Mostrando postagens com marcador nelson rodrigues. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador nelson rodrigues. Mostrar todas as postagens

sábado, 4 de maio de 2013

Saúde dentária


Cada um de nós é um subdesenvolvido furioso contra o subdesenvolvimento. Outro dia, fui testemunha auditiva e ocular de um episódio curiosíssimo. Era na rua Santa Luzia, esquina de México. E um idiota trepa num caixote de querosene Jacaré. Começa a fazer um comício. E que dizia ele? Falava do desenvolvimento. Imediatamente, juntou-se, ali, uma multidão de Fla-Flu.

Berrava: — "Porque o desenvolvimento, e o subdesenvolvimento, e outra vez o desenvolvimento", etc. etc. Essa música verbal fascinava a platéia. Já um amigo meu, temperamento otimista, tem uma visão menos negra da nossa miséria. Esse meu amigo viu, na TV, o Festival da Canção. Não prestou atenção, nem à música, nem à letra, nem ao canto. Estava obcecado pela saúde dentária dos intérpretes. Gemia: — "Que dentes! Que dentes!". E concluía que o nosso subdesenvolvimento é uma fraude. Se o brasileiro tem bons dentes — não é subdesenvolvido.

Mas eu falava da nossa fúria contra o subdesenvolvimento. Vejam o nosso Nordeste. A quem deve d. Hélder o seu pão de cada dia? Deve-o à fome do Nordeste. E há outros, e outros, e outros que, como o bom arcebispo, vivem e prosperam graças, ainda e sempre, à fome do Nordeste. Há mais. D. Hélder deve cada frase e cada gesto de sua retórica à bendita miséria nordestina. (Quando lá se instala uma nova fábrica ele tem urticária de ódio impotente).

Portanto, os interesses criados exigem que o Nordeste permaneça como está, rigorosamente como está. É preciso que não seja alterada uma vírgula da mortalidade infantil. O que eu queria dizer é que, em tantos casos, a raiva contra o subdesenvolvimento é profissional. Uns morrem de fome; outros vivem dela, com generosa abundância.

Todavia, existe uma paixão pior que o ódio do subdesenvolvido contra o subdesenvolvimento. Sim, há um outro tipo de ressentimento ainda mais amargo e ainda mais feroz. Refiro-me ao desenvolvido indignado contra o desenvolvimento. Aí está o exemplo dos Estados Unidos. Os Estados Unidos, além de outros méritos, puseram o homem na Lua. Devíamos dizer: — "Que país formidável!".

Outro dia, um nosso padre de passeata esbravejava no sermão: — "Paz é desenvolvimento". O sacerdote fez uma pausa, parou o gesto, arquejante da própria veemência. Repetiu, abrindo os braços: — "Paz é desenvolvimento!". Os ouvintes tremiam em cima dos sapatos. E poucos perceberam que aquilo era muito mais patético do que verdadeiro. O correto seria dizer, inversamente, que são incompatíveis a paz e o desenvolvimento.

Falei dos Estados Unidos. Se o desenvolvimento fosse a paz, o americano seria um ser paradisíaco. Tem tudo. O seu país é o mais rico do mundo. O operário vive a vida que pediu a Deus. Tem muito mais direitos do que deveres. Na guerra, os metalúrgicos tiveram o sinistro descaro de fazer uma greve. Estavam comprometendo o esforço de guerra do país; e eles, que já ganhavam bastante, queriam mais uns tostões.

Pergunto: — por que, nos Estados Unidos, é mais fácil arranjar uma girafa do que uma cozinheira? Porque, lá, a cozinheira é uma grã-fina. Boia numa banheira de leite de cabra como uma Paulina Bonaparte. E o próprio desempregado tem uma pensão suntuária. Portanto, a ser verdade o que diz o padre de passeata, o americano devia estar dando graças a Deus de ser americano. Pelo contrário.

Ainda me lembro daquele almoço de Porto Alegre. Estavam na mesa brasileiros e americanos. Um dos presentes era o nosso Sobral Pinto. E o grande Sobral começou a meter o pau nos Estados Unidos, a fazer-lhes restrições crudelíssimas. Aconteceu, então, esta coisa prodigiosa: — os americanos aderiram e malharam, também, a formidável nação. Daí a pouco, estava o Sobral a defender os Estados Unidos dos americanos.

Eis o que eu queria dizer: — o desenvolvido é um ressentido contra o desenvolvimento. Ninguém agride tanto os Estados Unidos como os próprios Estados Unidos. Há pouco tempo, passou nos cinemas de lá, em circuito normal, e, em seguida, nas TVs, um filme sobre As atrocidades americanas no Vietnã. Ora, numa guerra, todos cometem atrocidades contra todos. Seria facílimo filmar as iniquidades de parte a parte. Mas os Estados Unidos trataram de reunir uma antologia de cenas que os comprometessem ao infinito.

E o sujeito que vê tal filme imagina que só os americanos matam, só os americanos ferem, só o americano dá tiro. Por sua vez, os jornais e as agências telegráficas tratam de vender, para o mundo, uma imagem aviltada de sua pátria. Qualquer radiofoto que possa ofender o país é distribuída para o mundo inteiro. As revistas norte-americanas encomendam, no estrangeiro, artigos contra os Estados Unidos.

 Certa vez, um dos nossos intelectuais de esquerda escreveu um artigo absolutamente irracional. Lá dizia ele, mais ou menos, o seguinte: — só o americano gosta de beber, de ganhar, de matar, de roubar etc. etc. Muito bem. E o intelectual patrício mandou traduzir o artigo e o remeteu a uma grande revista dos Estados Unidos. Pela volta do correio, recebeu o cheque suntuário. E, pouco depois, via, na tal revista, seu trabalho aberto, escandalosamente, em página dupla.

Todavia, o maior enfermo do desenvolvimento americano é o estudante. O Estado lhe dá tudo para ser um gênio. É tratado a pires de leite como uma úlcera. E, no entanto, a juventude universitária é de um antiamericanismo total. Recebi, ontem, de Nova York, a carta de um amigo meu. Diz ele que, na Califórnia, os dois líderes estudantis mais agressivos são um peruano e um venezuelano.

Os desenvolvidos deixam-se manipular pelos latino-americanos. Pergunta-se: — e por que esse peruano e esse venezuelano assumem tal poder de liderança? Porque odeiam os Estados Unidos. Por isso, tantos universitários os seguem, fascinados.

Mais dramático é o nosso caso. O terrorismo instalou-se no Brasil. E os que o praticam são brasileiros que se dizem chineses. Por aí se vê que nos falta também, e por motivos diferentes, um mínimo de auto-estima. Cabe então a pergunta: — por que a China, ou Cuba, ou Rússia, e não o Brasil? Por que esses homicidas, incendiários e assaltantes precisam pôr um sotaque no próprio ódio?

Imaginem que nem os chineses entendem os chineses. O que nós chamamos China são várias Chinas. Eis um povo que não tem um idioma único e nem, ao menos, o mesmo Deus. Por enquanto, o que dá aos chineses uma certa unidade é o terror. Sabemos que o medo junta e até quando? Há de chegar um dia em que, naquele território, aparecerão vários mao tsé-tungs, várias guardas vermelhas. E recomeçará o caos da China. Velha China, de Pearl Buck.

Vi tantas vezes jovens brasileiros gritando: — "Vietnã, Vietnã, Vietnã!". Isso nas barbas da rua do Ouvidor, da rua Sete, do largo da Carioca. E se confessavam, aos berros, chineses, ou vietcongs, ou cubanos. Certa vez, condenando meus artigos, telefonou-me uma aluna da PUC. Disse o diabo e concluía: — "Sou da linha chinesa".

Ninguém é brasileiro, nem quer fazer uma revolução brasileira. Simplesmente, o Brasil não existe. E vi, em outra ocasião, uma cena que não me canso de relembrar. Numa passeata, um jovem estudante carregava um cartaz:

— "Muerte" a não sei o quê. O jovem queria matar em espanhol.


[9/10/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995. 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

O Hélio e o anti-Hélio


A história dos meus jantares e almoços com o Hélio Pellegrino não é, como pode parecer aos idiotas da objetividade, um problema de menu. (Eu devia estar aqui falando do desfecho do Festival). Mas como ia dizendo: — acima das preferências de cardápio e da voracidade dos nossos apetites, há toda uma complexa, dilacerada, conflituosa relação humana. Não sei se me entendem e tentarei explicar.

Enganam-se os que veem um só Hélio Pellegrino. São dois. Há o Hélio e o anti-Hélio. A alma do meu amigo tem sido palco de uma batalha feroz entre um e outro, entre ele e o seu oposto, entre o verdadeiro e o apócrifo.

Dirá alguém que estou apresentando a figura de um centauro. Exatamente. A metade do Hélio é o Hélio e a outra metade o anti-Hélio. Mas como o leitor é fanático da nitidez, tentarei ser mais claro. O Hélio é a pessoa e o "outro" Hélio a antipessoa. Se, apesar da minha prolixidade, ainda não me entenderam, paciência. O que chamo Hélio do puro, do legítimo, do escocês, é o que me telefonou na véspera dos meus anos.

Dias antes, eu o desafiara a jantar comigo no meu aniversário. Esse repto foi, e aqui o confesso, uma impiedade. Sim, eu sabia que estava provocando uma luta corporal entre o Hélio e o anti-Hélio, ou seja: — entre o poeta e o político. Para minha sádica satisfação, as coisas se passaram como eu previa. Os dois Hélios marcaram um encontro no terreno baldio, à meia-noite, a hora que apavora. Tratava-se de decidir se o poeta e psicanalista devia comer, ou não, um bife comigo. Como era uma rixa crudelíssima, o contra-regra do terreno baldio providenciou um mau tempo de quinto ato do Rigoletto.

Segundo a cabra vadia, única testemunha do fato, o bate-boca teve um fundo de relâmpagos de curto-circuito e de trovões de orquestra. E, como se trata de um centauro humano, as duas metades chegaram ao mesmo tempo. E não houve nem boa-noite. Começaram brigando. Ou por outra: quem brigava, e escouceava, era o anti-Hélio. O Hélio, não. O Hélio legítimo, escocês e não falsificado, é o que há de mais doce, terno, compassivo, luminoso.

Quantas vezes já o vi crispado de misericórdia como um santo. E não resisto à tentação de contar um dos seus gestos exemplares. Eis o caso: na véspera de partir para Lisboa, o Otto Lara Resende estava, na cozinha do Hélio, bebendo um copo de leite. Bebe o leite e, súbito, dá-lhe uma nostalgia total do Brasil. Começa, então, a chorar. Enquanto o anti-Hélio achava aquilo uma papagaiada, o verdadeiro Hélio chora também. Os idiotas da objetividade dirão que um chorava porque partia, e o outro chorava porque ficava. Não, não. O Hélio chorava de graça, chorava por nada. Minto. Ninguém chora por nada e repito: — chora-se por tudo. Devíamos chorar, em massa, em unanimidade, todos por todos. Mas o que importa notar é que o Hélio chora.

