domingo, 4 de setembro de 2011

Raul: profeta, messias ou bruxo?

Há dez anos, o Brasil perdia Raul Seixas, o maluco-beleza, o mentor da Sociedade Alternativa e guru de milhões. Hoje, poeira assentada sobre o túmulo, já é possível enxergar a verdade por trás da fachada mística de Raulzito. Profeta? Messias? Bruxo? Ou simplesmente um personagem criado pela imaginação dos fãs? A história de Raul é mais bizarra que qualquer livro de magia.

A chave para decifrar o enigma Raul Seixas mantém-se à margem do mercado, escondido numa pequena chácara na zona rural da cidade de Miguel Pereira, no Rio de Janeiro. Cláudio Roberto Azeredo conheceu Raul aos 11 anos, através de uma namorada, a escritora Heloísa Seixas. Compuseram a primeira música juntos em 1964, "I Don't Really Need You Anymore", só gravada 25 anos depois. Juntos, compuseram cerca de 30 canções e muitos sucessos, como "Aluga-se", "Cowboy Fora-da-Lei", "Quando Acabar o Maluco Sou Eu", "Coisas do Coração" e "Rock das Aranha", além de todo o LP O Dia em que a Terra Parou. "Raul era uma pessoa muito difícil", admite Cláudio, com a sinceridade a que só os amigos próximos têm direito.

Cláudio e Raul mantiveram contato distante até que, em 1968, Raul resolveu tentar a sorte de sua banda, Os Panteras, no Rio de Janeiro. A iniciativa foi frustrada. Raul voltou para Salvador, casou-se, abandonou a música por alguns meses e só fixou residência no Rio de Janeiro dois anos depois, quando arrumou emprego de produtor na CBS, onde trabalhou com artistas como Trio Ternura, Renato & Seus Blue Caps, Leno e Jerry Adriani. Foi expulso da gravadora em julho de 1971, depois de haver produzido, por baixo do pano, um disco absolutamente experimental, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão das Dez, influenciado por Frank Zappa.

No ano seguinte, ressurgiu como intérprete, defendendo uma mistura de baião com rockabilly chamada "Let Me Sing, Let Me Sing" no Festival Internacional da Canção. Rita Lee, que estava lá com os Mutantes, conta uma história sensacional: "Foi minha primeira visão de Raul, um rapaz vestido de couro preto, cantando em inglês e rebolando feito Elvis. Pensei tratar-se de um cantor cômico, imitando a caricatura de um jovem americano alheio à época que o Brasil e o mundo estavam vivendo. Mas, nos camarins, eis que percebo que aquele 'cômico' não estava brincando, não. Para acabar com a dúvida, cheguei no cara. Ele conversou comigo em inglês, num sotaque quase texano. Raul não estava tentando ser polêmico, ele realmente acreditava que havia nascido no Brasil por um infortúnio do destino. Eu lhe disse que comigo acontecia o contrário pois, sendo filha de gringos, minha grande aventura era me abrasileirar o máximo possível, ao que ele me respondeu com um sorriso maroto: 'então você pode ficar com o meu Seixas que eu fico com o seu Lee Jones!' ... Inesquecível!"

Raul encontra o Alquimista

Certo dia, Raul leu uma matéria sobre discos voadores na revista 2001, editada no Rio de Janeiro pelo mochileiro bicho-grilo Paulo Coelho. Raul convidou Paulo para um jantar em seu apartamento e mostrou algumas músicas que havia feito – bem diferentes das que costumava compor para os contratados da CBS - e propôs a Paulo que fizesse a letra para algumas delas. A partir de então, passaram a preparar alguns temas para o primeiro disco solo de Raul, Krig-Há-Bandolo, que seria lançado em julho de 1973.

No mesmo ano, Raul foi levado por Paulo a conhecer uma sociedade secreta de que o escritor fazia parte, conhecida como Argentum Astrum, AA. Era uma organização filosófica anti-religiosa e cheia de rituais, baseada nos ensinamentos do bruxo inglês Aleister Crowley (1875 - 1947).

Em sua época, Crowley foi marginalizado pela moral vitoriana, chegando a ser chamado de "o homem mais perverso do mundo". Autodenominado a "Besta 666", seu trabalho consistia basicamente em revelar segredos de livros mágicos e propor, a partir desses segredos, uma nova ordem social (não é à toa que Crowley entrou na moda durante os revolucionários anos 60/70). Sua obra central chamava-se O Livro da Lei. Dizia basicamente que cada homem é seu próprio deus e, por isso, os fortes se sobrepunham aos fracos.O material que emergia da parceria de Paulo e Raul foi muito influenciado por Crowley. Algumas músicas chegam a copiar os textos do bruxo, como "Sociedade Alternativa" e "Liber Oz" (gravada 14 anos depois, com o nome de "A Lei"). Na verdade, todo o repertório do segundo disco de Raul seria colocado "a serviço daquela sociedade secreta", conforme revelou Paulo Coelho no livro Confissões de um Peregrino (editora Objetiva).

