sábado, 24 de setembro de 2011

O diabo na cultura popular

Desembarque de Cabral em Porto Seguro - Museu Paulista
"As índias estavam nuas. E os portugueses chegavam cheios de apetite sexual. O Diabo estava feliz, com a faca e o queijo na mão. Depois, foi só cortar. E comer."

O Deus e o Diabo dos brancos chegaram ao Nordeste nas caravelas de Pedro Álvares Cabral. Enquanto Frei Henrique de Coimbra plantava a cruz da Fé celebrando a primeira missa, que também foi assistida pelos indígenas, o Diabo fazia das suas, desviando a atenção dos membros da expedição portuguesa para a nudez acobreada das mulheres nativas.

Há mais de 6 meses em alto-mar, os marinheiros de Cabral desembarcaram sob o domínio de forte apetite sexual. E "o europeu saltava em terra escorregando em índia nua. As mulheres foram as primeiras a se entregar aos brancos, as mais ardentes Indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho", escreve o sociólogo a antropólogo Gilberto Freyre. Estava o Diabo com a faca e o queijo, com a fome e a vontade de comer, tentando os homens, ajudado pela ausência de mulheres brancas.

Naquele tempo, o Diabo estava no apogeu de sua fama, respeitado e temido no mundo inteiro, personagem central de tudo quanto ara lenda, estórias e crendices armazenadas desde o começo do mundo. Os tripulantes das caravelas trouxeram para cá estas crenças. Povo muito aventureiro, o português gostava de procurar novas terras, negociar com outros continentes, enriquecendo assim sua herança mística, fortalecendo o que já tinha de mítico no seu mundo interior onde se uniam o real e o imaginário. Cada um respeitava o temia o Diabo conforme o uso de sua província. No entanto, era generalizada a crença de que se alguém pronunciasse o nome do Diabo, ele poderia aparecer. Para que Isso não acontecesse, os portugueses inventaram apelidos para o Diabo, que eram uma maneira de enganá-lo.

A fim de evitar que os homens pecassem tanto, quando a luxúria dominou as primeiras décadas da colonização, os missionários usavam, na catequese, o Diabo como arma poderosa. Pintavam seu retrato com cores fortíssimas, para que o impacto fosse ainda maior. Assim, o Diabo era preto, usava chifres, tinha o nariz adunco por onde expelia fogo e fumaça, os pés eram de pato, a cauda terminava em forma de seta, parecia um morcego, sua presença era sentida por causa do cheiro de enxofre que exalava e só andava com um espeto na mão. As vezes, para melhor tentar os homens, disfarçava-se em animais, tomando a forma de um cachorro, de um porco, um bode, um gato ou outros bichos.

E, foi, assim que o Diabo chegou ao Nordeste. Com muitos apelidos. Com muita fama. Respeitado e temido. Enchendo a cabeça dos portugueses de luxúria. Enriquecendo a cultura popular da região.

Se os homens costumam falar no Diabo a troco de nada, já com as mulheres acontece justamente o contrário. Dóceis pela própria natureza, levando a vida quase sempre dentro de casa ou ajudando no roçado da família, carregando água da cacimba, amarrando as cabras, trazendo lenha, pensando mais nas coisas da Igreja, as mulheres vivem com a boca cheia de Deus e do Céu. A verdade é que as mulheres, na sua maioria, não gostam de falar no Diabo porque têm medo dele. E, quando falam, sempre procuram os apelativos mais inocentes e menos diabólicos como "Capeta", "Capiroto", "Fute" e tantos outros. Os homens acham que não fica bem viver sempre falando no nome de Deus e dos santos, por machismo, ou por não se prestarem aos seus freqüentes desabafos.

E porque Deus e o Diabo participam tanto da linguagem nordestina? Sua secular estrutura religiosa constitui um dos fatores mais importantes dessa participação. Talvez a adversidade da natureza quase sempre madrasta e incerta, o trabalho duro do campo, a injustiça social, o abandono em que vive ainda o nordestino, também sejam responsáveis por essa angústia, por esse desespero. Nos momentos de admiração e de surpresa, de tristeza ou de alegria, é muito comum o uso da parte das mulheres, principalmente, de expressões como "Minha Nossa Senhora!", "Nossa Mãe do Céu!", "Santo Deus!", "Se Deus quiser!", "Deus é quem sabe...", "Graças a Deus!" Mas o Diabo e o inferno são muito mais freqüentes no diálogo do nordestino "homem", talvez porque aconteçam mais coisas ruins do que boas em sua vida. E, para desabafar, nada como um "Com todos os diabos"' já que o Diabo é sinônimo de tudo o que é ruim. Em matéria de Diabo, a coisa só muda de figura quando se fala em "diabo-de-saia" ou "diabinho", com significações de bem-querer.

Diabo sempre foi uma palavra um tanto ou quanto misteriosa, diabólica mesmo. O jeito que houve foi inventar outras palavras para que o nome do Demônio, do Satanás, do Diabo, não fosse pronunciado. Começaram abreviando o nome: "Diá", "Demo", "Satã". Depois criaram corruptelas da palavra: "Diacho", "Diangas", "Dianho".

Vejamos alguns apelativos do Diabo, correntes no Nordeste: "Afuleimado", "Amaldiçoado'', "Arrenegado", "Barzabu", "Bicho-Preto", "Bruxo", "Cafuçu", "Canheta", "Capa Verde", "Diogo", "Diale", "Dedo", "Ele", "Esmolambado", "Excomungado, "Feio", "Feiticeiro", "Ferrabrás", "Futrico", "Gato-Preto", "Imundo", "Inimigo", "Lúcifer", "Mequetrefe", "Mal-Encaracio", "Mofento", "Não-Sei-Que-Diga", "Negrão", "Nojento", "Pé-deCabra", "Pé-de-Pato", "Peitica", "Rabudo", "Rapaz", "Sapucaio", "Sarnento", "Tição", "Tisnado", "Tinhoso".

Com relação ao Diabo, as locuções populares funcionam, às vezes, como uma faca de dois gumes, dicotomicamente, elogiando ou ferindo, perguntando ou respondendo, afirmando ou negando, dependendo apenas da entonação da voz ou de simples modificação que se fizer na construção da frase. "Eita, Diabo!" - por exemplo, é uma locução que se presta a diversas maneiras de dizê-la. "Eita, Diabo! Que mulher horrível!", nega a beleza de uma mulher; "Eita, Diabo! Vá ser boa assim no inferno!" - já é um elogio.

Aqui estão algumas das inúmeras locuções populares envolvendo o Diabo: "acender uma vela a Deus e outra ao Diabo"; "agüentar o que o cão enjeitou no inferno"; "artes do diabo";  "com o cão no couro"; "com o Diabo nos chifres"; "catinga de cão"; "dar um quarto ao Diabo"; "deu o bute"; "Deus fez e o Diabo juntou"; "Diabos te carreguem para as profundezas do inferno"; "do jeito que o Diabo gosta"; "é o cão"; "enquanto o Diabo esfrega um olho"; "escritinho o cão"; "fuzuê dos diabos"; "homem do Diabo"; "Inferno de pedra"; "Mulher do Diabo"; "vá pros quintos dos infernos"; "viva Deus e morra o Diabo".

Entre a população rural, principalmente, o Diabo é muito temido pelo mal que faz. Se não choveu, se a vaca morreu mordida de cobra, se alguém caiu do cavalo e quebrou a perna, quem leva a culpa é o Diabo. Os poetas populares, nascidos e criados nos brejos, nas caatingas, nos pés de serra, retratam, em seus folhetos, toda a atmosfera religiosa que envolve o nosso homem da zona rural, onde a figura do Diabo é muito popular.

Nas feiras das cidades, vilas e povoados, o povo gosta de ouvir o vendedor de folhetos debaixo de seu guarda-sol, transpirando pelos cotovelos, contar histórias onde o Diabo aparece, pinta o sete e, na maioria das vezes, é logrado, como no folheto de José Costa Leite que conta a estória de "A Mulher que Enganou o Diabo":

No Estado da Bahia, morava um camponês chamado Otaviano Aragão, casado com Isabel Maria da Conceição e que viviam da caça e da pesca. Um dia, quando Otaviano estava pescando, avistou uma garrafa boiando, vazia, mas muito bem arrolhada: "Ele avistou na garrafa/ uma fumaça azulada/ mas como a garrafa estava/ completamente tampada/ ele levou para casa/ sem desconfiar de nada." Quando chegou em casa, Otaviano botou a garrafa em cima de uma mesa e foi cuidar da vida. A mulher, arrumando a casa, encontrou a garrafa e, curiosa, passou a examiná-la. A garrafa estava cheia de uma fumaça azulada e dela saía uma voz pedindo para a mulher tirar a rolha. Quando Isabel destampou a garrafa, saiu de dentro dela um negro bem alto, bem feio, de uma perna só, que era o Diabo em figura de gente.

