sábado, 2 de novembro de 2013

Conto policial

Tia Zulmira agora deu pra isso: virou uma espécie de Agatha Christie da Boca do Mato e resolveu escrever contos policiais. Tá na cara que a sábia parenta tem, sobre sua coleguinha citada, a vantagem de não ser inglesa metida a nobre, que é gente mais mascarada do que — por exemplo — dono de armazém de secos e molhados, quando o Vasco é campeão.

De mais a mais, a cultura da experiente macróbia é tal que compará-la a uma simples Agatha Christie é até falta de respeito. Deus nos livre de ela vir a saber que seu sobrinho fez a comparação. Ficaria tão magoada que poucas possibilidades teríamos de frequentar o suculento breakfast de sua aprazível mansão, pelo menos no correr deste resto de 1961, tempo bastante para arrefecer seu amuo.

Mas deixemos de conjeturar possibilidades e firmemos o assunto no terreno fértil dos acontecimentos. A velha resolveu escrever contos policiais e, ainda ontem, durante a farta distribuição de "mãe-benta" que ela fez ao café, roubamos um desses contos que por sua vez, confessa ela, foi roubado de uma idéia do coleguinha panamenho Roque Laurenza. Tal como em filme de Hitchcock, em geral chatíssimos, ninguém pode entrar na sala de projeção depois do conto começado. É que Tia Zulmira é de uma sutileza bárbara e o conto — para ser entendido — precisa de duas coisas: que o leitor seja atento e, de preferência, que não seja débil mental.

"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os papéis que estavam sobre a mesa. Atrás do vento entrou um homem horrível, com cara de macaco, orelhas grandes e cabeludas. Seu olhar era de faminto e sua expressão era a de um louco. Imenso, deu dois passos em direção ao dono da casa e, estendendo a mão enorme, disse com voz rouca:

— Eu quero comer.

O escritor, que estava escrevendo em sua pequena máquina portátil, levantou-se apavorado e caiu no chão, fulminado por um ataque cardíaco. Aquele que entrara tão abruptamente, ficou indeciso no meio da sala, sem saber se pisava no tapete imaculadamente limpo com seus sapatos cambaios e sujos de barro, se socorria o outro ou se dava o fora. Acabou optando pela última hipótese: atravessou a sala, apanhou um prato cheio de sanduíches, que estava ao lado da máquina de escrever, e saiu correndo, sem ter o cuidado de fechar a porta.

No dia seguinte, pela manhã, a empregada encontrou o cadáver do escritor e chamou a Polícia. Pouco tinha a declarar. Ao comissário Jeff Thomas (famoso na localidade por jamais ter descoberto nenhum criminoso), explicou que chegara pela manhã, para o serviço, e encontrara o patrão morto. Trabalhava para ele havia mais de um ano e pouco sabia a seu respeito. Era escritor de contos de terror, que uma empresa americana editava com êxito. Sofria do coração e era um homem excêntrico. Morava sozinho naquela casa afastada da cidade e só recebia, de raro em raro, a visita do editor ou do médico, que o examinava regularmente. Não parecia ter inimigos, mas estava sempre com ar soturno, como a imaginar os personagens de seus contos misteriosos.

Jeff Thomas botou o cachimbo apagado no bolso (nunca fumava; usava cachimbo porque ouvira dizer que todo policial inglês usa cachimbo), agradeceu à empregada os esclarecimentos prestados, que, por sinal, não esclareciam nada, e pegou o laudo médico que o legista acabara de assinar. Lá estava: morte natural (colapso cardíaco). Jeff sentiu que o caso estava encerrado. Embora estivesse certo de que alguém entrara naquela sala antes da empregada. O tapete sujo de lama (fora limpo na véspera, segundo a empregada), a porta escancarada, mesmo com o frio que fizera na noite anterior, o desaparecimento de um prato cheio de sanduíches, que a empregada garantiu que colocara ao lado da máquina do escritor — tudo isso lhe dava a certeza de que, naquele caso, havia um mistério qualquer.

Jeff gostava de ser detetive, mas não gostava de se chatear. O homem morrera do coração, não havia suspeitos, logo o melhor era mandar o corpo para o necrotério e avisar a família. Deu esta ordem aos seus auxiliares e — apenas por desencargo de consciência — apanhou o papel que estava na máquina de escrever, para juntar ao relatório que seria obrigado a fazer. Eram as últimas palavras escritas pelo escritor falecido. Jeff leu e não deu qualquer importância.

Era, por certo, o início de mais uma história de terror e começava assim:

"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os papéis que estavam sobre a mesa. Atrás do vento entrou um homem horrível, com cara de macaco, orelhas grandes e cabeludas. Seu olhar era de faminto e sua expressão era a de um louco. Imenso, deu dois passos em direção ao dono da casa e, estendendo a mão enorme, disse com voz rouca:

— Eu quero comer."


Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.

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