O compacto com a faixa "Gita" (cuja letra foi inspirada no Bhagavad-Gita , a mais popular das escrituras sagradas da Índia antiga) foi lançado em julho de 1974 e vendeu 600 mil cópias, dando a Raul seu primeiro disco de ouro. O LP foi lançado logo em seguida, também com grande sucesso. Conforme ia crescendo a popularidade da dupla, Raul e Paulo passaram a realmente acreditar na viabilidade da Sociedade Alternativa. Chegaram a divulgar a construção da Cidade das Estrelas, em Minas Gerais, que funcionaria como o quartel-general da seita. "Vivíamos no mais profundo negrume da ditadura", lembra Pena Schmidt. "Mas Raul propunha o oposto daquilo, numa saída individual, que era um tipo de discurso poderoso mas tolerado pelos manipuladores de informação da Censura". A partir de "Gita", Raul passou a ser visto pelos fãs como uma espécie de conselheiro, de guru. Mães começaram a trazer seus filhos doentes para que ele os curasse.

Rita Lee acredita que a imagem mística que Raul assumiu nesta época pouco tinha a ver com temor religioso. "Me parece que depois que Paulo Coelho entrou na vida de Raul como parceiro de trabalho e de aventuras no mundo da magia, Raul praticamente neutralizou sei jeito Presley de ser e mudou, feliz, para o papel de Profeta Apocalíptico. O fã radical de Elvis ingeriu uma overdose de misticismo e se transformou num guru". Cláudio Roberto acha que o que falou mais alto foi o business: "Era algo do tipo 'oba, isso dá fama e dinheiro, é nessa que eu vou', era show". Ele confessa que viu com desconfiança a aproximação de Raul e Paulo Coelho. "Raul abraçou toda a megalomania, todo o sonho de poder de Paulo, e isso fez muito mal a ele", acredita. "Esse dedo em riste na capa do Gita foi definitivo numa ferida já aberta, porque mostrava Raul assumindo uma coisa que ele sabia não ser ele, algo falso".

Em maio de 1974, a polícia apreendeu e incinerou a maioria dos 20 mil exemplares do gibi-manifesto A Fundação de Krig-Há (patrocinado pela Philips), considerado material subversivo. Raul e Paulo Coelho foram presos e torturados. Raul exilou-se nos Estados Unidos, apoiado pela família americana de sua esposa. Voltou logo depois, mas dali em diante as coisas já seriam diferentes.

Demônios e outros bichos

Paulo Coelho abandonou a AA depois de ser surpreendido por uma personificação do demônio. Raul continuou por mais alguns meses. O relacionamento entre os dois já havia esfriado, assim como a fase de sucesso de Raul. Tentaram restabelecer a parceria três anos depois, alugando quatro suítes em um hotel em Campos do Jordão. Mas não se falavam, apenas trocavam anotações por baixo da porta. Depois de cinco dias trancado no quarto, Raul foi encontrado desmaiado, vítima de inanição.

Passados 25 anos, ainda pouco se sabe sobre a sociedade de que participaram - Paulo nem sequer pronuncia o nome dela. Raul nunca mais tocou no assunto, mas sabe-se que tanto ele quanto sua esposa na época, Gloria Vaquer, abandonaram os rituais após visões desesperadoras que misturavam demonismo e alucinação psicodélica.

O disco Novo Aeon, lançado em outubro de 1975, marcava nitidamente a transição pessoal do cantor. Nas entrevistas de divulgação do disco, Raul tentava dissociar-se da imagem de pregador, dizendo que a verdade estava em cada um e que tentar doutrinar seu público havia sido um erro. "Não sei se ele estava preparado para gerenciar seu próprio carisma", pondera Marcelo Nova. "Essa idolatria, essa coisa de 'Raul sabe-tudo', era perigoso. Nas entrelinhas das canções, ele tentava dizer que não sabia de nada: 'faça você', procure seu caminha', 'eu sou é raulseixista', mas nem todo mundo entendia". Cláudio Roberto, que estreara como parceiro em vinil justamente no disco Novo Aeon, tenta analisar a dubiedade do sucesso que, acredita, acabou por seduzir o amigo: "o sucesso é apenas o fenômeno de preencher uma lacuna do mercado na hora certa", sentencia. "O real talento de um artista só pode ser medido pela sua capacidade em não se deixar manipular pelo momento do sucesso. E Raul não teve essa capacidade".