A mulher ficou apavorada, mas urdiu um plano e falou para o Diabo: - "Onde você estava?/ a mulher lhe perguntou."/ Disse o negro: "Na garrafa/ e quando você destampou/ eu saí de dentro dela/ porém você não notou."/ A mulher disse: -"Eu não creio!/ de você tenho até pena/ pois você é muito grande/ e a garrafa é pequena/ e você não cabe dentro/ e digo, ninguém me condena./ O negro disse: - Eu juro/ como estava dentro dela/ há mais de 200 anos/ que a minha morada é ela."/ a mulher disse: - "Eu só creio/ quando você entrar nela./ E se você não entrar/ não venha enganar a mim/ se você estivesse dentro/ já tinha levado fim/ como é que você entra?"/ O negro disse: - "E assim."/ E para provar a ela/ o negro se transformou/ numa nuvem de fumaça/ e na garrafa entrou/ a mulher botou a tampa/ bateu a mão e tampou."

E depois o marido chegou e começou a conversar com o Diabo, que lhe contou o acontecido, choroso e triste. A mulher tornou a abrir a garrafa com a condição de fazer uma aposta para ver quem nadava mais. Mas, no dia da aposta, a mulher bolou outro plano. Levou um vestido de couro e outro igual, embrulhado. Na hora, botou um dos vestidos no outro lado da lagoa,, numa touceira de bananeira sem que o Diabo visse, e tirou o vestido que usava e tibungou dentro d'água: "Na vista do Diabo a mulher/ o seu vestido tirou/ e mergulhou na lagoa/ o diabo também mergulhou/ a mulher saiu e vestiu/ o outro vestido e voltou./ O Diabo mergulhou tanto/ que só faltou se acabar/ depois levantou a cabeça/ para não se afogar/ e viu o vestido dela/ ainda no mesmo lugar./ ele tornou a mergulhar/ e demorou outro tanto/ ao levantar a cabeça/ sentiu o maior espanto/ o vestido da mulher/ estava no mesmo canto."

Nas estórias que o povo gosta de contar nos momentos de lazer, o Diabo é uma constante. Vejamos esta: "A mulher, o menino e o Diabo": "0 Diabo ia andando de estrada afora quando avistou, de longe, um magote de meninos, cada um com sua "Baladeira". Mais do que depressa, o Diabo, querendo bancar o sabido, subiu num pé de caju e se transformou num cupim. Os meninos se aproximaram do cajueiro e um deles falou: - Já que não encontramos passarinhos, vamos ver quem acerta no cupim? Os meninos não tiveram dúvida. Descobriram o cupim do cajueiro e tome pedra. O Diabo, danado da vida, pulou de raiva e disse: - Ah! Já vi que de menino e de mulher nem o Diabo se livra. E saiu correndo mundo afora."

Tratando-se de uma figura muito popular no Nordeste, o Diabo não está apenas na linguagem popular, na literatura de cordel, nas estórias que o povo gosta de contar no seu lazer noturno (quem conta estória de dia cria "catoco") nos alpendres das fazendas, nas bodegas das beiras de estrada ou nas praças públicas, na literatura regional. Na Adivinhação, o FUTE é a resposta para perguntas como essas: "0 que é, o que é? É alto e baixo, gordo e magro, bonito e feio, preto e branco?" Ou, também: "Tenho chifres, rabo e tenho dentes; sou um cara quente. Quem sou, eu?"

Nos folguedos populares que se perpetuam através da oralidade como manifestação dramática, o "capiroto" não podia deixar de ter sua participação, sob pena de dar motivo à separação do popular e da popularidade. Segundo Hermilo Borba Filho, "no bumba-meu-boi", a certa altura do folguedo o "Morto-carregando-o-vivo" pede ao padre que dê um jeito para tirar o outro de suas costas; os dois discutem, o padre se zanga, começa a dizer nomes feios, entra o Diabo-Padre: - Seu Capitão, eu não sou mais padre, não sou mais nada, sou o Diabo do Inferno!

O Diabo, de roupa vermelha, as asas pretas, de rabo, botando fogo pela boca, carrega o "Morto-carregando-o-vivo'", o Padre e o Sacristão para as profundas dos infernos."

Henry Koster, em 1814, assistiu e registrou, em seu livro de viagens, a um fandango em Itamaracá, Pernambuco: "A cena representa um navio no mar, que a princípio é impelido por ventos favoráveis, mas que para o fim da viagem vê-se em apuros. A causa do mau tempo custa a ser conhecida, mas, por fim, a tripulação descobre que o Diabo está no navio, sob a figura do gajeiro da mezeria. Os personagens representados são: o capitão, o piloto, o mestre de equipagem, o contramestre, o capelão, o ração e o vassoura, servindo estes dois últimos de palhaço, e finalmente, o gajeiro da gata, ou o Diabo, que toma parte em vários quadros do folguedo."

No mamulengo baiano, o Diabo tem o nome de "Compra-barulho". O "Diabo" e a "Morte", afirma Hermilo Borba Filho, são "duas figuras indispensáveis em quase todas as pecinhas de mamulengueiros".

O pastoril é outro folguedo popular ainda hoje representado em muitas cidades do Nordeste durante o mês de dezembro. Escreve Hermilo: "0 auto conta a história das pastoras a caminho de Belém, onde nasceu Jesus, Lusbel (0 Diabo) lança mão de mil artimanhas para desviá-las do caminho e só não consegue seu intento por causa da intervenção de São Gabriel. Vendo frustrado o seu intento, Satanás convence Herodes a promover a degola dos inocentes, mas o tetrarca é castigado porque os soldados matam seu filho. Herodes se arrepende e é salvo, enquanto o Demônio e mais uma vez derrotado."

Nos provérbios, que são a sabedoria e a filosofia do povo, o Diabo também não perdeu a vez de mostrar seu espírito maligno, sempre procurando uma maneira de interferir na vida das pessoas. Vamos encontrar muitos provérbios nos quais o Diabo atua como força do Mal:

"A cruz nos peitos e o Diabo nos feitos/ O homem é o fogo e a mulher é a pólvora (ou a palha), vem o Diabo e sopra/ Quando o Diabo reza é porque ele quer enganar/ Quando Deus dá a farinha, o Diabo rasga o saco/ Com mulher de bigode, nem o Diabo pode/ Cada um na sua casa e o Diabo não tem o que fazer/ A tristeza é o aboio de clamar o Diabo/ Mente vazia é a oficina do Diabo/ Quando um homem dança com uma mulher, o Diabo está no meio/ Muitos diabos-te-levam botam uma alma no inferno/ Gente pobre é com quem o Diabo faz a feira/ O cão matou a mãe com uma espingarda sem cano, descarregada/ Mula estrela, mulher faceira e boi de arroeira, o Diabo que queira/ No cruzado do sovina, o Diabo tem pataca e meia/ A quem Deus não dá filhos, o Diabo dá sobrinhos/ Quem Diabos compra, diabos vende/ Pra se ver o Diabo não é preciso sair de casa/ De quem o Diabo leva os dentes, Deus alarga a goela/ O homem é um canalha que traz a vara do Diabo entre as pernas/ Pra encontrar o Diabo não é preciso fazer madrugada/ Quem faia no Diabo olha para a porta/ Tão bom é o Diabo como a mãe do Diabo/ O Diabo atenta e o ferro entra/ O Diabo não faz graça para ninguém rir/ O Diabo quando tem fome come moscas/ O Diabo tem duas capas/ A gente trabalha pra Deus, pra si e para o Diabo/ A quem o Diabo torna uma vez, sempre fica o feito/ Quando o gosto é do defunto, o Diabo carrega o enterro/ Depois que o Diabo come chegam as colheres/ O Diabo ajuda a família toda/ O Diabo tanto buliu com a venta da mãe que a venta ficou torta/ Quem é burro pede a Deus que o mate e ao Diabo que o carregue/ Bom com Deus, bem com o Diabo."