Dito isto, voltemos ao terreno baldio. O anti-Hélio esbravejava: — "Você não pode jantar com a besta do Nelson! É um reaça! Acredita nos Dez Mandamentos! É da Igreja velha! A favor da Virgem Maria!". E o verdadeiro Hélio: — "Mas é meu amigo! Gosto dele! Meu chapa!". Dando rútilos coices, dizia o outro: — "É a favor dos 2 mil anos da Velha Igreja e contra os quinze minutos da Nova!".

Dada a exaltação de ânimos, o contrarregra providenciou mais uma meia dúzia de relâmpagos de curto-circuito e outra de trovões de orquestra. A guerra verbal durou até às quatro da manhã. O anti-Hélio batia na mesma tecla: — "Não podes jantar com a reação! Não podes jantar com a Direita!".

Às cinco horas da manhã, o legítimo Hélio capitulou: — "Está bem. Não janto. Mas preciso telefonar. Dou uma desculpa. Afinal, gosto do Nelson, que diabo!". E assim se fez.

O telefonema que me deu o Hélio, na véspera dos meus anos, foi uma página de Os Maias. Disse-me que nada mudara; era meu amigo como nunca; e foi mais taxativo: — "Autorizo você a dizer, no seu artigo, que você continua sendo um dos meus amigos fundamentais!". Mas logo acrescentou: — "Só não posso jantar". Pigarro e ajunta: — "Tenho que ir a Teresópolis!". Eu imaginei o esforço físico que lhe custara fabricar tal viagem contra um pobre e indefeso aniversariante.

Transido de remorso, disse ainda: — "Na semana que vem jantamos juntos. Sem falta. Faço questão". E eu: — "Deus te abençoe, Hélio, Deus te abençoe".

Dia dos meus anos, todo mundo jantou comigo, menos o Hélio. Sua ausência estava sentada na minha alma. Mas, e o jantar posterior, combinado e datado por ele mesmo, com a ênfase dos compromissos fatais? Sim, o jantar mais esperado do que o Messias? Interditado pelo anti-Hélio, o meu amigo não me telefonou nem para perguntar: — "Morreste?".

Mas dizia eu que o nosso jantar não era uma questão de menu. Em verdade, seu telefonema foi um momento da consciência humana: enquanto meu obscurantismo não me proíbe de tê-lo por amigo, seu socialismo o impede de jantar comigo. E eu sou, segundo ele próprio o declara com a sua bela voz de barítono, um dos seus "amigos fundamentais".

Durante anos, os casais Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende não faltaram na minha mesa de aniversariante. Lembro-me de que, na véspera da morte de Getúlio (eu faço anos a 23 de agosto), abri a minha casa, de par em par, para recebê-los. Tudo por quê? Porque o anti-Hélio, o Hélio falsificado, não admite que eu insinue as minhas objeções ao d. Hélder e ao dr. Alceu.

Tenho uma vizinha gorda que, nos grandes impasses, costuma dizer: — "Deixa pra lá, deixa pra lá". E eu ia esquecer tudo, quando, domingo, li o artigo do meu amigo e irmão sobre Lúcio Cardoso. Ora, fui, se assim posso dizer, amigo de infância do grande romancista. E pensei, antes de começar a leitura: — "Ainda bem que o Hélio escreve sobre o Lúcio". Ora, um artigo sobre Lúcio Cardoso teria de ser sobre Lúcio Cardoso. O diabo é que o testemunho sobre o ficcionista foi escrito pelos dois Hélios e, portanto, padece de contradições e equívocos horrendos.

Começa assim: — "Lúcio Cardoso morreu no dia 23 de setembro e, na tarde desse mesmo dia, foi enterrado". As primeiras linhas são do poeta. Em seguida, vem o político, o anti-Hélio: — "Nesse dia, intelectuais, artistas, professores, sacerdotes, mães de família participavam de um ato público contra a realização da VIII Conferência de Exércitos Americanos". Só não entendi por que "mães de família" e não também "pais de família". De resto, uma mãe de família, quando em ação política, não está ali em função de sua maternidade, mas por motivos outros, políticos, ideológicos etc. etc.

"La Pasionaria" tinha uns oito filhos, mas seus partos nada tiveram a ver com o seu fervor socialista. Bem.

Eis o que eu queria perguntar: — por que falar em passeata, por que, se Lúcio Cardoso era a antipasseata, era a negação da passeata? E, de repente, comecei a rilhar os dentes, no pavor de que me saísse um súbito e aviltado Lúcio Cardoso de passeata. Tempos atrás, escrevi que a única solidão da literatura brasileira era Guimarães Rosa. Não falei de outras e totais solidões: — de Lúcio Cardoso, Octavio de Faria etc. etc.

Em dado momento, diz o artigo: "[...] capitalismo que amesquinha, degrada e coisifica o ser humano" e, portanto, "o amor humano". O articulista diz isso fremente, com o seu tão conhecido gosto pelo patético. Realmente, o capitalismo não é flor que se cheire e muito menos o socialismo que as passeatas propõem. Amigos, às vezes um pequenino, um ínfimo, um individualíssimo episódio abre uma janela para o infinito.

Vejam o nosso jantar. O capitalismo nunca me impediria de jantar com o Hélio. E o socialismo é tão assassino do amor que não o deixa comer um bife comigo, um doce e franciscano bife.

[8/10/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995. 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O falso defunto

Foi doce o meu encontro com o Varanda. Com esse nome paisagístico, ventilado, é uma grande figura. E como não nos víamos há meses e meses, houve, de parte a parte, uma festa imensa. Eu ria para ele e ele para mim, como se o amigo fosse uma figura extremamente cômica. Súbito, o Varanda pergunta:

— "Tens visto o Burlamaqui?".

Respondo:

— "Morreu".

O Varanda recua dois passos e avança outros dois. "Pálido de espanto", como no soneto, balbucia:

— "Quem morreu?".

Confirmei:

— "O Burlamaqui".

Pulou como o espectro da rosa. Agarrou-me:

— "Não é possível! Não pode ser!".

Houve, ali, dois espantos, o meu e o dele. Teimei:

— "Você não sabia? Morreu, rapaz, morreu!".

Desatinado, o outro dizia:

— "Só se morreu hoje, agora, neste momento!".

Desta feita, o assombrado fui eu. Disse-lhe:

— "Morreu há dois ou três anos. Dois. Dois, não. Três".

Esquecia-me de localizar o nosso encontro, no tempo e no espaço. Foi ontem, na esquina de Sete de Setembro com a Avenida, às quatro da tarde. Ao ouvir falar em "três anos", o Varanda perdeu de vez a paciência:

— "Estás fazendo molecagem comigo!".

Estendi a mão sobre uma Bíblia invisível:

— "Juro".

Varanda substituiu o espanto pelo furor:

— "Deixa de palhaçada!".

E eu, também exaltado, voltei à carga:

— "Rapaz! Eu fui ao enterro do Burlamaqui, mandei-lhe uma coroa, estive na missa! Está-me chamando de mentiroso?".

Em plena calçada, e aos berros, já fazíamos escândalo. Um senhor gordo, de óculos, com esparadrapo na testa, parou e ficou olhando. O Varanda estava quase chorando:

— "Pelo amor de Deus! Escuta! Estive com o Burlamaqui ontem, ontem. Sabe o que é ontem? Paguei-lhe o cafezinho. Tomou cafezinho comigo!".

Era demais. Estou repetindo:

— "Contigo, cafezinho, ontem? E não morreu?".

O Varanda estendia, as duas mãos crispadas:

— "Acredita em mim! Peço. Acredita em mim!".

E então, pela primeira vez, admiti a hipótese de um engano, sim, de um equívoco fatal. Era possível que a morte, o enterro, a missa do Burlamaqui fossem uma falsa lembrança, um sonho talvez da memória. Finalmente, capitulei:

— "Tens razão, tens razão! Eu me enganei. Não foi o Burlamaqui. Foi outro, um cara que tu não conheces".

Tive que inventar, às pressas, um defunto, que justificasse a confusão. Mas eu e ele estávamos exaustos e irritados com o equívoco. Nem o Varanda me reteve, nem eu a ele. Cada qual queria ver o outro pelas costas. E assim nos despedimos.

Pergunto: — como explicar que a memória invente uma morte, um enterro e uma missa? Só muito depois, em casa, entendi tudo.

Não há brasileiro que não tenha, entre suas relações, um "falso defunto". Não estou exagerando. "Falso defunto" é o que a gente pensa que já morreu umas cinco vezes, que já foi enterrado outras tantas. O sujeito imagina que já o viu de pés juntos e algodão nas narinas. No fim, fica provado que ninguém morreu e que se trata de uma pura e irresponsável fantasia da memória. E o Burlamaqui era, justamente, o "falso defunto". Não havia dúvida: — estaria tão vivo quanto eu e o leitor.

Vejam vocês: — no dia seguinte, estou em casa e bate o telefone. Alguém está dizendo:

— "Aqui fala a alma do Burlamaqui".

E, em seguida, veio a gargalhada, forte, tremenda, vital. E eu, rindo também:

— "Ah, como vai essa figura?".

O outro não parava:

— "Então, você me matou? Parei contigo!".

Simplesmente, o Varanda armara toda uma alegre intriga entre nós dois. Rimos muito; perguntei-lhe:

— "Que fim levaste?".

E ele:

— "Moro em Brasília. Estou passando uns dias aqui, na casa do meu cunhado".

Quando lhe perguntei "Que tal Brasília?", ele explodiu:

— "Brasília é o ouro! O ouro!".

Indaguei se ele estava bem lá. Deu uma resposta triunfal:

— "Estou com a vida que pedi a Deus. Você precisava ir pra Brasília. O Rio é uma ilusão, São Paulo outra ilusão. Vai pra Brasília!".

Por fim, marcamos um encontro para logo depois. Esquecia-me de dizer que, antes de Brasília, o Burlamaqui pagara todos os seus pecados. Conheceu a fome. Certa vez passara 48 horas sem comer e sem beber. Um dia, entrou num boteco e pediu um copo de água da bica. Foi medonho.

O garçom deu-lhe o copo e ele não bebia. Simplesmente, mastigava a água e repito: — comia a água. Em outra ocasião, Burlamaqui agarrou-me. As lágrimas caíam-lhe de quatro em quatro. Disse, baixo:

— "Me empresta um dinheiro. Não vi nem o café da manhã".

Estava lívido, febril de fome. Hoje estava feliz; e eu percebera, em tudo o que dizia, uma prosperidade insolentíssima. Quando me viu, fez a pergunta afrontosa:

— "Precisas de dinheiro? Estamos aí".

