sombrias inquietações que perseguem os cérebros nos países frios. No Oriente, podem conhecer o pânico, mas ignoram o medo.

Pois bem, eis o que me aconteceu nas terras da África:

Eu atravessava as grandes dunas ao sul de Ouargla. É uma das mais estranhas regiões do mundo. Os senhores conhecem a areia compacta, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Pois bem! Imaginem o próprio oceano transformado em areia em meio a um furacão; imaginem uma tempestade silenciosa de vagas imóveis de poeira amarela. São altas como montanhas, essas vagas desiguais, estranhas, erguidas como ondas desencadeadas, porém maiores ainda e estriadas como o chamalote. Sobre esse mar furioso, mudo e imóvel, o sol meridional, incandescente, incide sua chama implacável e direta. É preciso escalar essas vagas de cinza dourada, descer, tornar a subir, subir o tempo todo, sem descanso nem sombra. Os cavalos arquejam, afundam até os joelhos, e escorregam ao descer a outra vertente dessas surpreendentes colinas.

Éramos dois amigos acompanhados por oito spahis e quatro camelos com os respectivos cameleiros. Não falávamos mais, prostrados de calor e fadiga, e ressequidos pela sede como esse deserto ardente. De súbito, um dos nossos homens soltou uma espécie de grito; todos pararam e permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno conhecido pelos viajantes daquelas regiões perdidas.

Em algum lugar, perto de nós, numa direção indeterminada, um tambor rufava, o misterioso tambor das dunas; rufava distintamente, ora mais forte, ora mais fraco, parando e depois recomeçando seu rufar fantástico.

Os árabes olhavam-se apavorados e um deles disse na sua língua: "A morte paira sobre nós". E eis que, inesperadamente, meu companheiro, meu amigo, quase meu irmão, caiu do cavalo, de cabeça, fulminado por uma insolação.

E durante duas horas, enquanto em vão eu tentava salvá-lo, esse tambor invisível encheu-me os ouvidos com seu rufar monótono, intermitente e incompreensível; e, diante desse morto querido, naquele buraco incendiado pelo sol, entre quatro montes de areia, eu sentia o medo insinuar-se dentro dos meus ossos, o verdadeiro medo, o horrível medo, enquanto o eco desconhecido nos trazia, a duzentas léguas de qualquer aldeia francesa, o rufar rápido do tambor.

Naquele dia compreendi o que era sentir medo; soube-o ainda melhor numa outra vez...

O comandante interrompeu o narrador:

"Perdão, senhor, mas esse tambor? O que era?

O viajante respondeu:

- Não sei. Ninguém sabe. Os oficiais, surpreendidos muitas vezes por esse ruído singular, atribuem-no geralmente ao eco ampliado, multiplicado, desmesuradamente aumentado por aquela série de pequenos vales formados nas dunas, eco formado pelas saraivadas de grãos de areia carregados pelo vento que esbarram em tufos de ervas secas; pois sempre se observou que o fenômeno ocorre nas proximidades daquelas plantinhas queimadas pelo sol e duras como pergaminho.

Esse tambor, portanto, não passaria de uma espécie de miragem sonora. Aí está. Mas só soube disso mais tarde.

Chego à minha segunda emoção.

Foi no inverno passado, numa floresta a nordeste da França. A noite chegou duas horas mais cedo, de tal modo o céu estava sombrio. Tinha por guia um camponês que caminhava ao meu lado por uma trilha muito estreita, sob uma abóbada de abetos através de cuja ramagem uivava um vento furioso. Por entre a copa das árvores, via nuvens correndo em desordem, nuvens enlouquecidas que pareciam fugir de algo aterrador. Às vezes, sob uma rajada violenta, toda a floresta se inclinava na mesma direção com um gemido de dor: e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e das minhas roupas pesadas.

Devíamos cear e dormir na casa de um guarda florestal da qual nos aproximávamos. Eu ia lá para caçar.

Às vezes, meu guia erguia os olhos e murmura: "Que tempo horrível!" Depois falou-me das pessoas da casa para onde íamos. Dois anos antes, o pai matara um caçador furtivo e desde então se tornara taciturno, como que perseguido por uma recordação. Tinha dois filhos casados que viviam em sua companhia.