Fonte: Revista Ele Ela nº 75 de julho de 1975

As lendárias minas do Rei Salomão

Quando Salomão ascendeu ao trono, Israel tinha tudo para se tornar a mais poderosa nação do Oriente Próximo. O Egito e a Babilônia, as maiores potências da época, se encontravam debilitadas devido a problemas internos e a discensões políticas. As pequenas nações vizinhas não mais apresentavam grandes problemas devido às ações de Saul e Davi. Toda esta situação era muito favorável aos judeus e Salomão não deixaria escapar esta oportunidade, e assim o fez.

Dividiu seu império em províncias administrativas, fez construir estradas e entrepostos comerciais nos lugares mais distantes.

Salomão foi hábil o bastante para manter a paz em seu país por quarenta anos, formar o que talvez tenha sido o exército mais poderoso da história judia, e firmar acordos que muito lhe valeram como o firmado com Hirã, rei de Tiro. Apesar de todo o poder de seu exército, Salomão preferia "comerciar a guerrear".

Com o acordo firmado com Hirã, cujo reino ficava na Fenícia, se fez possível construir um templo, que era um de seus sonhos, e uma numerosa esquadra comercial que, segundo hoje se sabe, navegava por todo o Mediterrâneo, visitando também a Cornualha, no sul da Inglaterra, a Índia e o litoral atlântico da África.

A Bíblia nos dá uma idéia da plenitude deste comércio marítimo:

"Então foi Salomão a Asiongaber, e a Ailat, à praia do mar Vermelho, que é a terra de Edom. E o rei Hirã lhe mandou por seus vassalos naus, e marinheiros práticos do mar, e foram com a gente de Salomão a Ofir e de lá trouxeram ao rei Salomão quatrocentos e cinqüenta talentos de ouro… 

E os servos de Hirã, com os de Salomão trouxeram também ouro de Ofir, e madeiras de tino, e pedras de sumo preço: das quais madeiras fez o rei os degraus da casa do Senhor, e no palácio real, e as cítaras, e os saltérios dos músicos. Nunca se viram na terra de Judá madeiras semelhantes. … 

E o peso do ouro, que todos os anos se trazia a Salomão, era de seiscentos e sessenta e seis talentos de ouro" (2 Par. VIII, 17; IX, 10-13).

A exploração destas minas distantes fornecia ao rei os metais de que precisava, principalmente largas quantidades de cobre e ouro. Após a morte de Salomão, porém, Israel e Tiro entraram em rápida decadência, esmagados por inimigos externos e disputas internas. O tráfico naval foi interrompido e os entrepostos coloniais entregues à própia sorte.

Poucas colônias, como Cartago, prosperaram e sobreviveram. As outras foram abandonadas, e entre elas, estava Ofir, a misteriosa cidade africana onde operários vindos de Tiro extraíam ouro para o rei Salomão.

Vestígios de uma imponente cidade-fortaleza foram encontrados por exploradores modernos em plena selva africana, a apenas 300 quilômetros de Sofala. Suas construções nos lembram o estilo fenício. Hoje, após diversas escavações e exaustivas pesquisas, acredita-se ter sido ali a fabulosa Ofir.

Suas ruas, muralhas e depósitos apresentam uma técnica de construção típica dos fenícios, ou seja, sem ligadura de cimento. Outro fator interessante e que parece corroborar com a crença de ter sido esta a cidade perdida de Ofir, é que o desenho do pássaro com asas abertas, idêntico ao que faziam os fenícios em outras cidades por eles construídas, foi encontrado nessas ruínas. Também foram encontradas nas proximidades, ruínas análogas menores, que os naturais chamam pelo nome de Zimbabye ou Zimbabwe, que significa "casa real" ou "casa de pedra".

O que mais surpreendeu os descobridores foram as minas de ouro abandonadas encontradas nas imediações. Minas estas com galerias e ferramentas com o puro estilo fenício e fornos onde o metal extraído era fundido em barras. Suas galerias conduzem a um rico veio aurífero o qual apesar de ter bastante explorado, ainda conserva praticamente intacta sua fabulosa reserva. Alguns estudos realizados por estatísticos, baseados em dados e documentos históricos bastante sérios, calculam que o valor do ouro que dali saiu para os cofres de Salomão chegou a dois milhões de libras esterlinas.

Esta foi, provavelmente, uma das minas de Salomão, mas existem muitas outras esperando para serem descobertas.

Bibliografia: - Grandes enigmas da humanidade, Editora Vozes – Luiz C. Lisboa & Roberto P. de Andrade; - The land of Hotu Matu'a - pe. Sebastian Englert.

A Ilha de Páscoa


"Terra à vista!" – Em um grito súbito, o vigia da gávea da galeota holandesa De Afrikaanske Galei chamava a atenção do comandante comodoro Jacob Roggeveen. Aproximavam-se de uma ilha que não constava no mapa. Eram seis horas da tarde, num domingo de páscoa de 1722.

Com o Sol já se pondo, o comodoro chega em tempo de avistar ao longe, no litoral, enormes gigantes, os quais, sobre longas muralhas de pedra, pareciam dispostos a evitar o desembarque. Resolveu então ancorar ali mesmo e esperar a claridade da manhã seguinte para tomar uma decisão.

Ao amanhecer, com seus "óculos de alcance" avistaram gente normal se movimentando entre os gigantes. Tinham se assustado com estátuas. Decidiram então desembarcar, após batizarem a ilha em homenagem à data de sua descoberta.

Ao desembarcar, o movimento dos nativos, que curiosos correram em massa para saudar os desconhecidos, assustou os europeus, que de imediato, abriram fogo contra eles, matando doze e ferindo muitos outros.

Ao chegar no interior da ilha, Roggeveen descobriu que o que pareciam ser muralhas, eram na verdade longas e maciças plataformas de pedras onde se enfileiravam centenas de figuras feitas em pedra (monolíticas) esculpidas apenas da cintura para cima, todas adornadas com um capacete cônico vermelho. Roggeveen foi o primeiro e o útimo europeu a admirar as estátuas em seu perfeito estado.

Após sua partida, passaram-se 50 anos antes que outros europeus pisassem em Hapa Nui, como os habitantes a chamavam. E quando assim o fizeram, trouxeram consigo doenças, desgraça, violência e morte para os habitantes desta ilha. Nada de muito espantoso comparado ao costume europeu de levar a desgraça a todas as civilizações primitivas que encontravam, em nome de seus reis, sua ganância e sua igreja.

E assim, nos anos seguintes, os habitantes conviveram com toda a sorte de aventureiros e exploradores até que em 1862, os habitantes da ilha sofreram o golpe final. Traficantes de escravos levaram embora seu rei, seus ministros, toda a sua casta e todos os homens válidos para trabalhar nas estrumeiras de Guano, no litoral do Peru. Mais tarde, quando o governo peruano decidiu deter o tráfico, somente 15 deles estavam vivos. Estes foram levados de volta à sua ilha, e ajudaram a dizimar a população restante com as doenças trazidas consigo. Das 4 mil pessoas estimadas estarem na ilha a época de seu descobrimento, em 1862 restavam apenas 111.

Toda uma cultura destruida em menos de 2 séculos. Os documentos escritos, por meio de tabuinhas gravadas com hieróglifos foram achados pelos missionários e destruidos em nome da Santíssima Igreja, na ordem de dissipar os cultos pagãos.

As estátuas presentes, esculpidas em lava porosa, em alguns casos, retirada a quilômetros de distância na base de vulcões extintos na ilha, fazem um total de 300. Cada uma tem em média 4 metros de altura e pesa umas 30 toneladas. Existe ainda uma maior, inacabada, a qual deveria ter uns 20 metros de altura e 50 toneladas. Hoje, os gigantes de pedra que Roggeveen descrevera em seu livro de bordo encontram-se todos tombados, destroçados e com seus capacetes quebrados.

Vale ressaltar que os colonizadores quando lá chegaram, se depararam com um fato curioso, para não dizer bizarro: nas minas junto ao vulcão, encontraram diversas estátuas inacabadas e ferramentas largadas ao acaso, como se todos ali tivessem saído para um almoço, e nunca tivessem retornado. Sua história, seus costumes, seu passado já não mais se encontrava presente na memória de seus habitantes. Foi preciso anos de estudo e de pesquisa para se levantar o que hoje se sabe.

Os nossos conhecimentos se baseiam na lenda do rei Hotu-Matua, que diz: "…Há muitos anos atrás, vieram na direção do Sol nascente o rei Hotu-Matua e sua rainha, com 7 mil súditos, em duas canoas. Chegaram à ilha e se instalaram." Os habitantes locais relatam que cada canoa era do tamanho de uma praia local (180 metros).

