sexta-feira, 1 de abril de 2016

O Moleque Festeiro


Na encosta de uma serra muito alta e a pique, de Santa Maria de Taguatinga, entre barrocas e cardos, morava um homem muito rico e mau, que fizera voto de entoar uma ladainha, todas as noites pela passagem de São João.

Eram verdadeiras festas, muito concorridas, em que o pecado das danças livres excedia à devoção religiosa. O homem residia só e jamais conhecera os carinhos de uma esposa ou a alegria do sorriso de um filho …

Como companheiro tinha apenas um molecote, um cão e um gato preto. O menino era o emissário perpétuo por quem mandava os convites para as festas de São João. Era só nessa ocasião que abria a bolsa e deixava os patacões correrem a mãos cheias; nos outros dias não aliviava a lágrima de um pobre ou de uma viúva necessitada.

Certa vez, o pequeno mestiço partiu em busca dos convivas e voltou só: ninguém o acompanhara. As casas dos amigos estavam fechadas e ninguém respondera a seu chamamento.

O homem indignou-se e disse ao menino que fosse buscar quem quer que fosse, rico ou pobre, até mesmo o Pé-de-Garrafa, se o encontrasse. Era imprescindível o cumprimento do voto. No caminho apareceu um cavaleiro elegante, muito bem vestido, tinha esporas de prata e estava em traje de festa.

Ao convite do emissário do homem rico, respondeu afirmativamente e acompanhou-o ao sítio das barrocas e dos cardos. Era um só convidado, porém a festa começou logo.

Depois da ladainha dançou muito, fazendo tinir as esporas, que tiravam fogo no assoalho. Nunca o homem rico e miserável vira um convidado assim: só ele enchia a sala, devorava todos os manjares e dançava por uma súcia inteira. Acabada a festa, o cavalheiro misterioso convidou o homem rico para uma festa em seu palácio e desapareceu, quando a aurora vinha raiando.

Um mês depois um pajem veio buscar o homem rico para a festa do dançador misterioso do São João. Os olhos do homem rico foram vendados e os dois se puseram a caminho. Chegariam à meia-noite. O palácio do anfitrião não era longe de Santa Maria de Taguatinga. Barrancos e valados, brenhas e barrocais, matas e tabuleiros transpuseram os dois caminhantes.

Afinal chegaram, a venda caiu e uma elegante habitação maravilhou o hóspede da casa da encosta ao sopé da serra da Taguatinga.

Atravessado o pórtico dourado, penetraram em um grande salão e ali, maliciosamente, estavam enfileirados os vestidos curtos e os sapatinhos de salto alto de Formosa, as impudicas "toilettes" da Baía e os "maillots" cariocas. Noutra sala o homem rico viu uma porção de cavalheiros conhecidos: o Cel. F. F., o Major C. B. e Sr. H. M., etc., etc., pessoas há muito falecidas. Um cheiro de enxofre espalhou-se neste momento, por todo o palácio …

E o homem rico compreendeu tudo:

Estava no palácio do diabo …



I. G. Americano do Brasil: Lendas e Encantamentos do Sertão. - Edições e Publicações Brasil, São Paulo, 1938, pp. 49-50. - Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Gato Preto Atravessando na sua Frente


Na Europa medieval os gatos tinham má reputação, pois eram associados com bruxas e hereges, e acreditava-se que o diabo poderia se transformar em um gato preto (Socorro! Sou um pobre gato preto). Em seu artigo “Heretical Cats: Animal Symbolism in Religious Discourse” (Gatos Heréticos: Simbolismo Animal no Discurso Religioso), Irina Metzler analisa a forma de como este ponto de vista sobre os felinos surgiu. 

Assim discorre o artigo, do qual traduzo, adaptando, livremente do meu jeito, algumas partes:

Os gatos tiveram um papel muito importante para os seres humanos na Idade Média: eles caçavam ratos, evitando um sério incômodo para as pessoas, que naquela época, não tinham o mínimo conceito de higiene, e preservando alimentos estocados. No entanto, alguns escritores medievais ainda viam essa atividade em tons negativos, muitas vezes comparando a forma de como eles capturavam ratos com a forma de como o diabo poderia capturar as almas das pessoas.