As trevas eram cerradas. Nada via à minha frente nem à minha volta, e a ramagem das árvores que se entrechocavam enchia a noite de um contínuo sussurro. Enfim, avistei uma luz e meu companheiro não tardou em bater a uma porta. Responderam-nos gritos agudos de mulheres. Depois, uma voz de homem, uma voz abafada, perguntou: "Quem vem lá?" Meu guia se identificou. Entramos. O que se viu, então, foi um quadro inesquecível.

Um velho de cabelos brancos, olhar de louco, com uma espingarda engatilhada na mão, esperava-nos de pé no meio da cozinha, enquanto dois robustos rapazes armados de machados guardavam a porta. Divisei duas mulheres ajoelhadas em cantos sombrios, o rosto voltado contra a parede.

Explicamo-nos. O velho tornou a encostar a arma na parede e mandou preparar o meu quarto; depois, como as mulheres não se movessem, disse-me bruscamente:

"Veja, senhor, matei um homem faz dois anos nesta noite. No ano passado ele voltou para chamar-me. Espero-o ainda esta noite".

E acrescentou num tom que me fez sorrir:

"Por causa disso não estamos tranqüilos".

Tranqüilizei-o como pude, feliz por ter vindo justamente naquela noite e assim assistir ao espetáculo desse terror supersticioso. Contei algumas histórias e quase cheguei a acalmar todos eles.

Junto à lareira, um velho cão, bigodudo e quase cego, um desses cães que se parecem com conhecidos nossos, dormia com o focinho entre as patas.

Lá fora, a tempestade enfurecida sacudia a pequena casa e, através de uma estreita vidraça, colocada junto à porta, eu via, de repente, à luz de grandes relâmpagos, o arvoredo açoitado pelo vento.

Apesar dos meus esforços, percebia que um terror profundo dominava aquelas pessoas e, sempre que parava de falar, todos os ouvidos escutavam ao longe. Cansado de assistir a medos imbecis, ia pedir para me deitar quando, de súbito, o velho guarda saltou de sua cadeira, tornou a apanhar a espingarda, balbuciando com uma voz alucinada:

"Ele está aqui! Ele está aqui! Ouço-o". As duas mulheres tornaram a cair de joelhos em seus cantos, escondendo o rosto; e os filhos voltaram a pegar nos machados. Ia tentar novamente acalmá-los quando o cão adormecido despertou de repente, levantou a cabeça, esticou o pescoço e, fitando o fogo com seus olhos quase cegos, soltou um desses uivos lúgubres que fazem estremecer os viajantes quando passam à noite pelos campos. Todos os olhos voltaram-se para ele, que agora permanecia imóvel, erguido sobre as patas como que perseguido por uma visão, uivando para qualquer coisa invisível, desconhecida, medonha sem dúvida, pois tinha o pêlo todo eriçado. O guarda, lívido, gritou: "Ele o está sentindo! Ele o está sentindo! Ele estava lá quando o matei". E as duas mulheres, desvairadas, começaram a uivar junto com o cão.

Involuntariamente, um grande arrepio percorreu-me a espinha. A alucinação do animal, naquele lugar, àquela hora, no meio daquela gente alucinada, era um espetáculo medonho.

Então, durante uma hora, o cão uivou sem se mover; uivou como na angústia de um pesadelo; e o medo, o horrível medo, apoderou-se de mim. Medo de quê? Será que sei? Era o medo, eis tudo.

Permanecíamos imóveis, lívidos, na expectativa de algo pavoroso, o ouvido atento, o coração agitado, sobressaltando-nos ao menor ruído. E o cão começou a andar em torno da sala, farejando as paredes e continuando a ganir. Esse animal nos enlouquecia. De repente, o camponês que me trouxera, tomado por uma espécie de paroxismo de terror, jogou-se sobre ele e, abrindo a porta que dava para um pequeno pátio, enxotou-o.