A hipótese mais aceita hoje nos meios científicos é que Hotu-Matua era um nobre rico exilado, o qual viajou com os seus súditos. O fato de as estátuas presentes na ilha terem as orelhas alongadas pode se dever ao costume dos nobres incas de pendurar pesos nestas para alongá-las e diferenciá-los de seus súditos. A expedição Kon-Tiki, de Thor Heyerdahl, provou que é possível uma simples jangada saida das américas, levada pelas correntes, chegar à Ilha de Páscoa.

Cálculos diversos fixam a data da chegada de Hotu-Matua à ilha entre 850 e 1200 de nossa Era, numa época em que a Europa ainda se encontrava em plena Idade Média e nem sequer se cogitavam descobertas marítimas. Os costumes e os tipos físicos dos habitantes da ilha apontam tanto para uma origem inca quanto indonésia, chinesa e até egípcia. O que se acredita é já estar a ilha habitada por antigos naturais polinésios quando chegou Hotu-Matua, que os dominou e se transformou, com sua gente, na alta classe local.

Cálculos diversos fixam a data da chegada de Hotu-Matua à ilha entre 850 e 1200 de nossa Era, numa época em que a Europa ainda se encontrava em plena Idade Média e nem sequer se cogitavam descobertas marítimas. Os costumes e os tipos físicos dos habitantes da ilha apontam tanto para uma origem inca quanto indonésia, chinesa e até egípcia. O que se acredita é já estar a ilha habitada por antigos naturais polinésios quando chegou Hotu-Matua, que os dominou e se transformou, com sua gente, na alta classe local.

Perto do litoral, foi achada uma caverna num lugar chamado Hanga Tuu Hata, a qual continha uma figura gravada de uma antiga embarcação à vela, que segundo pensam os estudiosos, é a visão da De Afrikaanske Galei por um artista local.

Bibliografia: - Grandes enigmas da humanidade, Editora Vozes – Luiz C. Lisboa & Roberto P. de Andrade.

Faquir e faquirismo

Um faquir em Benares, foto de Herbert Ponting (1907)
O primeiro relato sobre uma prática - que mais tarde viria a ser chamado de faquirismo - chegou ao Ocidente em 1691, pelo médico holandês Dopper, depois de retornar de sua viagem à Índia. Como era de se esperar, foi ridicularizado. Meio século depois, um missionário francês chamado Calmette voltou com uma história parecida com a do médico, despertando então a curiosidade dos europeus por esta prática oriental.

Quase todas as seitas religiosas indianas possuem seu “faquir”, ou gaswami, bawa, sadhu etc. Essas pessoas possuem a capacidade de andar sobre brasas, deitar em camas de prego, atravessar o corpo com longas agulhas, reduzir o batimento cardíaco e interromper (pelo menos aparentemente) o batimento cardíaco.

Segundo os iogues (praticantes de ioga), essas pessoas são capazes de controlar a respiração, os músculos e a vontade. Dominando o corpo, chega-se então à contemplação. Tudo isso seguindo o caminho da meditação. Segundo estas pessoas, a superação da dor física é o caminho para algo muito maior, a libertação espiritual.

Através da prática da meditação, essas pessoas conseguem também realizar o que é chamado de levitação. Utilizando-se desta prática, eles conseguem aumentar seu nível vibratório e por conseguinte “diminuir sua massa”, tornando-se mais “leves”, possibilitando a levitação.

Se tudo é energia, e massa é energia mais densa, condensada, então é muito provável que realmente exista um meio de reduzir nossa massa corpórea ou “vibrar nossas moléculas” de tal forma que nos torne mais leves.

É interessante notar que a maioria das religiões orientais conhecem e se utilizam da pratica da meditação.

Uma coisa é certa: há muito que não entendemos – o que não significa que o que não compreendemos não seja possível.

Fonte: http://www.acasicos.com.br

Lapinha, a cantora pioneira

Lapinha (Joaquina Maria da Conceição Lapa), cantora, floresceu no Rio de Janeiro, RJ, entre fins do séc. XVIII e inícios do séc. XIX. Brasileira de nascimento, adquiriu renome no Rio de Janeiro exibindo-se no teatro como atriz e cantora (ao lado reconstituição do rosto da cantora pelo artista plástico Mello Menezes).

A Gazeta, de Lisboa, Portugal, noticia a sua apresentação no Porto, Portugal, em concertos realizados nos dias 27 de dezembro de 1794 e 3 de janeiro de 1795. O mesmo jornal, exaltando as qualidades excepcionais da cantora, dá notícia do concerto que se realizaria no Teatro São Carlos, de Lisboa, no dia 24 de janeiro de 1795.

"A célebre cantora americana", como a ela se referem as notícias da época, exibiu-se ainda em Coimbra, Portugal, onde foi alvo de grandes homenagens prestadas pelos estudantes da universidade.

Para ela o padre José Maurício Nunes Garcia escreveu o Coro para o entremês, em 1808, e uma ária do drama O triunfo da América, em 1809.

Pioneira em aplausos

Ela arrancou aplausos de plateias exigentes e elogios de críticos europeus no século XIX. Mulata, Joaquina Maria da Conceição da Lapa, a Lapinha, venceu preconceitos e se tornou a primeira cantora brasileira aplaudida fora do Brasil.

O pesquisador e músico Sérgio Bittencourt-Sampaio, em seu livro Negras líricas: duas intérpretes brasileiras na música de concerto (Sete Letras, 2008), narra o quanto a artista foi pioneira nas artes e na emancipação da mulher. “Houve outras mulheres dedicadas à música, em seu tempo e antes, mas estavam longe de conseguir tal prestígio”, diz Bittencourt-Sampaio.

"O nome da Lapinha tem aparecido esporadicamente em textos sobre música brasileira e memórias da cidade do Rio de Janeiro voltados para o final do Vice-Reinado e Período Joanino, mas sempre limitados a uns poucos parágrafos, ou, mesmo poucas linhas. Por isso, nas minhas pesquisas bibliográficas passava por esse nome, mas não me chamava a atenção.

Meu interesse surgiu quando comecei a pesquisar cantoras líricas negras brasileiras do século XIX, há pouco mais de cinco anos. A primeira foi Camila da Conceição, que me despertou o interesse quando encontrei uma fotografia dela na Escola de Música da UFRJ. Os dados biográficos então existentes eram raríssimos. Resolvi, então, recompor sua história, em busca das possíveis fontes.

Logo encontrei referências à carreira da Lapinha que imediatamente mereceu minha atenção, a princípio por ser de etnia negra (por isso, se enquadrava na pesquisa) e, depois, pelo seu mérito artístico. Não havia então nenhum livro publicado no Brasil sobre o assunto. Logo me aprofundei nos estudos para elaborar uma pequena biografia, não só relativa à carreira musical da cantora, mas à sua vida artística em geral e aos seus triunfos."

"À medida que a pesquisa progredia, foi o enorme sucesso que ela obteve no Brasil e em Portugal, em função do talento tanto como cantora quanto como atriz dramática, exaltado de maneira acentuada por pessoas que a conheceram. E também o prestígio que ela obteve junto à Família Real, na Metrópole e no Brasil.

Basta você pensar que ela foi a primeira mulher a se apresentar no Teatro de S. Carlos em Lisboa (pouco após a inauguração), isso revela o valor de seus dotes artísticos. A apresentação no Porto também foi extraordinária. Tinha tanta gente querendo assistir à estreia que foi necessário fazer uma outra apresentação poucos dias depois. A isto, podemos acrescentar a atuação em solenidades como o aniversário do Príncipe Regente e o enlace matrimonial de D. Maria Teresa, a Princesa da Beira, com D. Pedro Carlos de Bourbon, em 13 de maio de 1810, no Rio de Janeiro.

Na época (final do Vice-Reinado e início da Monarquia), uma cantora lírica obter tal repercussão, se distinguindo de outras atrizes e atingindo um nível de fama ainda não conquistado por nenhuma brasileira na área lírica, até mesmo no século XIX era um fato notável e único.

Se considerarmos a condição étnica, vemos que foi a primeira mulher negra a ter imenso sucesso na arte. Houve outras dedicadas à música, em seu tempo e antes, mas estavam longe de conseguir tal prestígio."

Fontes: Revista de História da Biblioteca Nacional - Pioneira em Aplausos; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e Publifolha - 2a. Edição - 1998.

A celebração das descobertas

"E Deus quis que o Novo Mundo fosse descoberto pelos reis cristãos e seus vassalos, e que eles aceitassem alegremente o trabalho de converter e conquistar os idólatras. Bendito seja o Senhor!"