E repetia, batendo no bolso:

— "Dinheiro há, dinheiro há!".

Tal generosidade era uma maneira de se compensar de velhas e santas humilhações. Repetia (e seu olhar vazava luz):

— "O ouro está lá! Está lá!".

Apontava na direção de Brasília. Quando lhe perguntei pelo mistério, deu risada. Contou que fora para Brasília morto de fome; e, agora, tinha três empregos e era fazendeiro. No meu espanto, gemi:

— "Mas é um milagre!".

Riu, com salubérrimo descaro:

— "A autora do milagre é Brasília".

Conversamos duas horas e o assunto obrigatório foi a capital. Eu só ouvia, numa impressão profunda. E, por tudo que contava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomodações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próximo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos. Quando falei na imprensa, o Burlamaqui dava gargalhadas de se ouvir no fim da rua.

Não saía de Brasília nenhuma notícia que a pudesse comprometer. Uma universitária sofreu uma curra homicida. Nunca ninguém, na Terra, foi tão humilhada e tão ofendida. O fato chegou ao Rio por via oral. Os jornais telefonaram. Resposta das sucursais:

— "Não há nada".

E se lá aparecesse um Jack, o Estripador, ou um conde Drácula, ninguém saberia, ninguém. As sucursais continuariam falando da Arena e do MDB. E o silêncio envolve os fatos indignos como um celofane. À sombra dos egoísmos solidários, ninguém julga ninguém, ninguém acusa ninguém. E, portanto, os curradores referidos continuam maravilhosamente impunes. E o Burlamaqui me diz:

— "Houve uma passagem comigo que... Foi o seguinte: — um cara folgou comigo. Dei-lhe uns tiros. E não me aconteceu nada. Vivo lá na minha fazenda, venho só receber dos três empregos, ninguém me aborrece".

Maravilhado, repito:

— "Mas é um milagre!".

O outro ri, sórdido:

— "Mais ou menos".

Já se despedia. Mas antes de partir, ainda me disse:

— "Larga tudo, vai pra lá. Todas as cidades pecam, menos Brasília".

Respira fundo e completa:

— "Em Brasília, somos todos inocentes e somos todos cúmplices".

O automóvel estava no estacionamento. Vi o "falso defunto" embarcar no carro. Já falei na sua Mercedes? Acho que falei. Não, não. Não falei.

Pois sua Mercedes tem cascata artificial, com filhote de jacaré.

[5/10/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O massacre da "Sabiá"

Não há brasileiro, vivo ou morto, que não tenha uma vizinha gorda e, além de gorda, patusca como uma viúva machadiana. Dirão os idiotas da objetividade que vizinha é a que mora ao lado, ou defronte, ou ali na esquina ou, ainda, na mesma rua. O caso não me parece tão simples. O que eu chamo de vizinha é, antes de mais nada, um certo tipo físico, uma certa e generosa adiposidade. Dizia-me um amigo, a propósito de não sei de quem:

— "Gorda como uma vizinha".

Aí está dito tudo. E se tiver varizes, melhor. Ah, esquecia-me das brotoejas. É preciso que desponte, no seu decote, uma constelação de brotoejas. Assim é, fisicamente, a vizinha. Do ponto de vista de caráter, sentimentos e modos tem de ser patusca. Imaginem uma víbora gaiata — é a vizinha, como a imaginava o nosso Machado de Assis.

Se, por acaso, mora ao lado uma senhora esguia, de lindas maneiras e nobres sentimentos — estejamos certos de um equívoco, de uma fraude ou de uma confusão de endereço. Reside a dois passos, mas é a falsa vizinha, a antivizinha, sem nada de machadiano.

Fiz esta breve introdução para concluir: — tenho, na minha rua, uma senhora que é a vizinha perfeita, irretocável. Está sempre na janela. Eis aí um costume típico. Como se sabe, a janela foi a televisão das gerações passadas. Hoje, tudo mudou. Há pessoas que passam anos e não usam a janela nem para cuspir. Resumindo: — a janela só existe e sobrevive nas letras do Chico Buarque de Holanda.

Mas onde é que eu estava? Ah, na vizinha gorda, a quem chamam de "Moby Dick", a baleia. E a santa senhora, instalada no seu primeiro andar, toma conta de tudo e de todos. Vê quem chega, quem parte, quem namora e quem prevarica.

Ontem, ao sair de casa, quem vejo eu? A vizinha.

Quase atravessei a rua. Mas já a vizinha crispava no meu braço a sua mão pequena e voraz de gorda. Não tive outro remédio senão parar. Agrediu-me com a pergunta:

— "O que me diz do Festival?".

Não me lembro se disse "Gostei" ou "Não gostei". Agora me lembro. Minha resposta foi exatamente esta:

— "Mais ou menos".

Só. Por coincidência, também ela achara "mais ou menos". Vendo, ali, uma similitude de gosto, de sentimentos, vibrou a vizinha. Conversamos uns quinze minutos. E, por fim, quando me despedi, ela fez mistério, fez suspense. Disse, sem desfitar-me:

— "Nada como um dia depois do outro".

Aquilo ficou na minha cabeça. "Nada como um dia depois do outro." Só uma vizinha gorda diria isso. Sim, a frase era um achado de vizinha gorda, patusca e cheia de varizes. Mas como ia dizendo: — despedi-me e, em seguida, apanhei o táxi. Vim para a cidade ressoante do "Nada como um dia depois do outro". E, então, pensei no Festival.

Em São Paulo, quando se escolheu a música paulista, os fanáticos de Vandré promoviam uma apoteose para o seu ídolo e, ao mesmo tempo, massacravam a música de Caetano Veloso. E não só a massacravam, como também massacravam o autor. Se vocês assistiram ao teipe da Paulista, hão de se lembrar. Pela primeira vez viu-se uma pobre canção linchada. A canção, digo eu, e respectivo autor.

E mais: — enquanto Caetano Veloso queria cantar, a platéia — sapateando como uma espanhola — fazia um coro feroz, unânime e obsceno. Mas o artista deu-lhe o bravo troco. Chamou os jovens ululantes de "imbecis", "analfabetos", "débeis mentais" etc. etc. E disse tanto que a obscenidade emudeceu. O comportamento de tal platéia — e toda ela "festiva" — foi de uma indignidade inédita.

Vejam como cabe, aqui, o "Nada como um dia depois do outro" da minha vizinha. No Rio, novamente, apoteose para Vandré e vaia para "Sabiá". Em São Paulo, porém, o "Proibido" foi realmente proibido pela platéia, e saiu do Festival. Aqui, o vaiadíssimo "Sabiá" ganhou e vai representar o Brasil.

Mas o que ainda me assombra é o poder de promoção da "festiva". O povo acha graça e vamos e venhamos: — o simples nome de "festiva" é um apelo ao ridículo. Realmente, há o ridículo, sem prejuízo, todavia, do gênio promocional das esquerdas. O leitor não tem noção do que sejam os bastidores da glória, do sucesso, da consagração. Hoje, só se é poeta, romancista, sociólogo, crítico, cineasta, se as esquerdas o permitirem. Cabe então a pergunta: — e por quê? Vejamos.

Porque a "festiva" infiltrou-se nas redações, nas rádios, nas TVs. Há um escritor que não escreve, não lê, não pensa? Outro que é cineasta inédito? E outro ainda um romancista que não fez, nem fará jamais um romance? Como desfilam em passeatas e xingam os Estados Unidos — são grandes sociólogos, cineastas, romancistas e poetas. E há o caso de Gilberto Freyre.

As esquerdas o abominam. Por que, não se sabe, ou, por outra, sabe-se perfeitamente. Gilberto Freyre é um homem livre. Pensa, vejam vocês e pasmem: — pensa. Pois bem. Até outro dia era, na vida intelectual do Brasil, uma presença enorme, obrigatória, obsessiva. Lembro-me de que, certa vez, as grandes figuras literárias do Brasil propunham que ele fosse o nosso candidato ao prêmio Nobel. E, súbito, desaba sobre o seu nome e sua obra um vil silêncio. É solidamente ignorado pelos nossos jornais. Não há mais notícia, nem reportagem, nem crônica, nem artigo sobre Gilberto Freyre. Acabou? Morreu? Deixou de pensar, ler, escrever? Não, mil vezes não.

Simplesmente, não aceitou a pressão das esquerdas. E estas, que têm a posse de todos os meios de promoção, não falam em Gilberto Freyre, negam-lhe uma notícia de duas linhas ou uma vaga referência. Bem. Volto ao Festival.

Vejam vocês: — a "festiva", com o seu horror ao risco, não deu um tiro em 31 de março, não matou um passarinho em 1º de abril. E nem vai mover uma palha ou tirar uma cadeira do lugar. Mas só se tem talento com a sua licença. E, domingo, no Maracanãzinho, as esquerdas caíram do cavalo. Esperavam o primeiro prêmio para Vandré e quem ganhou foi "Sabiá". Entre parênteses, não nego o talento de Vandré. Sua "Marselhesa" nada tem de "Marselhesa" e, pelo contrário, soa como berceuse e o próprio autor a canta como tal.

Mas, berceuse ou "Marselhesa", há talento. E o resultado doeu na "festiva". Logo, com aquela sua coragem sem risco, saiu pelas redações, rádios e TVs. O nosso Vandré teve uma imprensa que nem Rui, nem o barão do Rio Branco, nem Santos Dumont mereceram. Mas era pouco. A glória impressa era pouco. E que fizeram elas, as esquerdas? Vejam que golpe bem imaginado. Na terça-feira, em jornais, rádios e TVs, largaram a bomba:

— Tom e Chico iam renunciar.

Nada descreve o meu espanto. O prêmio, se não me engano, é de 25 milhões. Vinte e cinco milhões — o brasileiro não é assim. Mesmo o nosso milionário não é assim. Um dia, o Walther Moreira Salles ganhou um prêmio menor no "Seu Talão". Pois meteu-se na fila e foi buscar o dinheiro. Por que, e a troco de que, Tom e Chico iam enfiar no bolso de Vandré os 25 milhões? O Chico não está presente. E, se o Tom aceitasse a coação sentimental e realmente idiota, estaria merecendo um urgente tratamento psiquiátrico.

Sim, e nós o amarraríamos num pé de mesa e lhe daríamos água numa cuia de queijo Palmira.


[3/10/1968]


Teatro Brasileiro - Nelson Rodrigues; A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues —seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Revolucionário de festival

Em 1968, "Pra não dizer que não falei das flores" era o favorito no público, mas não venceu o festival.

Repito que o grande momento do Festival foi o ódio de Geraldo Vandré. Era o talento ferido. E as vaidades do autor estavam mais eriçadas do que as cerdas bravas do javali. Pouco antes, ao executar o seu número, era o vencedor total. Vocês se lembram dos comícios do Brigadeiro. A massa gritava: — "Já ganhou, já ganhou!".