Apesar de todos os esforços de Raul, a imagem patrocinada pela indústria do disco falou mais alto e, até hoje, muitos fãs buscam orientação espiritual na obra do cantor. Segundo Cláudio Roberto, quem mais precisava de conselhos era o próprio Raul. "Ele era extremamente ambíguo e indefeso, uma pessoa muito sensível", afirma. "Tinha um senso de humor agudo, mas ao mesmo tempo era muito sério e formal, e isso tornava tudo muito sensível", afirma. "Tinha um senso de humor agudo, mas ao mesmo tempo era muito sério e formal, e isso tornava tudo muito mais difícil para ele. Raul era uma criança, morreu dizendo que havia entrevistado John Lennon, até mesmo para mim, quando isso era mentira - ele era absolutamente autêntico dentro dessa falta de autenticidade, o que me faz amá-lo muito mais e absolvê-lo por isso".

Em 1977, Cláudio sobrevivia dando aulas de inglês e vendendo mocassins nas feiras hippies da cidade, quando Raul o convidou para, juntos, comporem seu primeiro disco na gravadora WEA. "Nos discos que lançou pela WEA ele buscou a absolvição pelos erros do passado", avalia Cláudio. "O sucesso fez muito mal a ele, ele bebeu o sucesso todo. Eu, que o conhecia desde antes da bebida, convivi com uma pessoa cerimoniosa, que nunca perdia a linha. Virávamos noites compondo em hotéis, eu de cueca, detonando, e ele de terno e gravata, absolutamente formal".

Cláudio e Raul passaram três meses trabalhando no novo repertório. O Dia em que a Terra Parou foi lançado com todas as regalias que um artista poderia querer. Curiosamente, diz Cláudio, foi a partir deste disco que teve início a decadência pessoal e artística de Raul. "Ele descobriu que poderia usufruir de uma maneira 'light' de compor, mesmo sendo verídica. Mas era preciso fazer uma reavaliação muito grande de valores - imagine, uma pessoa tão solapada por tantos vícios, não só químicos como mentais e posturas..."

Na opinião de Cláudio, o sucesso da faixa "Maluco Beleza" ("Enquanto você se esforça pra ser / um sujeito normal / e fazer tudo igual / eu do meu lado, aprendendo a ser louco / maluco total / na loucura real") teria muito a ver com esse preocesso. "Esta faixa foi, provavelmente, o primeiro hit dele que não era um chiste, uma provocação. Ao contrário, é uma música autêntica, melancólica - é a história de um cara assumindo que não tem controle sobre sua loucura, é foda isso. Mas quando você constrói uma vida em cima de determinados vícios de postura, aí, malandro, é muito difícil. Mas Raul teve a chance de mudar isso, e não quis. Talvez por haver passado tanto tempo sendo um mistificador, ele tenha subestimado a força da autenticidade e superestimado a sua capacidade de manipulação. Mas o tempo julga pela verdade, pela causa e efeito do que você faz, não pelo sentimento do fã, que age apenas pela emoção". Depois desse disco, acredita Cláudio, Raul ficou "artisticamente em cima do muro".

"Raul já não era ele mesmo"

Os dois amigos, no entanto, continuaram compondo até a morte do cantor. Chegaram a planejar um novo LP em 1978, mas brigaram depois que Cláudio o acusou de haver registrado uma música da dupla em nome de Oscar Rasmussem - a faixa seria "Por Quem os Sinos Dobram".

Cláudio só voltou a ver Raul no início dos anos 80, mas encontrou outra pessoa. "Ele já havia se entregado, o corpo estava cansado de tanta luta inglória - 'é preciso sobreviver, é com isso que eu vou', sabe? O problema dele era lutar até alcançar, depois a motivação desaparece - 'eu me pergunto e daí, foi tão fácil conseguir' (da letra 'Ouro de Tolo'), isso é o resumo de sua vida", acredita. "Vi um show, em 1980, em que Raul enfrentou uma platéia absolutamente gelada, que estava lá para colocar a última pá de cal sobre seu cadáver insepulto. Até o meio da segunda música, ele tocou completamente ensandecido, numa performance que eu nunca havia visto. A audiência não resistiu e foi ao delírio - foi o que bastou para Raul começar a esquecer a letra, tropeçar e fazer uma merda de show. A impressão era a de que ele não suportava conseguir, conquistar".

Mas já era tarde, Raul Seixas já havia conseguido e conquistado. Isso consumiu sua vida, é verdade, mas seu trabalho atravessa as décadas como a voz oficial de uma raça que nunca se extingue: a dos malucos. Mesmo que fosse uma "criança" curiosa, como define "Cláudio Roberto, e não o filósofo onipotente, como o próprio Raul acreditou ser nos tempos de "Gita". A perenidade de seu trabalho foi posta à prova e será mais uma vez nestes dez anos de sua morte: a WEA planeja relançar seu disco Por Quem os Sinos Dobram em CD, incluindo letras, notas biográficas e o encarte original. Depois de tudo, só nos resta a música de Raul para ouvir. E já esta de bom tamanho.