Assim Gonçalo Fernandes de Oviedo (Madrid, 1478 - Valladolid, 1557), escritor, cronista e colonizador espanhol, descreve o espírito de sua época, na obra Historia General de las Indias e de las Tierras del Mar Oceano, escrita em 1535 (figura ao lado).

Tempo em que os espanhóis invadiam e dominavam as terras descobertas por Colombo, "para maior Glória de Deus". E foram os próprios conquistadores que começaram a transformar sua aventura em história:

Oviedo, um fidalgo que veio às Américas para colonizar, foi o primeiro "cronista de Indias" da coroa espanhola - em outras palavras, historiador oficial encarregado de justificar e glorificar a conquista. A "descoberta" foi descrita como uma vontade divina. Os índios eram infiéis sem civilização, como os negros africanos: deviam se converter ou virar escravos.

Cronistas da época também esculpiram a versão de que nenhum outro povo "civilizado" alcançara o Novo Mundo antes dos ibéricos. Não à toa: o dono, claro, era quem chegou primeiro e a ele cabia o direito de ficar rico com isso.

O mesmo raciocínio foi adotado uns dois séculos depois pelos colonizadores ingleses da Austrália: embora a ilha já tivesse sido avistada pelos portugueses em 1522, pelos holandeses em 1614 e talvez pelos chineses bem antes disso, o "descobridor oficial" foi o britânico James Cook, que tomou posse da terra em nome da Coroa inglesa. (De todos os possíveis descobridores da Oceania, só os chineses vestiam "longas túnicas", como os misteriosos visitantes das lendas aborígenes e maoris).

No Brasil, a transformação de Pedro Álvares Cabral em herói só ocorreu no século 19. Até então, livros de história mal falavam nele. Em Portugal, também era pouco lembrado: a casa que pertencera à sua família, na cidade de Santarém, ficou abandonada por séculos e chegou a virar um prostíbulo, até ser restaurada em meados do século 20. "Depois da Proclamação da República, em 1889, o país buscava uma identidade nacional, precisava de um herói em suas origens", diz Leandro Karnal, da USP.

Colombo também permaneceu nas sombras por séculos e só foi reabilitado em 1866, quando americanos de origem italiana inventaram o Columbus Day, ou Dia de Colombo. O objetivo era sublinhar o papel da Itália na colonização da América - truque ideológico numa época em que os imigrantes italianos eram desprezados e até linchados pela elite anglo-saxã.

Com o tempo, a celebração da "descoberta" foi exportada para a América Central e do Sul e até hoje faz parte de muitos calendários nacionais. É um bom exemplo de história contada pelos vencedores: europeus, brancos e cristãos. Se nossos livros tivessem sido escritos pelos perdedores, talvez todos esses relatos não fossem contados como épicos, mas em tom apocalíptico.


O frei dominicano Bartolomé de Las Casas em sua obra Brevíssima relação da destruição das Índias, escrita em 1542, faz uma série de denúncias a respeito da exploração e dos abusos dos colonizadores:

[...] e tendo experiência que em nenhuma parte podiam escapar dos espanhóis, sofriam e morriam nas minas e nos outros trabalhos, quase como pasmados, insensíveis e pusilânimes, degenerados e deixando-se morrer, calando desesperados, não vendo pessoas no mundo a quem pudessem queixar-se nem que delas tivesse piedade”.

No México e no Peru, sacerdotes indígenas decretavam que seus deuses nativos estavam mortos e anunciavam o fim da civilização. O que os "descobertos" pensavam sobre a tal Idade dos Descobrimentos pode ser resumido em um verso, escrito por um poeta indígena do México na aurora do Novo Mundo:

"Oh meus filhos, em que tempos detestáveis vocês foram nascer!"

Fontes: Passeiweb; Wikipedia; Para entender história...

Da linha chinesa

Todos os dias, chova ou faça sol, vou tomar o meu copo de leite, ou meu prato de mingau, ali, no Cabaré dos Bandidos. É na esquina de Mem de Sá com Tenente Possolo.

Eu tenho, se assim posso dizer, uma úlcera amestrada, que dói na hora certa. Nunca houve uma lesão duodenal tão adulada. E, assim, com papinhas analgésicas, minha úlcera vive a vida que pediu a Deus. Boa, excelente ferida. Mais do que um martírio, é um hábito. Sinto falta de sua dor e, quase diria, saudades de sua acidez.

Ontem, aconteceu como sempre: — na hora convencional, começaram os seus espasmos de víbora. Olho o relógio e constato a sua pontualidade. Manifestava-se na hora própria, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos.

Levanto-me e vou para o Cabaré dos Bandidos, a dois passos do trabalho. Quando chego na esquina, paro em cima do meio-fio. Fechara o sinal para os pedestres. Ao meu lado estava um jovem havaiano do Leblon, vasta cabeleira, imensas costeletas, blusão de couro. De propósito, e não sei por que, esperou que o sinal abrisse para os carros. Podia ter atravessado antes, com os outros. Não. Ficou esperando.

E quando os carros, os ônibus começaram a rolar, desceu do meio-fio como de um pedestal. Seria talvez um desafio. Ou estaria testando a própria onipotência. Os Fuscas passavam em delirante velocidade. E lá ia ele, num passo mole, sem olhar, de perfil, sempre de perfil, sem pressa, uma morosidade insolente. A princípio, imaginei: — "Vai morrer".

Se fosse um velho, ou uma senhora, ou alguém de mais de 35 anos, seria fatalmente arrastado, esmagado.

Logo, porém, baixou em mim uma certeza total: — não aconteceria nada. Ele chegaria ao outro lado, maravilhosamente intacto.

Os Fuscas tiravam finas mortais. Houve derrapagens, buzinas; em dado momento, um pneu chiou como uma cigarra lancinante. E nada aconteceu, prodigiosamente nada. Por um desses milagres irritantes, aquele rapaz não seria atropelado, em hipótese nenhuma. De uma calçada a outra, cumpriu a sua travessia encantada. A velocidade o poupou como a um santo.

Em outros tempos, ou na passada geração, o mesmo jovem levaria uma trombada assassina. Seria batido, ao mesmo tempo, por três automóveis. E ficaria emborcado, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Uma apiedada mão acenderia uma vela. Alguém talvez o cobrisse com uma folha de jornal. E a chama ficaria lambendo o silêncio.

Depois, viria o rabecão apanhá-lo. E, então, o jovem seria apenas um cadáver numerado do necrotério.

Hoje, não. Há, por toda a parte, a "jovem revolução". É um movimento mundial. Quem o diz, e as manchetes o confirmam, é o Carlinhos de Oliveira. Os jovens se levantam na China, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra. E por que se levantam?

Segundo se diz, porque estão insatisfeitos com os valores até então vigentes. Só que tais valores, ninguém os realizou e todos os traíram. E os jovens parisienses arrancaram os paralelepípedos, viraram os carros e incendiaram a Bolsa.

Na China, a guarda vermelha caça os inimigos de Mao Tsé-tung. Sim, os desafetos de Mao são exterminados a pauladas, na rua, como obesas ratazanas.

Tem razão o Carlinhos de Oliveira: — a "jovem revolução" é mundial. Só uns dois ou três sujeitos, estreita e amargamente positivos, insinuam que se está fazendo, e também em dimensões mundiais, uma gigantesca e irresistível impostura. Outros espíritos, também minoritários, afirmam o seguinte: — a "jovem revolução" nada tem de jovem. São precisamente os velhos que a promovem.

E, com efeito, o caso da China dá o que pensar. A guarda vermelha tem, já o disseram, a idade de Mao Tsé-tung e, possivelmente, a sua obesidade e, mais possivelmente, a sua arteriosclerose.

Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, os "mais velhos" resolveram idealizar o jovem e conferir ao jovem a própria onipotência?

Referi, mais acima, o episódio de trânsito. O rapaz que, insolentemente, esperou que o sinal fechasse para os pedestres e só então atravessou a rua. Não foi atropelado porque os veículos também bajulam a "jovem revolução".

Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estudante de teatro. Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático.

Pára na minha mesa. Diz, gravíssimo: — "Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhor ler". Era um recorte de jornal; explica:  — "É uma entrevista da Cacilda Becker". Estou ouvindo, risonhamente. E ele continua: — "Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem".

Com tal afirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo da primeira divergência.

Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não sou contra ou a favor de ninguém, automaticamente.

Expliquei que a mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimo e simpaticíssimo da imaturidade.