Também domingo os fiéis de Vandré berraram: — "Já ganhou, já ganhou!".

E, finalmente, quando saiu o resultado, o autor de "Caminhando" foi o maior espanto da terra. Apunhalado por um segundo lugar — um torpe segundo lugar — quase desabou, fisicamente. E, em seguida, rompeu de suas entranhas um ódio que bem merecia estar inserido nas obras completas de William Shakespeare. O leitor, que é um simples, há de pedir um sinal exterior e concreto de sua ira. Não houve tal exteriorização. O ódio de Vandré permaneceu dentro de Vandré.

Mas dizia eu, na confissão de ontem, que as caras não mentem. E a jovem cara crispada de Vandré não fazia nenhum mistério. Bem sei que, da boca para fora, ele pedia aos seus devotos: — "Aplaudam Tom e Chico, como se fosse eu!". Mas a vaia explodiu. Ou por outra: — não sei se era mesmo vaia. Hoje, o povo aplaude como se vaiasse e vaia como se aplaudisse.

Contei o caso da universitária que, em São Paulo, arrancou os sapatos e batia com os saltos um no outro. Ninguém sabe, até hoje, se estava contra ou a favor. Outros assoviam, vaiando ou aplaudindo. E há os que fazem castanholas com a boca. No Maracanãzinho, sujeitos sapateavam como bailarinas de Sevilha.

Cabe então a pergunta: — e foi mesmo injustiça?

Admitamos que sim. Faz de conta que o segundo lugar é pior do que a lanterna. E que "Sabiá" não merecia nem a lanterna. Admitamos tudo isso. Mas, se houve injustiça, Vandré deve ser festejado e não chorado. Seus partidários devem recolher todos os palavrões. E, de fato, não há nada mais promocional do que a injustiça. O "injustiçado" assume uma dimensão inesperada e gigantesca. Quando passa, é lambido com a vista. Só uma coisa me espanta: — é que não tenham carregado o Vandré na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.

Todavia, já uma dúvida se insinua no meu espírito. "Para não dizer que não falei de flores" é uma bela canção. Não há dúvida. Bela canção. Mas ainda ontem dizia-me um amigo:

— "Sou contra 'A Marselhesa'! Não topei 'A Marselhesa!'".

Custei a entender que ele falava, justamente, da música de Vandré. E, sem o saber, o meu amigo deu-me a pista exata. Era uma deslavada "Marselhesa". Agora mesmo, ao bater estas notas, vejo toda a cena. Vandré está fazendo a música do Festival. Evidentemente, quer partir para o social, o político, o épico, o homérico, ou sei lá. O Chico, ou o Tom, pode encerrar-se no lirismo íntimo. Mas um rapsodo como o Vandré sonha com a grande comunicação. E, então, quis fazer "A Marselhesa". Eis aí, em rápidas pinceladas, o que foi a concepção, o que foi a execução de sua obra. Perdeu noites, na fremente elaboração. Mas quando acabou a sua "Marselhesa" — saiu-lhe a anti-"Marselhesa". Aí está, como eu dizia, o defeito.

Lenin falou no "ópio do povo". O que o Vandré fez é o que há de mais ópio, de mais sedativo, repousante, embalador, suavíssimo. É o tipo de música que o sujeito deve ouvir na rede, abanando-se com a Revista do Rádio. Quase uma berceuse. E o próprio Vandré a canta em surdina, como se estivesse fazendo o povo dormir.

Repito que nunca se viu uma "Marselhesa" tão pouco "Marselhesa", tão anti-"Marselhesa". Dirá alguém: — "E a letra?". De fato, há a letra. Mas é óbvio que o nosso "injustiçado" fez o libreto para a ópera errada. Há, sim, entre a música e o canto, o feio e cavo abismo das incompatibilidades totais. É só prestar atenção.

Uma coisa não tem nada a ver com outra. E já me parece certo o seguinte: — a sua música é o que há de mais impróprio, de mais ineficaz para resolver as cóleras, sim, as cóleras que dormem nas entranhas populares.

Todavia, o nosso Vandré não foi um caso único. E, súbito, explode na vida brasileira uma nova figura: — o "revolucionário de Festival". Vocês entenderam? Trata-se do herói sem risco. Claro que outros países, e os outros idiomas, também o têm. Foi assim na nova e jovem "Revolução Francesa". Milhões de franceses entraram no movimento. Pois bem. E não morreu ninguém. Não houve um morto e, ouso mesmo dizê-lo, não houve um ferido. Na França, morre-se muito de atropelamento. Mas como os estudantes viraram todos os carros, a "revolução" não teve nem os atropelados dos dias úteis. Eis o óbvio ululante: — o "revolucionário de Festival" não mata, nem morre. Põe entre a sua pessoa e o perigo uma sábia distância.

Por exemplo: — o Roldão. Fez outra "Marselhesa" que se chama "América, América". Vejam vocês: — temos, ali, nas nossas barbas cínicas, Magé. Todos conhecemos Magé. Magé, repito, está diante de nós, fisicamente próxima. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Lá, de vez em quando, uma ratazana devora um recém-nascido. E vem o Roldão, com seu bigode boliviano, a falar de "América, América". Eis a verdade a um só tempo deplorável e patusca: — o "revolucionário de Festival" não toma conhecimento do Brasil.

Aqui mesmo, nesta coluna, contei um episódio que me pareceu uma obra-prima de alienação. Era uma passeata. E um rapaz empunhava este cartaz: — "Muerte" etc. etc. Adiante, outro: "Independiencia o muerte". E, de repente, graças às nossas esquerdas, o brasileiro se põe a odiar, a matar, a morrer em castelhano.

Eis a pergunta que, em casa, vendo o Festival, eu me fazia: — "Por que o nosso Roldão não vai cantar guarânia, ou bolero, ou tango?". Talvez, um dia, alguém se lembre de medir a distância que há entre as nossas esquerdas e esse pobre-diabo colossal, que é o Brasil. Ninguém apontará um "revolucionário de Festival" que mencione, ainda que de passagem, ainda que de raspão, esta mísera terra.

Vejamos o Vandré. Nem o Brasil, nem o brasileiro entram na sua berceuse.


[2/10/1968]


A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A ira de Vandré

Os que são velhos, como eu, conheceram os estertores das gerações românticas. Havia então uma permanente nostalgia do patético e do sublime. Morrer de amor, ou por amor, era uma honra; morrer simplesmente, sem amor, nem ódio, morrer de paratifo ou até de asma, era outra honra. E quando passava um enterro de virgem, com o caixão de arminho, as mocinhas dos sobrados invejavam a morta e gostariam de estar no imaculado caixão. Bom tempo, em que a morte era mais promocional do que a vida.

Mas quem conta episódios admiráveis da vida romântica é o Eça. Num dos seus livros, não sei se Os Maias, há uma cena deliciosa. Imaginem um rapaz vestido de negro e pálido como um santo. É uma festa. Ele está, na janela, maravilhosamente só. E ali, olhando a noite, que já vai para a madrugada, cheira uma flor, talvez camélia. Muito olhado pelas damas, exalava uma nobre e inconsolável melancolia. E, súbito, vem a dona da casa e pergunta:

— "Não dança?".

O rapaz ergue a fronte diáfana e responde:

— "Como posso eu dançar, se a Polônia sofre?".

Nesse rapaz que, junto à janela, beija uma camélia; e não pode sorrir porque a Polônia sofre, nesse rapaz está todo um Portugal, toda uma Europa. Outro que tem o mesmo valor social, humano, histórico, é o nosso Geraldo Vandré.

Quem não o conhece? Com o seu sucesso no Festival da Canção, o nosso Vandré tornou-se uma súbita figura nacional. Abram os jornais, as revistas, ouçam os rádios, vejam as TVs. A fulminante celebridade de Vandré é de uma evidência estarrecedora. E mais: — de domingo para cá, sempre que três brasileiros se juntam, o assunto obrigatório, fatal, é a vil injustiça que lhe fizeram.

Vandré concorria ao Festival com a sua "Pra não dizer que não falei de flores". Segundo se diz, ele devia tirar o primeiro lugar. Vai o júri e dá-lhe um mísero e franciscano segundo lugar. Antes, porém, de passar no Maracanãzinho, preciso dizer quem é e como é Vandré. Vamos lá.

Dias atrás, um amigo meu cruza com o compositor e diz-lhe:

— "Boa noite".

Ora, a um cumprimento responde-se com outro cumprimento. É o mínimo e o máximo que se pode fazer. O Vandré, porém, está bem acima de um automatismo tão crasso e tão ignaro. Assim saudado, ele se arremessa para o meu amigo, como se fosse agredi-lo. Agarra-o pelos dois braços, sacode-o; diz-lhe, embargado:

— "Como pode você me dar boa-noite se o mundo está em guerra?".

O outro tomou o maior susto:

— "Eu não tive intenção! Eu não tive intenção!".

E, realmente, o meu amigo não tivera nenhuma intenção, senão a de lhe dar boa-noite. E o Vandré, em arrancos:

— "Você não vê que estão morrendo no Vietnã?".

O autor do imprudente "boa-noite" quase correu, fisicamente, do Vandré.

Pode parecer talvez que eu esteja fazendo um exagero caricatural. Por sua vez, os idiotas da objetividade dirão que o Vietnã está lá e o compositor aqui. Mas saibam que, no caso do Vandré, a distância não influi nas leis da emoção ou da indignação. Ele reage como se o Vietnã fosse ali na esquina; e como se o chão que ele pisa estivesse juncado de vietcongs defuntos.

Narrei o episódio para caracterizar o artista: — será nosso contemporâneo apenas nos ternos, gravatas e sapatos; mas por dentro tem a estrutura das gerações românticas. Já os familiares e conhecidos evitam cumprimentá-lo, porque o Vietnã sofre. Dito isto, passo ao Maracanãzinho.

Domingo, ia ser escolhida a música brasileira para o Festival Internacional da Canção. Não sei por que, meteu-se na cabeça de muitos, inclusive do próprio Vandré, que sua letra e sua música iam ser as ganhadoras fatais.

Vocês entendem a minha perplexidade? Informa o senso comum que qualquer competição, seja o prêmio Nobel ou de cuspe à distância, tem os seus imponderáveis. A começar pelos juizes. São quinze sujeitos e temos de admitir a "verdade de cada um", verdade que foi, como se sabe, o ganha-pão de Pirandello. Todavia, Vandré e seus partidários, que eram numerosos e ululantes,
estavam maravilhosamente certos da vitória.

Daí a crudelíssima desilusão. Os jurados preferiram "Sabiá", de Chico e Tom. Ao nosso Vandré coube o segundo lugar. Outro qualquer estaria soltando os foguetes da vaidade, e telefonando para casa:

— "Tirei o segundo lugar! Tirei o segundo lugar!".