Por volta do século XII, essa associação com o diabo se tornou ainda mais arraigada. Por volta de 1180, Walter Map explicava em uma de suas obras que, durante rituais satânicos "o diabo desce como um gato preto diante de seus devotos. Os adoradores apagam a luz e se aproximam do lugar de onde viram o seu mestre. Sentam-se atrás dele e quando este levanta sua cauda, começam a beijar o local debaixo desta" (esse gatinho morrendo de rir ...).

Grupos religiosos heréticos, como os cátaros e valdenses, foram acusados por clérigos católicos de se associarem e até mesmo adorarem gatos. Quando os Templários foram levados a julgamento no começo do século XIV, uma das acusações contra eles foi que permitiam que gatos fizessem o seu papel na rotina dos seus serviços e até mesmo "rezavam" por seus felinos diabólicos de estimação. A grande maioria foi chacinada ou mesma julgada e queimada junto com os bichanos.

As mulheres, muitas das quais camponesas (quase todas com um gatinho lindo, negro, como eu), que praticavam curas com ervas em enfermos de algumas vilas, coisa tradicional, arraigada, passada por gerações, muitas descendentes do povo celta, eram "bruxas" nas cabecinhas infelizes de muitos cléricos da santinha inquisição e também foram acusadas de se transformarem em forma de gatos, o que levou o Papa Inocêncio VIII (Lembram-se dessa criatura?) declarar em 1484 que "o gato era o animal do diabo e o ídolo favorito de todas as bruxas."

Nem todos os europeus medievais odiavam os gatos. Há muitos relatos de gatos sendo mantidos como animais de estimação, incluindo freiras. Além disso, os muçulmanos medievais gostavam muito de gatos. Afinal de contas, o Islã sugere que o Profeta Maomé e outros representantes dessa religião gostavam de gatos e os tratavam muito bem. Talvez a limpeza desses animais era altamente atraente para os muçulmanos.

Nas cidades medievais do Oriente Médio você poderia mesmo encontrar instituições de caridade que cuidavam de gatos de rua (peleques que nem eu... eh eh eh eh). Um peregrino europeu que viajou para o Oriente Médio ainda observou que entre as diferenças entre muçulmanos e cristãos era que "Eles gostam de gatos, enquanto nós gostamos de cães".

Artigo traduzido, adaptado, porém não modificado no seu sentido. Estou publicando aqui, nesse meu blog quase extinto, esquecido.

Dedico à Nakano Aline, pelo seu amor aos gatos. Beijos felinos!


Fontes: Mediavalists.Net.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Ouro maldito


“Chegara eu a Pirapora, nas margens do caudaloso São Francisco, em noite quente, mas de chuva forte, que me não permitiu sair do hotel. Após o jantar, servido o café, levantei-me da mesa juntamente com outro hóspede, que ali morava e que comigo havia palestrado durante a refeição. Parecia ele homem viajado e experimentado nas coisas do sertão mineiro.

Para mim, que ali ia pela primeira vez, a palestra era instrutiva e convinha mantê-la. Indagando o nome, disse-me ele que se chamava João José de Freitas, mas que era conhecido em todo o sertão como Januário, por ter nascido na cidade de Januária, que, rio abaixo, dista de Pirapora cerca de 40 léguas.

Dando-lhe também o meu nome, convidei-o a passarmos a uma larga varanda que dava para o lado do rio. Mas Januário preferiu uma sacada que dava para a mata, justamente em sentido oposto ao rio.

Acompanhei-o sem protestar, mas estranhando intimamente aquela preferência. O arguto olhar do sertanejo, não escapou, porém, a minha estranheza íntima.