De vez em quando, isto é, de quatro em quatro séculos, aparece um Rimbaud. Aos dezessete anos, fez toda a sua obra. Se não me engano, o poeta acabou aos dezessete anos.

Viro-me para o rapaz: — "Queres que eu te admire? E te faça manchetes? Sê um Rimbaud. Aí está a solução. Sê Rimbaud".

Foi então que o garoto ousou a confidência: — não estava interessado em poesia.

Fiz um alegre escândalo: — "Não é possível! Um estudante de teatro tem que estar interessado em poesia!".

Novamente, ele me surpreendeu ao dizer que também não estava interessado em teatro. Desta vez, o meu espanto teve um mínimo de irritação. Disse-lhe: — "Escuta cá. Se não te interessas nem por teatro, nem poesia, estás interessado em quê?".

Disse, ofegante da vaidade: — "Sou da linha chinesa".

Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a entrevista da minha amiga Cacilda Becker. Mas, antes de lê-la, fiz para o rapaz algumas observações de minha experiência teatral.

Eis a minha tese: — uma atriz ou ator não devia ter nada com a vida real. Por exigência contratual, não poderia deixar o palco, nunca. Justifiquei meu ponto de vista: — a Duse, a Sarah Bernhardt ou qualquer outra grande atriz age e reage, cá fora, como uma canastrona. Eu preferia uma Cacilda dramática, lírica, romântica, e não impressa.

A Cacilda impressa, a mim, não me diz nada. Nem a líder. Conheço-a, somos amigos, admiro-a profundamente. E parece que eu estava adivinhando. Começo a ler e paro nesta frase: — "O mundo é dos jovens". A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada.

O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pronto. Toma o mundo. Mas vejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, o crime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez.

Não era bem assim que eu queria dizer. Faltam-me palavras.

[20/6/1968] 

__________________________________________________________________________

A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Mazzaropi


Mazzaropi (Amácio Mazzaroppi), cineasta, comediante, ator e cantor, nasceu no bairro da Barra Funda, em São Paulo, SP, em 1912, e faleceu na mesma cidade, em 13/6/1981. Estudou muito pouco e não chegou a terminar o curso ginasial. Quando adolescente, era fã da dupla de atores Genésio e Sebastião de Arruda. Com 15 anos de idade, assistindo a um espetáculo de circo, sem saber como, acabou indo parar nos bastidores e dali terminou trabalhando como pintor de letreiros.

Iniciou a carreira artística apresentando-se em circos, pois logo trocou os pincéis por um personagem vestido de caipira. Foi para o interior e começou a apresentar monólogos cômico-dramáticos.

O sucesso foi imediato, porém os rendimentos eram extremamente baixos. O salário de cerca de 25 mil-réis quase não dava para as despesas diárias. Quando formou sua própria companhia, a situação começou a mudar, tornou-se conhecido e todos os circos começaram a requerer a sua presença.

Em 1946, iniciou-se na Rádio Tupi de São Paulo. Em 1950, estreou na TV, no Canal 6, Tupi do Rio de Janeiro. De 1959 a 1962, apresentou programa na TV Excelsior de São Paulo.

Em 1952, participou de seu primeiro filme. Foi convidado pelo autor de peças para o Teatro Brasileiro de Comédia, Abílio Pereira de Almeida, que ficara deslumbrado ao vê-lo atuar em um programa de televisão, para fazer um teste. Passou e Abílio Pereira dirigiu Mazzaropi no filme Sai da frente. Nascia naquele filme o personagem característico de Mazzaropi, o Jeca, um tipo caipira de andar desengonçado, fala mansa, usando roupas curtas e sujas.

Em 28 anos de carreira fez 31 filmes, entre os quais Chofer de praça, Pedro Malazartes, O vendedor de lingüiças, O corinthiano, Casinha pequenina, Lamparina, uma sátira a Lampião, No paraíso das solteironas, Jeca Tatu, um de seus maiores sucessos, Uma pistola para Djeca, Betão Ronca Ferro, O grande xerife, Um caipira em Bariloche, Portugal... minha saudade, O jeca macumbeiro, Jeca e seu filho preto, O jeca contra o capeta, Um fofoqueiro no céu, A banda das velhas virgens e seu último filme O jeca e a égua milagrosa.

Seus filmes apresentam muita música popular, inclusive sertaneja (e até mesmo um pouco do nascente rock brasileiro). Na década de 1960, gravou alguns discos com sucesso, como a marcha Nhá Carola (Petit), em dupla com Lolita Rodrigues (RGE), e o xótis O azar é festa (Ado Benatti e Zé do Rancho), pela RGE.

Quase todas as atuações de Mazzaroppi como cantor em seus filmes estão reunidas nas coletâneas Os grandes sucessos de Mazzaroppi (RCA Camden, 1968) e Os grandes sucessos de Mazzaroppi, vol. 1 (Intermovies, 1995, em LP e CD, embora sem créditos dos autores das músicas). Jean e Paulo Garfunkel compuseram emsua homenagem a toada Mazzaroppi, gravada por Pena Branca e Xavantinho em 1990.

Faleceu em 1981, no Hospital Albert Einstein, de câncer na medula, deixando como herança, além de seus filmes, uma produtora com tudo funcionando perfeitamente, estúdios, máquinas e filmes virgens, que foi tocada adiante por seus filhos adotivos, Péricles Batista e João Batista de Souza. Deixou parte de sua imensa herança para seus antigos funcionários.

Fontes: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e Publifolha; Dicionário Cravo Albin da MPB.

Mário Lago

Mário Lago, compositor, ator, poeta, escritor e radialista, nasceu no Rio de Janeiro RJ, em 26/11/1911 e faleceu em 31/5/2002. Filho único do maestro Antônio Lago, foi aluno do Colégio Pedro II de 1923 a 1926, ano em que publicou seu primeiro poema, Revelação, na revista Fon-Fon.

Concluiu o ginasial no Curso Superior de Preparatórios e bacharelou-se em direito em 1933, exercendo a advocacia apenas por três meses. Nesse mesmo ano começou a escrever revistas para teatro - Figa de Guiné e Grande estréia, ambas com Álvaro Pinto.

Como letrista, estreou, em 1935, com Menina, eu sei de uma coisa (com Custódio Mesquita), marcha gravada por Mário Reis, no ano seguinte. Com o mesmo parceiro fez o fox-canção Nada além, sucesso nacional, em 1938, na voz de Orlando Silva, e uma série de músicas compostas especialmente para revistas encenadas pela Companhia Casa de Caboclo e pela Companhia Tró-ló-ló.

De 1938 a 1940, trabalhou como funcionário público, chegando a chefe de seção de estatísticas sociais e culturais do Departamento de Estatística do Estado do Rio de Janeiro; foi nomeado membro do conselho do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mas não tomou posse.

Lançou-se como compositor com a valsa Devolve, gravada por Carlos Galhardo em 1940, ano em que apresentou também, em gravação da dupla Joel e Gaúcho, uma de sua mais famosas composições, Aurora (com Roberto Roberti), sucesso no Carnaval do ano seguinte e que obteve mais tarde repercussão internacional, graças à interpretação de Carmen Miranda, que a incorporou ao seu repertório básico.

Em 1942 estreou como artista de teatro na peça O sábio, encenada pela Companhia Joraci Camargo. Compôs com Ataulfo Alves sambas famosos, como Ai, que saudades da Amélia (1942) e Atire a primeira pedra (1944). Começou a trabalhar em rádio, em 1944, na Pan-Americana, de São Paulo SP, passando desde então por diversas emissoras cariocas e paulistas: Nacional, do Rio de Janeiro (de 1945 a 1948), Mayrink Veiga (1948), Bandeirantes, de São Paulo (1949), e novamente Nacional (1950).

Em 1953 compôs com Chocolate outro grande sucesso, É tão gostoso, seu moço, gravado por Nora Ney. Foi responsável pela produção de vários programas e novelas, como Lendas do Mundo, Romance Kolynos e a novela Presídio de mulheres, irradiada durante cinco anos. Em 1951 produziu na Rádio Nacional o programa Doutor Infezulino e mais tarde criou a figura do "Jacó de uma palavra só", no programa Largo da Harmonia, que se tornou bastante conhecido.

Estreou na televisão no programa Câmera Um, na TV-Rio, em 1954. Como ator, em 1966 foi contratado peia TV Globo, na qual trabalhou em várias novelas, como Cuca legal, Pecado capital, O casarão e Brilhante, numa carreira de mais de 30 anos. Publicou, em 1975, pela Editora Civilização Brasileira, uma obra de pesquisa folclórica intitulada Chico Nunes das Alagoas. Além de Orlando Silva e Carlos Galhardo, teve suas músicas gravadas por Francisco Alves, Ataulfo Alves, Nora Ney, Jorge Goulart e Deo.

