sábado, 20 de agosto de 2011

Chico-Bóia

Casou-se magríssimo. Tanto que o sogro costumava chamá-lo, a título de blague, de “esbelto mancebo”. Após os quinze dias de lua-de-mel, porém, Wilson e Ivone passaram por uma farmácia. Ela tem a idéia:

— Vamos pesar?

Subiram na balança. Ela emagrecera, se não me engano, dois quilos e meio. Já o marido engordara. Esbugalhou os olhos no vão protesto: “Não é possível! Não pode ser!”. E, com efeito, a balança acusava a mais quatro quilos! Esbravejou:

— Essa balança está maluca!

Saem os dois impressionadíssimos. Ivone já se julgava uma Olívia Palito; e Wilson, um Chico-Bóia autêntico. Experimentam uma balança de confeitaria. Adquirem, então, a certeza: a esposa emagrecera com o matrimônio e o marido engordara. Virou-se para a mulher; e coçava a cabeça, inconformado:

— Que mágica besta!

OBSESSÃO

Que importância pode ter um quilo a mais, ou a menos, num jovem marido e numa jovem esposa? Ivone aceitou sem maiores atribulações o resultado da balança. Mas Wilson, que era um nervoso, um excitado, dramatizou: “Vou fazer regime! Dieta!”. Era, porém, um glutão. No almoço, no jantar, seus planos de regime, dieta, iam por água abaixo. Gemia:

— Meu apetite aumentou com o casamento!

A sogra ponderava:

— Apetite é saúde!

Com um mês de casamento, passa pela mesma farmácia e usa a mesma balança. Ao verificar o peso, toma um novo susto: engordara ainda mais! Mais tarde, em casa, colocou-se diante do espelho. Examinou a própria barriga de frente e de perfil: concluiu, para si mesmo: “Não sinto a mínima diferença!”.

Tomou, porém, uma resolução heróica e definitiva, qual fosse a de não se pesar nunca mais. Pareceu-lhe um meio simples e eficaz de evitar novos aborrecimentos. Mas se fugia da balança, não podia fugir dos amigos. Estes o perseguiam por toda parte com a pergunta, que se renovava ao infinito:

— Como é? Tu não paras de engordar? Estás gordo pra chuchu!

O BARRIGUDO

Voltava para casa desesperado: “Será o Benedito?”. Olhava para a mulher, que vinha conservando o mesmo peso, as mesmas medidas, a mesma e deliciosa fragilidade física. Dir-se-ia um corpo, uns quadris de menina. E o patético é que o apetite de Wilson parecia crescer. Tinha fomes desesperadoras. Levantava-se, de noite, alta madrugada, e vinha comer, sozinho, na copa, com uma voracidade homicida. Todavia, a sua tragédia de gordo só atingiu o clímax quando mudou-se da Tijuca para Copacabana.

Ivone bateu palmas, numa alegria de criança: “Que ótimo! E já sabe: vamos à praia todos os dias!”. Ele, que se julgava muito branco, parecia também animadíssimo:

— Preciso apanhar sol, me queimar!

No dia seguinte ao da mudança, acordam cedíssimo. Ivone pôs um maiô amarelo, que valorizava o seu corpo de adolescente. Mas quando Wilson apareceu de calção, e nu da cintura para cima, o assombro de Ivone foi uma coisa patética:

— Mas como você está barrigudo!

Subitamente, o rapaz se crispa, num desses pudores físicos incoercíveis:

— É, é?

E, então, sentindo-se um pobre-diabo irremediável, fez o que já fizera antes: põe-se diante do espelho, com a barriga de perfil. Não havia dúvida. Estava prodigiosamente gordo. E mais: sentia-se portador de uma dessas barrigas incomensuráveis, de ópera-bufa.

O pior é que não engordara harmoniosamente, por igual. Não. As pernas, os braços, o tórax eram magros. Mas a barriga se projetava, irresistível. Ao lado, a mulher o esmaga com a insistência cruel: “Você está uma pipa! Um barril!”.

Era demais. Aniquilado, Wilson desaba numa cadeira:

— Vai sozinha, vai. Eu fico. Eu não vou. Com essa barriga, eu devia renunciar ao mundo, compreendeu? Devia entrar pra um convento!

NEURASTÊNICO

A princípio, Ivone ainda insistiu: “Que bobagem! Vem, sim, vem! Parece criança!”. Wilson não variou de argumento: batia sempre na mesma tecla: “Não posso nem devo. Não quero fazer papel de palhaço”. Não restou outra alternativa a Ivone; foi sozinha dessa vez e sempre. À tarde, o desesperado Wilson comparecia ao médico:

— Doutor, a minha situação é a seguinte: ou perco essa barriga ou sou um homem liquidado!