Imediatamente o cão se calou: e nós ficamos mergulhados num silêncio ainda mais aterrador. Depois, todos nós estremecemos ao mesmo tempo: um ser deslizava contra a parede externa da casa, do lado da floresta; passou pela porta, que pareceu tatear com mãos hesitantes; depois não se ouviu mais nada durante dois minutos que quase nos enlouqueceram; em seguida, tornou a voltar, sempre roçando a parede; e arranhou-a ligeiramente como faria uma criança com a unha; e, subitamente, uma cabeça surgiu atrás da fresta de vidro, uma cabeça branca com olhos luminosos como os das feras. E um som saiu-lhe da boca, um som indistinto, um murmúrio de lamento.

Então, um estrondo formidável ressoou na cozinha. O velho guarda disparara. Imediatamente, os filhos se precipitaram e taparam a fresta, empurrando contra ela a enorme mesa que prenderam com o aparador.

Juro-lhe que, ao ouvir o inesperado tiro, senti uma tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me senti desfalecer, prestes a morrer de medo.

E assim ficamos até o nascer do sol, incapazes de fazer um só movimento, de dizer uma única palavra, tomados de um intraduzível pânico.

Ninguém ousou desobstruir a porta a não ser quando percebemos, por uma fenda do alpendre, um tênue raio de luz.

Junto à parede, contra a porta, o velho cão jazia, a garganta despedaçada por uma bala.

Saíra do pátio cavando um buraco por baixo da cerca.

O homem de rosto moreno calou-se; depois acrescentou:

"Nessa noite, entretanto, não corri nenhum perigo; mas preferiria reviver todas as horas nas quais enfrentei os mais terríveis perigos, ao simples minuto do tiro sobre a cabeça barbuda atrás da fresta envidraçada".

(23 de outubro de 1882)

(Tradução de José Thomas Brum)

por Guy de Maupassant

A morta

Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um único desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo todo, por toda parte, como uma prece.

Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo.

E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.

E depois ela morreu.

Como? Não sei, não sei mais. Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.

O que aconteceu? Não sei mais.

Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira exclamou: "Ah! Compreendi, compreendi!"

Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Chorei quando me falou dela.

Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus!

Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele buraco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Caminhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.

Ontem, regressei a Paris.

Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.

E parei, de chofre, diante desse espelho que tantas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.

Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem querer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."

Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que horror! Eu soluçava, a fronte no chão.

Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.

E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!

Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as próprias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão colocados os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.

Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente entre os galhos grossos e escuros.

E esperei, agarrado ao tronco como um náufrago aos destroços.

Quando a noite ficou escura, bem escura, deixei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.

Vaguei durante muito, muito tempo. Não a encontrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarrando nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joelhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que procura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava!

Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!

Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava paralisado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, prestes a morrer.

E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de deixar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empurrava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."

O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, contemplando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras luminosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a morte do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."

Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.

E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham roubado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, esses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.

Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.

Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáveres, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.

Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.

E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera:

"Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:

"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu".

Parece que me encontraram inanimado, ao nascer do dia, junto a uma sepultura.


(31 de maio de 1887)

(Tradução de José Thomas Brum)

por Guy de Maupassan

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Guy de Maupassant

Henry René Albert Guy de Maupassant foi escritor, poeta e um dos maiores contistas de todos os tempos. Sua obra é conhecida por retratar situações psicológicas e fazer crítica social com técnica naturalista.

Maupassant teve uma infância e uma juventude aparentemente felizes no campo, em companhia da mãe, uma mulher culta e depressiva, que foi abandonada pelo marido.

Na década de 1870, ele se dirigiu a Paris, onde se firmou como contista e teve contato com os grandes escritores realistas e naturalistas da época: Zola, Flaubert e o russo Turguêniev.

Entre 1875 e 1885, produziu a maior parte de seus romances e contos. Escreveu pelo menos 300 histórias curtas, muitas das quais algumas se tornaram mundialmente conhecidas, como Bola de Sebo, O Colar, Uma Aventura Parisiense, Mademoiselle Fifi, Miss Harriett e O Horla.

Maupassant talvez tenha sido, nos últimos anos do século XIX, o escritor mais lido no mundo.

Rico e famoso, ele teve muitos casos amorosos, mas a sífilis o atormentou por mais de uma década, ocasionando-lhe pesadelos, angústia e de alucinações.

Em 1892, Guy de Maupassant tentou o suicídio. Morreu no ano seguinte, em um manicômio, aos 43 anos de idade. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse, em Paris.

fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u759.jhtm