Publicou os livros: Na rolança do tempo (1976) e no ano seguinte a seqüência, Bagaço de beira-estrada, ambos pela Editora Civilização Brasileira, Coleção Tempo e Contratempo, Rio de Janeiro; e Meia porção de sarapatel (1986), Editora Rebento. Em 1991, seus familiares publicaram o livro Segredos de família, homenagem aos seus 80 anos de idade.

Em 1997 foi publicada sua biografia: Mário Lago - Boêmia e política, de autoria de Mônica Veloso, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. No mesmo no, Gilberto Gil homenageou-o com o lançamento da música O mar e o lago (letra de 1985). Houve ainda a estréia do espetáculo Causos e canções de Mário Lago, no Teatro Café Pequeno, no Rio de Janeiro, dirigido por Mário Lago Filho.

Mário foi contratado e atuou por mais de 30 anos na Globo - em mais de 30 telenovelas -, e recebeu várias vezes o prêmio de Melhor Ator. Também foi ator de cinema, em mais de 20 filmes. Representou no teatro até o fim da sua longa vida - subiu pela última vez no palco em janeiro de 2002. Nunca deixou de compor - somou cerca de 200 músicas gravadas -, nem saiu do Partido Comunista.

Em sua última entrevista ao Jornal do Brasil, declarou: "Vivi. Essa é a coisa principal que fiz".

Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira.

Caça-níqueis

Passo na redação e apanho um bilhete de Playboy, a revista de nus. Viro, reviro o envelope. Ai de nós, ai de nós!

Tudo que tenha um vago sotaque norte-americano já exala o terror.

Finalmente, tomo coragem e abro o envelope. Era uma meia dúzia de linhas. Simplesmente, o correspondente de Playboy queria, de mim, um favor de colega para colega.

Pedia, em suma, informações urgentes sobre "Palhares", o brasileiro ilustre que surpreendera o país com seus métodos originais e revolucionários de educação sexual. Playboy queria biografia, o nome completo, idade, estado civil etc. etc.

Li e reli, na mais absurda das perplexidades.

Eis o que me perguntei: — "Palhares, que Palhares?".

Por um desses lapsos fatais, não me lembrava de ter conhecido, aqui ou alhures, em passado recente ou longínquo, nenhum Palhares. Seria Tavares? Eu conhecia um Tavares. Mas esse Palhares que, de repente, invadia a minha vida era o desconhecido total, jamais visto, jamais cumprimentado. O bilhete dava, embaixo, no canto da página, um número de telefone. Liguei. Por sorte, encontrei o diabo do correspondente.

Disse-lhe a feia e humilhante verdade. Não conhecia nenhum Palhares, vivo ou morto. O colega internacional não queria acreditar. Mas como, se, no momento, o Palhares é o nome obsessivo, a figura obrigatória? Só se falava no Palhares.

Toda a cidade repetia os feitos do Palhares, as anedotas do Palhares, as piadas do Palhares.

Saí do telefone humilhadíssimo. Numa amargura medonha, pensava na idéia que a Playboy faria de mim, o único brasileiro que desconhecia o Palhares!

Vejam como são as coisas. Horas depois, estou, num boteco, tomando cafezinho em pé, quando se irradia uma luz de minhas profundezas e eu descubro a verdade jamais imaginada. O misterioso Palhares era simplesmente o Palhares. Eu o conhecia, sim, e de longa data; e mais: — eu o vira de calças curtas, roubando goiabas. Coisa de espantar:

— o Palhares era um sobrenome. O seu nome por extenso é uma maciça impossibilidade. Ele próprio o diz: — "Desde garotinho, sempre fui Palhares, e só Palhares!".

Nada quer ser mais além de Palhares. De mais a mais, o nosso herói é conhecidíssimo do leitor. Várias vezes, aqui mesmo, nesta coluna, narrei o seu maior feito. Se vocês não se lembram, posso repetir. Eis o episódio: — certa vez, o Palhares cruza com a cunhada no corredor. Não diz nada. Segura a mocinha e dá-lhe um beijo no pescoço. Ali, inaugurou-se um novo canalha.

Não sei por inconfidência de quem, a torpeza espalhou-se. E quando o Palhares passava, havia o cochicho estarrecido: — "O que não respeita nem as cunhadas!".

Vivemos uma época tão surpreendente que a vil audácia foi de uma prodigiosa e fulminante eficácia promocional. Todas as portas se abriram para o canalha. No emprego, por coincidência ou não, o chefe aumentou-lhe o ordenado. Certa vez, fui a um aniversário. Estava lá o Palhares. Tão cínico que, a um canto, perto da janela, cheirava uma camélia. Não era camélia, mas vá lá. E lembro-me que uma senhora gorda, abanando-se com uma Revista do Rádio, suspirava: — "Adoro o Palhares!". Dizia isso e tinha, no pescoço, um colar de brotoejas. Em outra ocasião, entrei no Antonio's e o vejo com um vasto embrulho debaixo do braço. Pergunto: — "Que é isso?". E ele, com ardente seriedade: — "O Cristo!". Em seguida, desembrulha e mostra o retrato de Guevara.

Lá estava o guerrilheiro, de boina, a cara virilizada por uma barba crespa. Guevara era o Cristo.

Chamo o canalha para um canto. Digo-lhe: — "Rapaz, a piada tem limite". Ele refaz o embrulho, amarra o barbante e se justifica: — "A cruz não dá mais nada. É preciso, de vez em quando, mudar de Cristo". Olha para os lados e baixa a voz: — "Este retrato é uma mina. Convido as meninas para ver o Guevara no meu apartamento. Tiro e queda. Vai por mim: — é o verdadeiro Cristo. Esse negócio de amar o próximo é uma laranja chupada. Não pinga mais nada". E, no fim, deu-me o conselho:

— "Você tem de ser socialista. É o golpe".

Mas nunca me ocorrera, nem como hipótese suicida, que, um dia, o Palhares viesse a explodir como o revolucionário da educação sexual.

Bati o telefone: — "Escuta, Palhares. Que negócio é esse de professor? E de educação sexual ainda por cima?". Fiz-lhe mesmo a pergunta contundente: — "Desde quando deixaste de ser analfabeto?".

Sendo um canalha, o Palhares tem uma virtude admirável: — não reage. Achou uma graça saudabilíssima. Inicialmente, foi de um luminoso impudor: — "Continuo o mesmo analfabeto, o mesmo. Não leio nem manchete".

Fiz a pergunta impaciente: — "Mas qual é o teu colégio?".

Ao ouvir falar em colégio, Palhares soltou uma gargalhada de se ouvir no fim da rua: — "Colégio? Me achas com cara de colégio?".

Eu já não entendia mais nada. Já o canalha explicava: — "Faço educação sexual a domicílio. Percebeste? A domicílio".

Em todas as suas palavras, inflexões, pontos de vista, sentia-se o bem-sucedido total: — "Podes chamar-me de analfabeto. E eu sou analfabeto com muita honra. Mas escuta: — ninguém precisa do bê-a-bá para ensinar educação sexual". Conversamos duas horas.

Afirma o Palhares que nós tivemos sorte de nascer na presente época. "Os novos tempos são tão gigantescos que a gente pode dizer tudo, fazer tudo, pensar tudo."

Quase me despedindo, fiz uma amarga ironia: — "Resumindo, qual é o conselho que você me dá?".

Fingiu modéstia: — "Quem sou eu pra te dar conselhos?".

Insisti. E, então, o canalha tira um pigarro, coloca a voz e diz, gravemente: — "Seja o ex-católico. No momento, é o que dá mais. O ex-católico tem todos os trunfos na mão".

Aquilo deu-me um novo e agudo interesse pela conversa. Eu já queria crer que certas coisas, certas verdades, exigem um canalha para dizê-las.

Pergunto: — "Que história é essa de ex-católico?".

O nosso Palhares foi preciso: — "É o seguinte. Repara. Há uma colossal maioria católica. Não há? É o óbvio". E continuou. Segundo ele, não adianta nada ser "maioria". Quem tem o poder de decisão, e o exerce furiosamente, é uma pequena minoria de ex-católicos. O Palhares cita como exemplos de ex-católicos o dr. Alceu e d. Hélder. Ah, os minoritários como influem, como decidem, como agitam. E a maioria católica está aí, por todo o Brasil, aturdida, acuada, humilhada.