Seria uma glória para a família, para a namorada etc. etc. Mas Vandré não tem as reações de qualquer um. Assim como não admite que o cumprimentem, também não aceita um reles segundo lugar. O resultado doeu-lhe, fisicamente, como uma nevralgia. Estava falsamente derrotado. Na verdade, merecera uma colocação nobilíssima. Não tinha que sofrer como se o segundo lugar fosse a mais hedionda das lanternas.

Os que estavam lá, no Maracanãzinho, viram muito pouco. Havia entre a platéia e o palco uma deplorável distância visual. Ao passo que o vídeo amplia a cara, o gesto, o espanto. Eu, em casa, com a televisão ligada, vi tudo e com prodigiosa nitidez. E, sobretudo, vi a bela, forte, crispada e jovem cara de Vandré. Ele acabara de saber que era, apenas e miseravelmente, o segundo colocado. Os presentes não puderam sentir o seu patético, mas o telespectador, sim.

Para nós, de casa, a cara de Vandré tomou a expressão cruel, vingativa, de certas máscaras cesarianas. Lia-se tudo na jovem cara. Houve um momento em que, instigado pelos seus fiéis, Vandré perguntou, de si para si:

— "Abro ou não o verbo?".

Seria o comício. Nas velhas gerações, o brasileiro tinha sempre um soneto no bolso. Mas os tempos parnasianos já passaram. Hoje, ferozmente politizado, ele tem sempre, à mão, um comício. Outrora soneto, hoje comício. Eis a perplexidade que o telespectador percebia, com perfeita visibilidade: — por um lado, o comício fascinava Vandré como um abismo; por outro
lado, era amigo do Chico e do Tom.

Mas eis o que eu queria dizer: — um concorrente frustrado só devia aparecer de máscara, como nos vel hos carnavais. Apenas o primeiro colocado teria o direito de fotografar-se de rosto nu. Então o Vandré cometeu o erro de saudar os concorrentes vitoriosos. Só ele e Deus sabem o esforço braçal que lhe custou essa concessão às boas maneiras.

Mas um artista não pode ser convencional. Sei que, por um instante, quase partiu para o comício. Foi quando começou:

— "Nem tudo é festival!".

Disse isso e não foi além. Assim traiu a própria ira, traiu o próprio ressentimento. Ninguém pôs uma máscara compassiva no ódio tão forte, ingênuo e impotente.

Outro momento inesquecível: — a cara de Tom Jobim.

Ao saber-se premiado teve espasmos triunfais de víbora moribunda. Somos uma pátria de cavas depressões; e a cara de Tom Jobim, na vitória, devia ser exibida por todo o Brasil.

Como é trágica a euforia do subdesenvolvido premiado. O nosso Tom foi aos Estados Unidos, fez músicas para Sinatra, é uma glória internacional. Só faltou atirar beijos como uma menina de préstito carnavalesco. Um americano embolsa um prêmio com um tédio sarcástico. O francês recebe um favor como se estivesse fazendo um favor ao favor.

E o nosso Tom, ao impacto do triunfo, quase foi para a tenda de oxigênio.

[1/10/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:

domingo, 20 de janeiro de 2013

Herói e mártir

Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismo presente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa capa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando uma imagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capas de Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, o único plebeu da festa.

E, súbito, passou por mim um colar de brilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbrado nato pelas jóias caras. E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás.

Mas, se me perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido, não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, diante da jóia. Ele, multimilionário, era como que um contínuo dos brilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles (2).

Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço das coisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço uma fortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — "Aquele colar custou trinta segundos da festa do Patino".

Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã.

O pretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E, depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, em arroubos: — "Que diálogo! Que diálogo!".

Houve um momento em que parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se contentar com os brilhantes, a mulher também queria ser inteligente, e dizia: — "A mulher brasileira não chega aos pés da francesa". O culpado do colar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi.

E a mulher, com um frêmito nos brilhantes e no decote: — "o Brasil é um país de quinta ordem". E, então, o marido, obeso como um Nero de Hollywood, faz esta síntese crudelíssima: — "O brasileiro não sabe fazer uma frase".

A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria a nossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classe conseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vim pensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outra pátria seria a França.

Quando o táxi passou pelo relógio da Glória, eu pensava em D'Annunzio e na sua prodigiosa magia verbal. Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Os despeitados, que sempre os há, perguntavam: — "Por quê? Por quê?". Fisicamente, D'Annunzio era o antifauno — pequenino, de barbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia onde acabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou em qualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só uma senhora resistiu à frase de D'Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe um soneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.

Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gênio verbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o que eu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês não sabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto é apenas o reforço plástico da frase.

Vejam a última "Revolução Francesa". Evidentemente, ninguém queria cortar a cabeça de ninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas os revolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia de frases. Uma delas, que está rolando por todos os idiomas, é a já insuportável "É proibido proibir". Essa frase já foi bonita. Mas, pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-se de um tédio auditivo hediondo.

Logo se viu, porém, que era uma reles pose verbal da massa francesa. "É proibido proibir", mas os seus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e as modernas, por serem modernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, o vento da "jovem irracionalidade" varreu a França.

Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será que elas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro "não sabe fazer uma frase". Dirá um patriota de penacho: — "Mas é injusto! Injusto!". Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez seja uma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazem desconfiar de nossa potência verbal.

Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lhe acrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vocês se Pedro I, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. O gesto mudo significaria mais cem anos de colônia.

Todavia não precisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquíssimo tempo houve aqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossas elites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervir na vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre o milagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, não em poltronas, não em sofás, não em divãs. Não. Tal não fariam as nossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentos anos de ociosidade, de praia, de Antonio's — elas saíram para descansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão, no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.

E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir que devem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Mas qualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase correspondente. Foi o que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história. Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como parecia, de uma inveracidade total. O brasileiro sente como ninguém. Na hora da frase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.

Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o "É proibido proibir". Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela sua integridade autoral. Não há um verso que não seja dele, dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a letra de um centauro de artista e de herói.

Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil houve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera.

É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.

(2) Personagem criado por E. W. Hornung, Raffles é um aristocrata inglês arruinado que, para manter-se condizente com a sua condição social, torna-se um sofisticado ladrão. [Nota Guinefort]
[28/9/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O único De Gaulle

Uma das maiores festas populares do velho Rio era o "grande enterro". Não sei se me faço entender. Falo de uma cidade ou de um Brasil que passou até o último vestígio. Era ainda o tempo do barão do Rio Branco, de Pinheiro Machado, de Oswaldo Cruz, Patrocínio, Rui (digo os nomes, ao acaso, sem nenhuma cronologia). E, quando morria um dos citados, a cidade vinha, radiante, enterrar o "grande homem".

Claro que ninguém chorava o defunto oficial. E, por todo o itinerário fúnebre, ou falsamente fúnebre, havia uma euforia louca. Os moleques, trepados nos postes e nas árvores, avisavam: — "Evém! Evém!".

Mas eu disse que ninguém chorava o "grande homem" e já retifico: — as velhinhas choravam, sim, o cadáver monumental. Foi assim quando morreu o barão do Rio Branco.

Naquela época, ainda tínhamos o instrumento da reverência, que era o chapéu. Podia ser um enterro de quinta classe. E cada qual se descobria diante da morte. Ninguém morria sem que toda uma cidade o cumprimentasse.

Mas eu estava falando de que mesmo? Ah, de Rio Branco. Segundo se afirma, foi o maior enterro do Brasil, em qualquer tempo. O velho barão era o "grande homem" até fisicamente. Bem me lembro de que, na minha infância, o que mais me fascinava em Rio Branco era a barriga. Hoje, temos um preconceito cardíaco, não sei se justo ou iníquo, contra o barrigudo. Os clínicos costumam fazer a restrição pressaga: — "Você está muito gordo".

No velho Rio, porém, a barriga era um mérito a mais do ministro, do homem de Estado, do senador. E, naquele dia, ninguém ficou em casa, ninguém, e só as velhinhas choravam. O resto exultava com a mise-en-scène funeral. Mas eis o que eu queria dizer: — hoje, seria talvez impossível um enterro parecido. Cabe então a pergunta: — e por quê?

Vejamos. Outro dia fui a um sarau de grã-finos na Lagoa. Houve um momento em que faltou assunto. E, então, alguém falou, precisamente, dos velhos enterros do Brasil.

Citou os do Barão, de Rui, de Pinheiro Machado etc. etc. Havia lá um escultor português. Este gostaria de ter assistido aos funerais de Inês de Castro. A dona da casa (bonita demais para ser feliz) confessou que não vira, jamais, um "grande enterro".

Em seguida, alguém propôs uma revisão dos nossos "grandes homens". Houve a dúvida: — "Vivos ou mortos?".

Convencionou-se que só interessavam os vivos. E começou uma busca frenética. No fim de uma hora os nomes lembrados dariam para encher uma lista telefônica. E começou um processo de angústia. Mais um pouco e se insinuou a dúvida: — "Será que, no Brasil, ninguém é grande homem?". Até que, cerca das quatro da manhã, chegou-se à síntese desesperadora: — não temos o grande enterro porque nos falta o grande morto. O anfitrião repetia, vagamente humilhado: — "O Brasil não tem um grande homem para
enterrar".

Saímos já ao amanhecer. Vim, com mais dois ou três, numa carona amiga. O dono do carro ainda gemia, numa irada frustração: — "É impossível que o Brasil não tenha um grande homem". Nenhum povo pode viver sem o grande homem. Um outro sugeriu a hipótese consoladora: — "Quem sabe se não há, por aí, um gênio inédito?". Protesto do dono da carona: — "A primeira virtude do grande homem é não ser inédito".

Quando saltei do carro, na porta de casa, já tínhamos renunciado ao grande homem brasileiro. E, agora mesmo, ao bater estas notas, estou com o problema na cabeça. Lembro-me então de uma das recentes passeatas, justamente a mais concorrida, a dos "100 mil".

Estavam, ali, eretas as nossas elites. Eram estudantes, poetas, romancistas, professores, sacerdotes, arquitetos, médicos, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, cineastas.

Do alto de uma sacada, um observador podia imaginar: — "São os que pensam". E, de fato, era o Brasil pensante que desfilava. Pasmado, cochichei para o meu companheiro Raul Brandão, o pintor das igrejas e das grã-finas: — "Vai haver o  O meu raciocínio era justo. Cem mil brasileiros não se juntam para nada. Imaginei que ia começar, ali, a "Grande Revolução".

Até que se ouviu a palavra de ordem: — "Vamos sentar". A docilidade foi total. E as nossas elites sentadas eram de um efeito plástico inesquecível. E, depois, veio a ordem inversa: — "Levantar". Tal e qual no anúncio do "senta e levanta". Ninguém queria tomar o poder, absolutamente. Uma vez que se tinham sentado e levantado, os 100 mil se deram por satisfeitos e cada qual foi para casa.