Logo que nos sentamos em cômodas cadeiras com fundo tecido em cordas de palha de milho, ofereceu-me um cigarro da mesma palha, e, em preâmbulos, foi dizendo:

— Seu doutor está estranhando eu não querer ficar do lado do rio ... Mas é que o rio me entristece muito, principalmente à noitinha.

— Mas por que lhe acontece isto, seu Januário?! ... ao senhor, que parece homem habituado ao sertão e aos caudalosos rios deste grande vale!

— É por isto mesmo, seu doutor. Quem vê essas águas não sabe quanta coisa triste elas escondem. Vou lhe contar um fato que se passou comigo e que mostra a razão por que me entristeço quando estou à beira dum rio.

Há dez anos, éramos três amigos: eu, o Raimundo e o Celestino; todos três muito unidos pela luta constante na vida que levávamos como faiscadores e garimpeiros. A busca ao ouro e ao diamante, nas cabeceiras deste grande rio e nos seus afluentes, era nossa única ambição. Onde havia notícias dessas coisas preciosas, lá estávamos nós trabalhando, algumas vezes em vão; outras, porém, ganhando muito, mas sempre gastando muito, também. O que vem fácil, fácil vai.

Um dia soubemos que neste rio São Francisco, um pouco abaixo daqui, entre as bocas das Velhas e do Jequitahy, havia naufragado uma embarcação que vinha de longe, lá do Paraúna, e ia para Juazeiro, na Bahia, levando pesada carga de ouro e de diamantes.

Um parente do Raimundo tinha assistido ao naufrágio e marcou o lugar certo em que afundou o barco. Era junto a um grande penedo a pique, que forçava o rio a fazer uma volta ligeira e perigosa, em garganta apertada com muita correnteza.

Nós três vimos logo ocasião de fazer fortuna. E resolvemos empreitar o salvamento do tesouro, com a vantagem de metade do que pudéssemos arrancar do fundo do rio.

No momento, porém, era impossível. O rio estava de enchente e as chuvas turvavam muito as águas. Tivemos que esperar mais de mês pela vazante.

Já sabíamos, porém, que o lugar era fundo e dava muita piranha, de modo que o trabalho só podia ser feito com escafandro. Por isso, enquanto esperávamos a vazante, o Celestino foi ao Juazeiro buscar um escafandro de um amigo dele, que o havia comprado a um embarcadiço em São Salvador.

Mas o escafandro tinha os tubos de borracha vermelha, cor que atrai a piranha, porque ela pensa que tudo que é vermelho é carne. Resolvemos, entretanto, o caso, cobrindo os tubos com tiras de metim preto.

E quando as águas baixaram e clarearam, lá fomos nós rio abaixo, com o nosso barco bem equipado para trabalhar o escafandro.

A princípio, custamos a encontrar sinais do barco naufragado. Mas, descendo um pouco, a uns trezentos metros abaixo do lugar marcado pelo cunhado do Raimundo, conseguimos ver a proa de um barco atolado no fundo. Não podia ser outro.

Como prevíamos, o lugar era muito fundo. Só mesmo com escafandro se podia chegar lá.

Amarramos o barco com espias em terra, porque a poita não tinha firmeza para aquela corrente e precisávamos fixar bem o barco, porque o trabalho era demorado.

Feito isso, tiramos a sorte qual de nós três tinha que descer no escafandro. Caiu para o Raimundo, que não fez cara-feia. Era assim que nós trabalhávamos.

A princípio, tudo ia muito bem. Mas, quando o Raimundo fez o sinal de que tinha tocado o fundo, dando dois puxões no cabo, depois de o afrouxar duas vezes, o metim preto, devido ao roçar do cabo, soltou-se num pedaço, descobrindo o tubo vermelho. E logo apareceu uma piranha assanhada. Bati na água com o remo para espantar o peixe. Mas o Celestino achou melhor mergulhar na água para tornar a cobrir o tubo. Não achei bom: disse a ele que as piranhas podiam vir em maior número.