Ouvi o Palhares sem interrompê-lo.

Terminou com uma profecia jucunda: "Toma nota. Escreve o que te estou dizendo. Ainda seremos o maior povo ex-católico do mundo".

[19/6/1968]

__________________________________________________________________________

A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Mirinho e a leviana

Tem mulher que a gente, por mais que a conheça, não entende suas reações.

Tínhamos uma namorada, no tempo em que o Dr. Getúlio era considerado o salvador da pátria, que um dia brigou com a gente porque esquecemos de elogiar seu vestido novo. Anos depois, em circunstâncias muito mais amenas, confessou o seu desespero, ao notar que aceitáramos a briga e não déramos mais sinal de vida.

Houve uma outra que, bastava nos ver contente, amável, dedicado ao seu lado, para começar a entortar a situação. E parecia satisfeita, quando — num arroubo de incontida machidão — pedíamos o nosso boné e sumíamos de sua vista.

Aí ficava desesperada, telefonava chorando e muitas e muitas vezes, na noite da reconciliação, pedia que tivéssemos paciência com ela, que a compreendêssemos, etc., etc.

A gente compreendia uns tempos, e lá vinha a desajustada com os mesmos golpes.

Dessa, como de muitas outras, o homem cansa. Na sua última falseia mandamos um presente desses de derreter "vedette" e fomos apanhar perereca em outros brejos.

Amigos comuns cansaram de tentar uma reconciliação que, só de pensar, nos provocava um tédio profundo. Ela ficou a tentar mil e um pequenos golpes, na esperança de recuperar toda uma situação que desfrutou sem precisar de golpe nenhum e hoje não desfrutará mais, nem com um grande golpe, amparada pelas Forças Armadas e os novos marechais de pijama.

"Mulher é um caso sério" — costumava dizer Gumercindo Ponte Preta, pai de Mirinho. E, não raro acrescentava: "Mulher é bom para quem tem muitas". Já Altamirando é um predestinado. Faz tanta sujeira com mulher, que elas acabam, indefectivelmente, passando o primo para trás.

Ultimamente ele arranjou uma namorada que parece adorá-lo. Ao menor aceno, ela aparece dócil, carinhosa, amante.

Mas resolveu passar o primo pra trás aos sábados. Diz Mirinho que é batata. Já fez a experiência diversas vezes. Todo dia ela topa, mas aos sábados inventa que tem que ir ao aniversário de uma tia. Como não acreditássemos nessa fatalidade sabatina, no último sábado fez a experiência em nossa frente. Antes já havíamos constatado o amor da pequena por Mirinho...

No sábado ele telefonou e convidou para um programa dos mais aceitáveis. Ela murmurou de lá que era uma pena, mas a tia fazia anos e ela tinha que ir à festinha.

— Essa tua tia já deve estar com uns 180 anos — protestou Mirinho. Ela desconversou, gaguejou um pouco e — para provar mais uma vez que mulher é bom para quem tem muitas — manteve a recusa. Iria ao aniversário da tia.

— Tá certo — exclamou Mirinho; e com aquele seu cinismo habitual: — Faço votos para que sua tia seja muito feliz e esta data se reproduza por muitos e muitos sábados.

 __________________________________________________________________________

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

O cinzeiro azul

O homem, para justificar a si mesmo, ou para justificar a mulher, inventou a máxima: a mulher só engana o homem por causa dele.

Que seja ou que não seja. Não estamos aqui para desbaratinar os casos de amor dos outros.

O fato é que estes dois estavam brigados. Ela tinha enveredado aí pelo lado alegre da vida, enfiando o braço noutro braço, em passeios e namoros que um dia vieram a ser do conhecimento dele. Brigaram. Lágrimas de parte a parte: as dela de arrependimento, as dele de sentimento.

Mas não quis perdoar. Um recente samba de Jorge Veiga diz assim: "O que você fez está feito, não me sinto no direito de lhe conceder perdão". O samba é bom e não sabemos se ele o conhecia. Sabemos — isto sim — que agiu como está no samba. E cada um foi para seu lado, depois de alguns anos lado a lado nas coisas de amor.

Passou a primeira semana, e ele firme. Não telefonava, não passava nos lugares onde ela pudesse estar, evitava falar no assunto mesmo com os amigos mais íntimos. Passou um mês e ele legal. Fazia força para convencer a si mesmo que já estava passando a fase aguda da dor de cotovelo, cujo único remédio é o tempo... e o tempo, irmãos, é remédio de laboratório homeopático.

Uma tarde o telefone tocou. Era ela. Fingimento de parte a parte e vem a pergunta que ele não queria ouvir: "Você sente muito a minha falta?" Engoliu em seco e não mentiu:

— Vamos que eu tivesse ganho, quando tinha menos 10 anos, um cinzeirinho azul. Durante todo esse tempo, o cinzeirinho azul esteve na minha mesa de cabeceira. Agora o cinzeirinho azul quebrou. Eu vou sentir falta dele. Pois, se até com um objeto a gente se acostuma, como é que eu não vou sentir a falta de quem era o meu amor?

Ela gostou de ouvir aquilo e, timidamente, como as mulheres fazem sempre, propôs a reconciliação. Ele agüentou firme, explicando que, depois de partido, o cinzeirinho azul estava acabado. Não adiantava colar, porque já não seria a mesma coisa.

Foi então que ela disse: "Mas vamos que você sentisse falta do cinzeiro porque ele sumiu, alguém roubou, ou qualquer coisa assim. Agora por uma coincidência qualquer, você torna a encontrar o cinzeirinho azul".

...e o bestalhão voltou.
 _________________________________________________________________________

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

A vaca e o câmbio

Um começo de tumulto na Praça Mauá. Veio de lá um camarada correndo, a gritar: "Tem uma vaca na Praça Mauá, tem uma vaca na Praça Mauá".

Primo Altamirando, que trafegava nas proximidades, olhou espantado para o cara e comentou: "Mas isto não é novidade. Lá sempre tem". Mas o cara explicou que não era isso não. Era vaca mesmo, de verdade.

Aí correu todo mundo, é lógico: uma vaca assim solta, qualquer um quer, ainda mais agora, que o preço do leite subiu tanto que uma vaca, praticamente, não é mais um bicho... é um cofre.

Corre daqui, corre dali, cercaram a vaca. Ela parada no meio do asfalto e a turma cercando, mas ninguém com peito bastante para agarrar a bicha. A expectativa era grande. A vaca pulara de um vagão, no cais do porto. Ia ser embarcada num navio da Costeira, para um Estado do Nordeste. Devem ter avisado à vaca que navio da Costeira é aquela miséria, joga mais que o time do Santos. Devem ter avisado porque a vaca se mandou. Na hora de embarcar, pulou do vagão e saiu correndo em direção à Praça Mauá.

Agora estava ali, calma, olhando em volta, procurando um jeito de continuar seu passeio. O povo em volta, cercando. Apareceu um voluntário de vaca. Foi se aproximando devagarinho. A vaca olhando. O voluntário de vaca foi se chegando, foi se chegando e... pimba... pulou pra abraçar a vaca.

Vaca, porém honesta. Não é qualquer um que me abraça — deve ter pensado a bichinha, pois desviou legal e saiu correndo de novo. Já aí, havia mulheres nervosas, dando gritinhos, homens menos afeitos à intimidade com o gado vacum, a se esconderem atrás dos postes, apavorados. A vaca veio vindo, deu a volta na Praça Mauá e entrou na Avenida Rio Branco, que nem o lotação "Mauá-Abolição".

Foi quando se deu o imprevisto. Ao invés de continuar pela Avenida abaixo, como faz o referido lotação, a vaca parou em frente ao número 25, onde funciona uma casa de câmbio. Parou, olhou a vitrina e entrou na casa de câmbio. Todos correram para ver o que ela ia fazer.

Foi chato. Ela fez exatamente aquilo que vaca faz no pasto, pois vaca nunca foi ao "toilette".

Risada geral. A vaca saiu lá de dentro da casa de câmbio mais furiosa ainda. Foi um custo para apanharem a coitada.

Veio gente com cordas, veio um especialista em vacas, um cavalheiro que se agarrou com ela e só soltou quando ela já estava mais amarrada que homem solteiro depois que diz sim, ao pé do altar.

Os grupos foram se desfazendo. Todos comentando a fúria da vaca. Por que teria saído da casa de câmbio tão enfezada?

Vai ver, foi o preço do dólar.
 _________________________________________________________________________
Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.