Se os que pensam agem e reagem assim, que dizer dos que não pensam? Sim, que dizer do pobre-diabo, do homem de rua, do pé-rapado, do sujeito mais obscuro do que um cachorro atropelado?

Finda a passeata das elites, o Raul Brandão esbravejou: — "O importante, no Brasil, não é o grande homem, mas, inversamente, o pobre-diabo, o homem comum, o torcedor do Flamengo, o analfabeto". Arquejava de uma fúria sagrada contra as elites.

Eis o que eu gostaria de dizer: — passou a época do grande homem, e não só no Brasil. Também no mundo. Recentemente, vimos a nova "Revolução Francesa". Os estudantes viravam a pátria de pernas para o ar; e, logo, 12 milhões de operários entraram em
greve.

Estudantes chamavam De Gaulle de "o assassino". O poder estava indefeso. Mas ninguém o tomou, ninguém. E por quê? Simplesmente porque, entre milhões, não havia um único e escasso grande homem. A França teve que se atirar, outra vez, nos braços de De Gaulle. Sim, o velho De Gaulle, único grande homem francês.

Na minha mesa está uma revista de Paris. E, lá, vem um artigo confessional de Jean-Louis Barrault. Já falei, aqui, da sua "morte". Durante a "jovem revolução", o famoso ator, com um oportunismo muito pusilânime, tratou de adular a massa estudantil. O teatro Odeon, que ele dirigia, estava ocupado pelos jovens. E, então, Barrault subiu ao palco. Foi patético. Declarou que, a partir daquele momento, deixava de ser Barrault. De fronte alçada, completou: — "Barrault morreu". Saiu dali e foi comer um bom bife na esquina.

Quinze dias depois, não havia mais greve, não havia mais nada. Barrault, falso grande ator, falso grande homem, teve o seu prêmio. Um outro intelectual, André Malraux, o chamou e deve ter dito mais ou menos isto: — "Rua! Rua!". E o artigo do  "morto" vem plangente de uma funda e inconsolável nostalgia do salário.

Seja como for, a "jovem revolução" ensinou-nos que a França é uma paisagem sem franceses ou, por outra, é a paisagem de um único francês: — Charles de Gaulle.

[27/9/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Os centauros

Caetano Veloso no Festival Internacional da Canção - São Paulo - 1968

Fala-se em "Poder Jovem", na "Jovem Revolução" e um padre de passeata, em seu veemente sermão, chamou Nossa Senhora de "a mãe do Jovem Salvador". Vejam: — é tão importante ser jovem que já se providenciou uma idade promocional para Jesus. Há também os que proclamam a razão da idade. Nada tenho a objetar. Que seja dado o poder aos jovens, e que eles o exerçam, e que façam o mundo à sua imagem e semelhança.

A meu ver, porém, chegou a hora de se falar também da "jovem obtusidade". Que ela existe como uma realidade concreta, que se pode apalpar, farejar, não há dúvida. Basta olhar e faremos a singela, a tranqüila constatação visual. Se me pedirem fatos, eu direi: — "Vamos aos fatos".

Sábado, fiquei em casa. Fazia um frio cadavérico. Tenho um amigo que se refere ao frio em termos de "julgamento moral". Quando a aragem vai gelando os edifícios e as esquinas, ele põe-se a esbravejar:

— "Ah, frio canalha! Ah, frio indecente!".

Para a sua indignação, o frio era "torpe", era "obsceno", era "sórdido".

Sábado, tive também vontade de xingar o frio dessa forma direta, pessoal e crudelíssima. Fiquei vendo televisão, com três suéteres. Ia passar o teipe do Festival da Canção. Não sei se não teria preferido um bangue-bangue.

Mas, vamos lá. Começa o festival com uma panorâmica da platéia. Verificou-se, ao primeiro olhar, que todo mundo lá era jovem. Só rapazes, só mocinhas. É apavorante. No passado ocorria o inverso: — o Brasil era uma paisagem de velhos. Nos bondes, só os velhos vinham sentados; os jovens ficavam de fora, pendurados no balaústre. E as senhoras grávidas pediam para o filho já nascer setuagenário e de guarda-chuva, como o personagem de Gogol.

Hoje, o velho tem vergonha de o ser. O padre de passeata precisa fazer uma plástica em Jesus e remoçá-lo (talvez assim o Salvador se salve, sobreviva etc. etc.). Mas, como ia dizendo: — não havia na platéia um sujeito de meia-idade, uma viúva, ou, como quer a gíria perversa, um coroa. Uma platéia sem coroa e ocupada por uma mocidade ululante e salubérrima. Imaginei que estaria, ali, a melhor juventude paulista.

E era de um óbvio escandaloso a politização dos presentes. Sempre que uma letra fazia uma insinuação política, ou tinha um arroubo ideológico, ou rosnava para os Estados Unidos — a audiência vinha abaixo. Que pasionarias eram as meninas! Lembro-me de uma que assim se manifestava: — tirando os sapatos e batendo com os saltos, um no outro. Ninguém sabia se estava aplaudindo ou vaiando.

Ah, os rapazes, os rapazes! Cavalgavam as cadeiras e atiravam patadas como rútilos centauros.

Mas todas essas impressões paisagísticas são secundárias, irrelevantes. De um altíssimo patético foi a aparição do sr. Caetano Veloso. Ah, esquecia-me de Vandré. Seus versos tinham o seguinte título, de uma malícia ou, melhor dizendo, de uma ironia finíssima: — "Pra não dizer que não falei de flores". E, realmente, para nosso pasmo, ele faz um artigo de fundo contra as flores. Até hoje ainda não sei o que é que o nosso libertário propõe.

Vejamos algumas hipóteses: — quererá ele dizer que a "Grande Revolução" vai acabar com as flores? Ou que só a burguesia mais reacionária aprecia as rosas e, por carambola, a beleza? E que o revolucionário é tão obtuso, tão bestial, tão abjeto que não pode ver uma flor sem chutá-la?

Sim, há várias metáforas no editorial do Vandré e todas absolutamente inescrutáveis. Só uma coisa é certa: — sem que o próprio autor o perceba, tais metáforas são absolutamente contra-revolucionárias.

Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia.

A menina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, em delírio. Mas era um concorrente que vinha, ali, cantar; simplesmente cantar.

Mas os jovens centauros não deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velha solenidade nazista: — a queima de livros. Imaginei que, a qualquer momento, a guarda vermelha ia subir ao palco para queimar o próprio Caetano Veloso. Não me admiraria nada que, no futuro, os nossos jovens socialistas queimem poetas no meio da rua.

Mas estou aqui fazendo uma defesa inútil de Caetano Veloso. Ninguém reage melhor do que ele mesmo. Quis cantar e esmagaram seu canto. A massa coral repetia, em furiosa cadência, uma obscenidade espantosa. Era o massacre de um artista, um desesperado artista que se propunha a cantar o "É proibido proibir".

A canção era a flor que o nosso Vandré quer expulsar do seu horrendo paraíso socialista. Já nenhum telespectador suportava mais a humilhação, que se transferia para as casas. (E a jovem massa insistia no refrão torpe).

Súbito, os brios de Caetano Veloso se eriçaram mais que as cerdas bravas do javali. Ele começou a falar. Era um contra 1500. E um que dizia a sua feroz mensagem nos trajes mais impróprios para o seu rompante.

Sim, estava de peruca, plumas, batom, salto alto etc. E disse as verdades que estavam mudas, sim, as verdades que precisavam ser ditas — urgentes, inadiáveis e santas verdades. Ainda bem que milhões de telespectadores as ouviram. Se bem me lembro, eis as suas palavras:

— "É isso a juventude? E vocês são políticos? Querem o poder! Vocês não sabem nada, não entendem nada! Analfabetos em política e arte! Se entendem de política como entendem de música, desgraçado Brasil!".

Não me lembro de tudo. Houve um momento em que Caetano Veloso comparou, e com exemplar justiça, as duas vergonhas: — a vaia obscena e a invasão do Teatro Ruth Escobar.

Naquela ocasião, depois do espetáculo de Roda viva, uns quarenta bandidos espancaram o elenco. Havia uma atriz grávida, que gritou: — "Estou grávida!". Levou um chute na barriga. Foi pisada como uma flor do nosso Vandré.

E dizia Caetano Veloso:

— "Vocês não são melhores! São iguaizinhos!".

Os idiotas da objetividade hão de perguntar:

— "E a peruca? E as plumas? E o batom? E o salto alto?".

Eu responderia que qualquer um pode ter uma indignação à Zola. Quando morreu o autor de Germinal, disse alguém, à beira do túmulo:

— "Zola foi um momento da consciência humana".

No teipe de sábado tivemos, pela fúria de Caetano Veloso, um momento da consciência brasileira. E vimos como a sua implacável lucidez acuou e bateu a "jovem obtusidade".

[26/9/1968]


A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

El arzobispo de la revolución

Quando era crítico teatral, Paulo Francis disse certa vez: — "O hospital é mais importante do que o teatro". Não me lembro se escreveu exatamente assim, mas o sentido era este. E o articulista tinha a ênfase, a certeza de quem anuncia uma verdade inapelável e eterna.

Ao acabar o texto, voltei à frase e a reli: — "O hospital é mais importante do que o teatro".

Fiz para mim mesmo a pergunta: — "Será?".

Já me pareceu imprudente que se comparassem funções e finalidades diferentes. Para que serve um teatro e para que serve um hospital? Por outro lado, não vejo como um crítico de teatro, no gozo de plena saúde, possa preferir uma boa rede hospitalar às obras completas de William Shakespeare.

De mais a mais, o teatro era, na pior das hipóteses, o seu ganha-pão. Imaginem um médico que, de repente, no meio de uma operação, começasse a berrar: — "Viva o teatro e abaixo o hospital!".

A mim, parecem gêmeas as duas contradições: — de um lado, o crítico que prefere o hospital; de outro lado, o cirurgião que prefere o teatro. É óbvio que a importância das coisas depende de nós.

Se somos doentes, o hospital está acima de tudo e de todos; caso contrário, um filme de mocinho, ou uma Vida de Cristo ali no República, ou uma burleta de Freire Júnior, é uma delícia total. Mas volto ao Paulo Francis.

Alguém que lesse o artigo citado havia de pensar: — "Bem. Esse crítico deve estar no fundo da cama, moribundo, já com a dispnéia pré-agônica. E, por isso, prefere o hospital". Engano. Repito que, ao escrever aquilo, Paulo Francis nadava em saúde. E por que o disse?

O leitor, em sua espessa ingenuidade, não imagina, como nós, intelectuais, precisamos de poses. Cada frase nossa, ou gesto, ou palavrão é uma pose e, diria mesmo, um quadro plástico.