O médico achou muita graça. Preparou uma dieta, enumerou tudo o que Wilson podia e não podia comer. Na hora de sair, o rapaz indaga: “Mas isso é batata?”. O outro foi taxativo: “Batatíssima!”. Apertou, comovido, a mão do doutor, e exagerou:

— Não parece, mas o senhor me salvou a vida!

Era, porém, um fraco. A primeira conseqüência psicológica de sua visita ao médico foi a seguinte: recrudesceu seu apetite. Quando chegou em casa, teve um espetacular colapso de vontade: lançou-se como um abutre sobre as comidas proibidas. Era tal a sua voracidade, que a esposa repreendeu-o:

— Faz menos barulho, meu filho! Você faz muito barulho quando come!

O FRACO

Ele, porém, sabia agora que não cumpriria jamais dieta nenhuma. Virava-se para a mulher, com lágrimas nos olhos: “Eu sou um caso perdido, um fracasso! Quero e não posso! Tenho comigo uma fome mortal!”. E, súbito, apanha a mão da mulher. Faz-lhe a pergunta, inesperada e sôfrega: “Você ainda gosta de mim?”. Ivone faz espanto: “Mas claro!”. Ele insiste: “No duro? Não é mentira, não? Jura! Quero que jures!”. Mas não adiantou a mulher jurar. E, de repente, diante da esposa atônita, ele explode em soluços:

— Não acredito! Nenhuma mulher pode gostar de um barrigudo como eu! Impossível!

MARIA

Começou o inferno. Todas as manhãs, Ivone ia à praia. E, quando a via de maiô, era fatal: Wilson a crivava de indiretas. Baixava a voz, sarcástico: “Na praia, você faz comparações, faz?”. Ela não entendia: “Que comparações?”. E ele:

— Mas claro! Na praia, o que não falta são rapazes bonitos, verdadeiros Tarzãs. É ou não é? E quero saber o seguinte: quando você vê um nessas condições, você não me compara com ele? Confessa! Sim ou não?

Recuava espantada: “Deixa de criancice!”. De noite, ele não dormia. Fumando no escuro, ficava pensando nos Apolos tostados do banho de mar; e o contraste entre ele e os outros parecia-lhe uma dessas coisas atrozes. Dia após dia perseguia a esposa: “Você acha bonita minha barriga?”.

Desesperando, Ivone acabou se queixando à mãe. Wilson respeitava e ouvia muito a sogra. A santa senhora prontificou-se a ter uma conversa com o genro, em particular. Fez-lhe ver o erro. Wilson, fora de si, esbravejou:

— Vou lhe dizer mais: eu não acredito que um barrigudo como eu possa ser amado! Duvido!

A sogra protesta: “Mas assim você até ofende!”. Ele ri, sordidamente:

— Pelo contrário. Até justifico, ouviu? Justifico que sua filha não me ame. É uma questão de impossibilidade. É impossível que ela ache bonita a minha barriga: que ela goste de uma pipa, de um Chico-Bóia!

FORA DE SI

Não pensava noutra coisa. Até que, um dia, estava no portão com Ivone quando vê passar, a caminho da praia, um rapaz moreno, dos seus vinte e poucos anos.

Cutuca a mulher: “Repara nesse cara, repara!”. Ela obedece e, realmente, atenta no transeunte. Era um tipo físico que correspondia aos Apolos de praia que Wilson visionava nos seus delírios de ciumento. O sujeito passa, atlético, escultural. O marido trinca as palavras nos dentes:

— Viste que estátua? E agora responde: pode-se comparar um pançudo como eu àquele cara? Há termo de comparação, há? Fala! Ou tens medo? Por que vocês, mulheres, são tão hipócritas? Por quê?

Parou, arquejante. Durante alguns momentos, não fala. Tem o sentimento de que é o homem mais infeliz do mundo. E, súbito, com ar de louco, os olhos injetados, diz: “Eu tenho certeza, certeza absoluta, que você há de me trair um dia”.

Pausa e conclui, num soluço: “Se já não me traiu!”. Alucinada, Ivone corre para dentro de casa, chorando. Pouco depois, telefonava para o pai:

— Papai, eu acho que meu marido está louco!

FIM

Nessa noite, ele parecia tranqüilo. Mas era uma calma intensa, uma apaixonada serenidade. O casal recolheu-se na hora de sempre. Wilson deixou que a mulher dormisse. E então, quando Ivone pegou no sono, ele fez simplesmente isto: matou-a com dois tiros, quase à queima-roupa.

E, mais tarde, na delegacia, declarava:

— Mais cedo ou mais tarde eu seria traído!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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