Celestino espiou bem, e, vendo que era uma só, perigosa para o tubo e não para ele, resolveu mergulhar, com o que acabei concordando.

Mas, tão logo ele caiu n’água e pegou o tubo, o rio empreteceu... Saia piranha de todo lado. . . Não se via mais nada. . . Bati com os remos n’água, sem resultado. . . Em vez de subir o Celestino só subia sangue.

Experimentei o tubo: já estava cortado. . . Puxei o cabo: estava partido.

Larguei a bomba de ar ... larguei tudo, para pegar nos dois remos, ... e entrei bater na água como um possesso.

Bati muito, bati até não poder mais, não sei por quanto tempo. . . Em um ponto que a luz era mais forte, vi, no meio do bando de piranhas esfaimadas, os ossos do Celestino, já quase esqueleto só! ... os pelos me arrepiaram em todo o corpo e eu não vi mais nada!

Quando voltei a mim, estava deitado no fundo do barco, que, tendo quebrado as amarras, vogava rio abaixo, volteando em um remanso.

Tinha perdido um remo ... estava escurecendo ... fiquei apavorado!

Com o remo que ficou, remei febrilmente para terra, e conseguindo encostar o barco na praia do remanso, saltei horrorizado, fugindo a todo fôlego daquelas águas tenebrosas.

Andei algumas léguas, sem rumo, até que, perdendo as forças cai sem sentidos. Só acordei ao amanhecer, como quem acorda de terrível pesadelo. Não queria acreditar no que tinha acontecido.

Procurei, mais calmo um pouco, tomar alturas, para saber onde estava. Fiquei satisfeito quando vi que estava na estrada que vai da Barra do Jequitahy a Guaicuhy, cidade em que morava um amigo nosso, o Zé Vicente. Para lá fui, mais morto do que vivo.

Em duas palavras, contei o caso ao Zé, bebi um trago, comi um pouco, sem saber o que ... e só fui descansar no barco do Zé, com quem desci o rio novamente, até o lugar sinistro.

Mas não podíamos ver mais nada. Por ter chovido nas cabeceiras dos rios, a água, que na véspera era clara, estava agora barrenta. Deitamos garateias a tarrafa, para ver se agarrávamos qualquer coisa: o Raimundo no escafandro ou os ossos do Celestino. Nada conseguimos.

Todos os dois ficaram lá, e o tesouro também. Ninguém tentou tirar do fundo aquele ouro maldito!

Depois dessa luta em vão, seu doutor, me veio um febrão, que durou mais de 15 dias. E a toda hora eu via o Celestino e o Raimundo lutando com as piranhas, ao mesmo tempo que uma voz me dizia que aquilo era o prêmio da ambição.

Que horror! seu doutor! Nunca mais peguei na bateia, nunca mais entrei num vau ...

— Mudou de vida, então, seu Januário? — perguntei eu para mudar a conversa.

— Mudei, sim, senhor. Agora só compro e vendo ouro e pedras, com pequeno lucro ... E vou bem, graças a Deus. Só quando me lembro dessas coisas é que ainda me arrepio todo, como o senhor está vendo.

— Mas, seu Januário, para que recorda essas coisas tristes?

— É a sina, seu doutor! ...

— Mas vamos esquecer ‘— concluí eu. — Vamos tomar um trago e jogar um pouco ...

— Ah! o senhor gosta do trago ?!. Então vai beber produto da minha terra.,. Oh! Quincas! (Grita o Januário para o copeiro). Traz aí uma “Januária” ... daquela que a tia Zeferina mandou no Natal! ...

Servida a bebida, pura de cana, fomos jogar, tendo eu desviado a conversa do caso macabro.  Mas, quando acabamos e nos demos o “boa-noite”, o Januário falou:

— Seu doutor, quero um favorzinho seu.

— !?! ...

— Reze um Pai-nosso pro Raimundo mais o Celestino ... Eles merecem.”

(Original de Felix Sampaio)


Fonte: revista semanal "Carioca", de 12/09/1936.