Ah,as nossas posturas ideológicas, literárias, éticas etc. etc. Agimos e reagimos de acordo com os fatos do mundo. Se há o Vietnã nós somos vietcongs; mas se a Rússia invade a Tchecoslováquia, vestimos a pose tcheca mais agressiva. E as variações do nosso histrionismo chegam ao infinito.

Imagino que, ao desdenhar do teatro, o Paulo estivesse fazendo apenas uma pose.

Bem. Fiz as divagações acima para chegar ao nosso d. Hélder. Está aqui na minha mesa um jornal colombiano. É um tablóide que... Um momento. Antes de prosseguir, preciso dizer duas palavras.

Domingo, na TV Globo, o Augusto Melo Pinto chamou-me num canto e cochichou:

— "Você precisa parar com o d. Hélder".

Faço um espanto: — "Por quê?".

E ele: — "Você está insistindo demais". Pausa e completa: — "Você acaba fazendo de d. Hélder uma vítima".

Disse-lhe da boca para fora: — "Você tem razão, Gugu". E paramos por aí. Mas eis a verdade: — o meu amigo não tem nenhuma razão. Gugu inverte as posições. Se há uma vítima, entre mim e d. Hélder, sou eu.

Outrora, Victor Hugo vivia bramando: — "Ele! Sempre ele!". Falava de Napoleão, o Grande, que não lhe saía da cabeça. Com todo o universo nas suas barbas a inspirá-lo, Hugo só via na sua frente o imperador. Bem sei que não sou Hugo, nem d. Hélder, Bonaparte. Mas eu podia gemer como o autor de Os miseráveis: — "Ele! Sempre ele!". Realmente, sou um território solidamente ocupado pelo querido padre.

Dia após dia, noite após noite, ele obstrui, engarrafa todos os meus caminhos de cronista. É, sem nenhum favor, uma presença obsessiva, sim, uma presença devoradora.

Ainda ontem, aconteceu-me uma impressionante. Tarde da noite, estava eu acordado. Ai de mim, ai de mim! Sofro de insônias. Graças a Deus, me dou bem com as minhas insônias e repito: — nós nos suportamos com uma paciência recíproca e quase doce. Mas não conseguia dormir e levantei-me. Fui procurar uma leitura. Procura daqui, dali e acabei apanhando um número de Manchete.

E quem havia de brotar, da imagem e do texto? O nosso arcebispo. Quatro páginas de d. Hélder! E, súbito, minha insônia foi ocupada pela sua figura e pela sua mensagem. Primeiro, entretive-me em vê-lo; em seguida passei à leitura. E há um momento em que o arcebispo diz, por outras palavras, o seguinte: — o mundo pensa que o importante é uma possível guerra entre Leste e Oeste. E d. Hélder acha uma graça compassiva em nossa infinita obtusidade.

Se a Rússia e os Estados Unidos se engalfinharem; se as bombas de cobalto caírem nos nossos telhados ou, diretamente, em nossas cabeças; se a OTAN começar a disparar foguetes como um Tom Mix atômico — ninguém se assuste. O perigo não está aí. Não. O perigo está no subdesenvolvimento.

Leio a fala de d. Hélder e a releio. Eis a minha impressão: — esse desdém pelas armas atômicas não me parece original. Sim, não me parece inédito.

E, súbito, um nome e, mais do que um nome, uma barriga me ocorre: — Mao Tsé-tung. Certa vez, Mao Tsé-tung chamou liricamente a bomba atômica de "tigre de papel". Foi uma imagem engenhosa e até delicada. E vem d. Hélder e, pela Manchete, diz, por outras palavras, a mesmíssima coisa.

O homem pode esquecer o seu pueril terror atômico. Quem o diz é o arcebispo e ele sabe o que diz.

Mas objetará o leitor: — e aquela ilha em que a criança é cancerosa antes de nascer? Exato, exato. Vejam bem o milagre: — ainda não nasceu e já tem o câncer. O leitor, que é um piegas, perguntará por essas crianças. Mas ninguém se aflija, ninguém se preocupe. A guerra nuclear não importa.

Eis o que eu não disse ao Gugu: — como esquecer uma figura que diz coisas tão corajosas, inteligentes, exatas, coisas que só ele, ou Mao Tsé-tung, ousaria dizer? Sabemos que o ser humano não diz tudo.

Jorge Amado tem uma personagem que vive puxando barbantes imaginários que a enrolam. Os nossos limites morais, espirituais, humanos, ou que outro nome tenham, os nossos limites são esses barbantes. Há coisas que o homem não diz, e há coisas que o homem não faz. Mas deixemos os atos e fiquemos nas palavras. O que me espanta é a coragem que leva d. Hélder a dizer tanto. Há um élan demoníaco nessa capacidade de falar demais. Continuemos, continuemos.

No dia seguinte, veio o "Marinheiro Sueco" trazer-me, em mão, um jornal colombiano. E, novamente, agora em castelhano, aparecia d. Hélder. Ele começava na manchete: — "EL ARZOBISPO DE LA REVOLUCIÓN". Em seguida, outra manchete, com a declaração do arzobispo: — "ES MÁS IMPORTANTE FORMAR UN SINDICATO DO QUE CONSTRUIR UN TEMPLO".

Eis o que eu gostaria de notar: — na "Grande Revolução", os russos substituíam, nos vitrais, o rosto da Virgem Maria por um focinho de vaca. Jesus tinha a cara de boi, com as ventas enormes. Mas a "Grande Revolução" se fez contra Deus, contra a Virgem, contra o Sobrenatural etc. etc. e, como se verificaria em seguida, contra o Homem. Portanto, ela podia incluir Jesus, os santos, num elenco misto de bois e vacas.

Mas um católico não pode agredir a Igreja com esta manchete: — "Es Más Importante Formar un Sindicato que Construir un Templo". E se o nosso Hélder o diz, estejamos certos:

— é um ex-católico e, pior, um anticatólico.

[25/9/1968] 
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O espantoso silêncio

Hoje, a praça de São Marcos tem mais turista americano do que pombo. E muitos, inadvertidamente, dão milho aos americanos e deixam os pombos a ver navios.

Graças a Deus, a nossa Cinelândia ainda não foi invadida pelos nossos irmãos do Norte. De sorte que, lá, os pombos ainda constituem uma sólida maioria. Diria mesmo que a Cinelândia tem mais pombos do que o soneto de Raimundo Correia. E são tão mansos, de uma tal docilidade, que parecem amestrados.

Todas as manhãs e todas as tardes vem uma mão anônima e amorosa dar-lhes milho. O que então acontece é uma espécie de milagre, de suave milagre. Às centenas, aos milhares, sei lá, descem pombos de não sei que misteriosos telhados, de que encantados beirais. É lindo vê-los dando pulinhos e bicando o milho.

Mas não é bem isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que os pombos da Cinelândia devem ter visto coisas do arco da velha. Temos três locais altamente politizados: — o largo de São Francisco, o largo da Carioca e a Cinelândia. Os dois primeiros ainda estão ressoantes de velhos comícios espectrais. Em especial, o largo de São Francisco.

Certamente, vocês já ouviram falar na "Primavera de sangue". Foi metáfora e foi manchete. Mas vamos aos fatos.

Há uns quarenta anos, ou cinqüenta, os estudantes resolveram fazer o enterro simbólico do então chefe de Polícia. Foi proibida a passeata ou por outra: — não foi proibida. O chefe de Polícia autorizou-a. E, então, os estudantes concentraram-se, exatamente, no largo de São Francisco. Lá estavam o caixão, as velas acesas, com os estudantes chorando falsamente o pseudo-defunto. Quando, porém, saiu o enterro, três ou quatro policiais, à paisana, infiltrados na massa, esfaquearam e mataram dois estudantes.

Um dos repórteres presentes dispara para a redação. Lá chegando deu à luz a metáfora:

— "Primavera de sangue".

O diretor do jornal, num arroubo perdulário, puxou uma cédula e a enfiou na mão do estilista. No dia seguinte, a manchete sangrava no alto da primeira página. A metáfora quase pôs abaixo o governo. E, até hoje, há sempre um velho profissional, que se lembra da "Primavera de sangue".

Também na Cinelândia houve memoráveis explosões cívicas. E os pombos de lá, como uma alada platéia, a tudo assistiam, arrulhando os seus aplausos e as suas vaias. E, se um deles tivesse de redigir suas memórias, havia de conceder um especial destaque ao comício da escola de belas-artes.

Trata-se de um episódio que, na época, encheu a cidade de um divertido horror.

Eis o caso: — certo dia, os pombos da Cinelândia foram surpreendidos por uns trinta ou quarenta rapazes. Num golpe de mão, os jovens ocuparam as escadarias do Municipal. Os pombos imaginaram que a rapaziada ia falar do Vietnã, o assunto da moda. Engano. Simplesmente, estavam ali para um comício de um tipo jamais suspeitado. Ninguém xingou os Estados Unidos. O primeiro orador anunciou a morte da palavra. O segundo também anunciou a morte da palavra. E assim o terceiro, o quarto, o quinto oradores. Como fizeram cinco discursos e todos vociferando a mesma coisa, pode-se dizer que a palavra morreu cinco vezes.

Os pombos se entreolhavam, num mudo escândalo desolado. Não entendiam nada. Mas nisto chegou o momento do milho. Dez minutos depois, voltam os pombos. Eis o que viram: — os rapazes estavam rasgando poemas de amor. Com tal gesto queriam demonstrar que a nossa época não comporta nem a palavra, nem o amor. Era meio estranho que latagões, aparentemente válidos, tivessem tal desgosto do amor e, por conseqüência, da mulher.

Por fim, retiraram-se, gloriosamente, os rapazes. E, então, ruflando as asas e sacudindo as penas, os pombos voltaram para o soneto de Raimundo Correia. Passou.

De vez em quando, porém, lembro-me do episódio e faço da "morte da palavra" um tema de meditação fúnebre. Até hoje, não sei se a palavra está morta. Admito que se possa fazer um romance sem palavras, um conto sem palavras, um soneto sem palavras e até um recibo sem palavras. Admito que, futuramente, um novo Tolstoi venha a fazer uma outra Guerra e paz sem título e com 1200 páginas em branco. Não consigo imaginar, porém, que certas situações vitais possam dispensar a palavra.

Pode-se admitir um flerte mudo. Todavia, não se conhece um flerte eterno ou, pelo menos, que tenha chegado às bodas de prata ou de ouro. Um flerte dura escassamente os quarenta minutos de um chá, de um desfile, jantar etc. etc. Em seguida, tem de entrar a palavra. Homem e mulher não podem ficar eternamente olhando um para o outro.

Conheci um paulista que era, por índole e por fatalidade geográfica, um introvertido. Falava pouquíssimo. Um dia, apaixonou-se. Não tirava a vista do ser amado. O pior é que a moça estava achando o silêncio uma prova de alma profunda, inescrutável e fascinante. Até que, um dia, o paulista resolve falar. Aproxima-se da bem-amada e sussurra-lhe: — "Rua tal, número tal, apartamento 1015, última porta à direita. Cinco da tarde".

Para um paulista, ainda mais quatrocentão, era um esforço vocal insuportável. E teve que se sentar, mais adiante, com as pernas bambas e a vista turva.

Claro que esse mutismo atroz é, no amoroso, uma exceção escandalosa. Seja como for, mesmo o paulista citado teve que dizer um endereço e uma hora. A dama achou, com isso, que o ser amado era de uma prolixidade inefável. Normalmente, ninguém ama sem uma inestancável torrente verbal.

Tive um colega que dava para a namorada telefonemas de oito horas. Nem ele nem ela faziam uma pausa. Falavam ao mesmo tempo, e tanto a pequena como o rapaz não entendiam o que o outro dizia. Mas falei do paulista e agora me lembrei: — há pior, há pior.

Quem me contou o episódio foi Marcos André. Vocês conhecem, decerto, o admirável colunista. Eu o admiro por vários motivos e mais este: — Marcos André andou pela China, pelo Japão, por Formosa. Viu paisagens, flores, lagos jamais sonhados. Quando o leio lembro-me do nome azulado, lunar, de Pierre Loti. E, como este, Marcos André conhece a China anterior a Mao Tsé-tung e, portanto, a China do ópio.

Em Hong Kong, o colega foi testemunha da mais linda e silenciosa história de amor. Conta Marcos André que certo milionário brasileiro foi traído pela esposa. Quis gritar, mas a infiel disse-lhe sem medo: — "Eu não amo você, nem você a mim. Não temos nenhum amor a trair". O marido baixou a cabeça. Doeu-lhe, porém, o escândalo. Resolveu viajar para a China, certo de que a distância é o esquecimento.

Primeiro, andou em Hong Kong. Um dia, apanhou o automóvel e correu como um louco. Foi parar quase na fronteira com a China. Desce e percorre, a pé, uma aldeia miserável. Viu, por toda a parte, as faces escavadas da fome. Até que entra na primeira porta. Tinha sede e queria beber. Olhou aquela miséria abjeta. E, súbito, vê surgir, como num milagre, uma menina linda, linda. Aquela beleza absurda, no meio de sordidez tamanha, parecia um delírio.

O amor começou ali. Um amor que não tinha fim, nem princípio, que começara muito antes e continuaria muito depois. Não houve uma palavra entre os dois, nunca. Um não conhecia a língua do outro. Mas, pouco a pouco, o brasileiro foi percebendo esta verdade: — são as palavras que separam. Durou um ano o amor sem palavras.

Os dois formavam um maravilhoso ser único. Até que, de repente, o brasileiro teve que voltar para o Brasil. Foi também um adeus sem palavras. Quando embarcou, ele a viu num junco que queria seguir o navio eternamente. Ele ficou muito tempo olhando. Depois não viu mais o junco. A menina não voltou. Morreu só, tão só. Passou de um silêncio a outro silêncio mais profundo.

[22/9/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Admirável defunto


Uma coluna diária precisa ter um elenco variadíssimo. Sim, um elenco colorido de mágicos, trapezistas, clowns, arquitetos, cineastas, heróis, estudantes, intelectuais e pulhas.

Quando o colunista precisa de um mímico, tem o mímico; e se é cineasta, vem o cineasta; e se é o intelectual, há o intelectual.

Fiz esta breve introdução para concluir: — as minhas confissões vivem de um elenco assim. Meus protagonistas e meus comparsas dariam para lotar uma platéia de Fla-Flu. E um dos meus personagens mais fascinantes é exatamente o "defunto vocacional".

Não sei se me entendem. Imagino mesmo que o leitor há de perguntar: — "Por que defunto e por que vocacional?".

Tentarei explicar.

Outro dia cruzo na Avenida com um morto. Passou por mim e acenou-me com os dedos: — "Salve!".

Balbuciei, lívido: — "Salve". E fiquei olhando o outro afastar-se e sumir na multidão. Mas por que o meu espanto e por que o meu horror? Era um sujeito que eu já velara, e chorara, e florira umas cinco vezes.

Dirá alguém: — "Ilusão". Seja ilusão. Mas o "defunto vocacional" cumprimenta como os outros, e calça como os outros, e tem gravata como os outros. E dá sempre a sensação de que já o vimos de pés juntos e de algodão nas narinas. Sua cara é hirta e feia como uma máscara, sim uma máscara da cor de certas pinceladas amarelas de Van Gogh.

Mas por que estou dizendo tudo isso? Ah, já sei.

Imaginem vocês que recebi um telefonema fantástico. Era alguém que desejava de mim uma entrevista imaginária. O sujeito falava de maneira especialíssima. Era uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Fiz-lhe a pergunta assustada:

— "O senhor tem mesmo essa voz?".

Jurou que tinha. E eu: — "Mas quem é o senhor?".

Veio a resposta terrível: — "Sou o homem de bem".

Ora, eu estava certo de que o homem de bem era, precisamente, "O Grande Defunto". Ninguém tão morto e ninguém tão enterrado. Lembrava-me da missa mandada rezar pelo seu eterno repouso. E me parecia irritante que alguém saísse da tumba e pedisse uma entrevista imaginária. Seriam ambos imaginários: — a entrevista e o homem de bem.

Tive de usar de franqueza: — "Meu amigo, vai-me desculpar, mas o senhor já morreu".

Há uma pausa lúgubre. E, depois do suspense, diz o homem de bem: — "Obrigado pela informação". E desligou.

Viro-me para os colegas e, puxando um cigarro, digo-lhes: — "O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu".

Volto para a minha mesa. Bate novamente o telefone.

Aviso: — "Se for o homem de bem, não estou". Felizmente, não era o falecido. O contínuo pergunta: — "Quem quer falar com ele?". Pausa. O contínuo repete: — "Quem? O canalha?".

Alguém que se dizia "o canalha" queria falar comigo. Levanto e vou atender. Mas achava curioso que no mesmo dia, na mesma hora, fosse eu solicitado pelo falecido homem de bem e por um salubérrimo canalha.

Do outro lado da linha, diz alguém: — "Seu Nelson Rodrigues? Eu queria dar uma entrevista imaginária. Pode ser?".

Fiz-lhe a primeira pergunta: — "Quem é o senhor?".

E o outro, com a voz de quem está mascando chicletes: — "Já disse. Sou o canalha".

Tive de explicar-lhe: — "Meu amigo, já temos um canalha oficial. Nunca ouviu falar no Palhares, o que não respeita nem as cunhadas?".

Respondeu, com radiante vaidade: — "Sou muito pior do que o Palhares". Era uma bravata óbvia. Digo:

— "Escuta. O Palhares beijou a cunhada no corredor. E o senhor? Vamos lá. Qual foi a sua ignomínia?".

O outro dá uma risadinha de Chaliapine em Mefistófeles: — "Só responderei no terreno baldio".

Faço uma pausa. Estou achando a voz muito moça. Pergunto:

— "Afinal, que idade tem o senhor?".

Eis a resposta:

— "Dezessete anos".

Ao ouvir falar em "dezessete" tremo em cima dos sapatos. Faço-lhe reverências de Michel Zevaco:

— "Peço-lhe mil desculpas. Eu não sabia que o senhor era o jovem. Pode vir. O terreno baldio jamais fechará suas portas para o jovem".

Expliquei-lhe que as entrevistas imaginárias devem começar à meia-noite, hora que, segundo Machado de Assis, apavora. O jovem foi sarcástico:

— "A meia-noite é uma ilusão". Seja como for, foi magnânimo; e aceitou o tenebroso horário.

Assim me despedi: — "Salve, jovem canalha!".

Imediatamente, liguei para o contra-regra do terreno baldio:

— "Sou eu. Manda providenciar papel picado e listas telefônicas. Vamos receber a mais ilustre visita de toda a história do terreno baldio".

Pergunta, pálido, o contra-regra: — "Quem?". Imaginou, por certo, que seria um rajá montado num elefante. Disse-lhe:

— "O jovem canalha!".

Era honra demais para o contra-regra. Sob violenta dispnéia emocional, quase desfaleceu no telefone:

— "Não merecemos tanto".

Trato de instigá-lo:

— "Capricha, capricha!".

Saio do telefone, ponho o paletó e embaixo apanho o primeiro táxi. Arquejo:

— "Me leva no terreno baldio. Chispa".

Salto lá. A cabra, os gafanhotos, os sapos, as pulgas, os caramujos estão assanhadíssimos:

— "Cadê o jovem canalha?". Tenho que pedir calma. Chamo as pulgas:

— "Modos, hem, modos".

Ao longe, como no soneto do Alencar de Os Maias, um burro, pensativo, pastava. E, súbito, a cabra põe a boca no mundo: — "Evém o jovem canalha!". Era a pura verdade.

Vinha ele e com as costeletas ao vento. Mas não vinha só. Uma massa o seguia, berrando como nos comícios do Brigadeiro:

— "Já ganhou! Já ganhou!".

De um lado do jovem canalha marchava o dr. Alceu; de outro lado vinha d. Hélder. E ambos abanavam o pulha com uma Revista do Rádio. Foi sublime quando o patife entrou no terreno baldio. Num desvairado arroubo, o dr. Alceu forrou o chão com o próprio paletó para o jovem pisar. Do alto, choviam listas telefônicas e papel picado.

Finalmente, pedi silêncio. E então o mestre-de-cerimônias anunciou os títulos do entrevistado:

— "É estudante, mas não sabe nada, porque onde se viu estudante estudar? Nunca leu um livro. Só lê manchete".

Palmas, vivas, foguetes. Dr. Alceu começa a gritar:

— "Tem a razão da idade!".

A massa coral de gafanhotos, sapos, pulgas, camaleões, pôs-se a repetir:

— "Tem a razão da idade! Tem a razão da idade!".

E, súbito, fez-se o maior silêncio da terra. O "jovem canalha", de viva voz, ia contar o feito que estava justificando aquela apoteose. Com radiante modéstia, disse tudo:

— "Não fiz nada demais. Estão exagerando. Simplesmente, havia uma menina reacionária. Tão reacionária e obscurantista que namorava de mãos dadas. Eu e mais uns sete pegamos a menina. Batemos no namorado".

Pausa, suspense. E, então, limpando as unhas com um pau de fósforo, concluiu:

— "Eu sou um co-autor do jovem estupro".

Em delírio, a multidão avançou. O co-autor foi carregado na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Assim fez, pelo terreno baldio, a triunfal volta olímpica.

[21/9/1968]
___________________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.