O Meio

Os anos 80 foram cruéis para Raul. "Naquela época, ele não atendia telefones nem respondia a qualquer tentativa de aproximação", lembra Rita Lee. "Ele se cercou de vampiros que lhe sugaram até a última gota de sangue." Ao mesmo tempo, Raul era considerado persona non grata por produtores de shows, de eventos e por gente de gravadora. "Havia muitas ramificações ao redor dele, gente que tentava armar show com banda que Raul desconhecia, gente que vendia shows no interior em nome dele sem que ele soubesse, gente que tomava adiantamento de apresentações que ele nunca marcou", diz Marcelo. "Lembro que, certa vez, a secretária de Raul me ligou em casa, dizendo que havia um cara na casa dele, ameaçando-o de morte porque ele não queria fazer uma temporada de banquinho e violão no Amazonas e em Belém do Pará."

Caratecas,drogas e tiros

Na verdade, o inferno astral de Raul começou ainda no final dos anos 70, quando lançou um disco sem repercussão chamado Por Quem os Sinos Dobram, escrito ao lado de um novo parceiro, Oscar Rasmussen, com quem dividia o apartamento na época. Raul costumava agregar a seu redor os tipos mais estranhos e sombrios, numa versão tropical da "máfia de Memphis" que acompanhava Elvis Presley. Em 1979, ele teve a inacreditável idéia de contratar uma equipe de caratecas argentinos como seguranças. Tanto ele e Oscar quanto os seguranças varavam as noites em festas regadas a álcool e drogas das mais variadas. Numa transação obscura entre os caratecas e traficantes, o faixa preta Hugo Amorrotu foi assassinado a tiros, dentro do apartamento de Raul, num evento que demonstra o grau de descontrole que sua vida havia tomado. O corpo de Raul sentiu as pancadas do destino: o cantor foi internado, retirou metade do pâncreas no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e passou alguns meses hospedado na casa dos pais na Bahia. No ano seguinte, voltou à gravadora CBS (atual Sony Music), onde trabalhara como produtor nos anos 60. O disco que gravava, Abre-te Sésamo, foi, verdadeiramente, o último espasmo do cantor implacável e rebelde dos anos 70. O repertório, inspirado, era sua grande aposta.

Princesa Diana, não!

No entanto, Abre-te Sésamo foi, do início ao fim, um disco marcado por problemas e coincidências infelizes. Primeiramente por conta da Censura, que implicou com a balada "Baby" e o verso "por que esconder o vermelho/ do sangue tingido o lençol?", que virou "a mancha do batom vermelho/ por que esconder no lençol?". Depois, novamente censurado por conta da faixa "Rock das Aranha" (composta como piada e gravada como molecagem). Logo depois da gravação, a diretoria da CBS mudou e o disco foi mal divulgado e pessimamente distribuído. Aparentemente, a gravadora de Roberto Carlos e Amelinha não estava gostando muito da idéia de ter um encrenqueiro do calibre de Raul Seixas em seu cast. Aproveitando a relação desgastada, a gravadora propôs ao cantor que compusesse algo tendo o casamento da princesa Diana e príncipe Charles como tema. Raul respondeu com o pedido de rescisão de contrato.

Sem trabalho, Raul passou a divulgar planos mirabolantes, como filmar em Hollywood, candidatar-se a deputado federal e lançar um livro infantil. Pretendia prensar um disco pirata, chamado The Pirate Record (sic), com gravações raras de sua antiga banda Os Panteras, feitas nos anos 60. O assassinato de John Lennon tornou o cantor, normalmente avesso aos shows, ainda mais recluso. Um show na cidade de Caieiras, em São Paulo, foi desastroso: Raul foi confundido com um impostor e por pouco não foi linchado pelo público. Acabou levado à delegacia, onde foi esbofeteado e encarcerado.

Eventos assim só desgastavam sua imagem e o empurravam ainda mais para o alcoolismo. Seu vício foi progredindo de maneira proporcional à sua falta de atividade profissional. Sua esposa na época, Kika Seixas, passou a utilizar de seus contatos como assessora de imprensa para tentar reerguer a carreira do cantor. Depois de dois anos de tentativas, finalmente uma boa notícia: Raul foi chamado por Augusto César Vanucci para estrelar um especial infantil da TV Globo chamado Plunct Plact Zum, interpretando o personagem Carimbador Maluco. Animado, ele compôs um tema infantil, inspirado pela filha Vivian, de 2 anos. O sucesso da inocente canção rendeu seu segundo disco de ouro. Os fãs buscaram nos versos da canção alusões ao anarquismo, mas a música tratava mesmo de um personagem infantil - tanto que, em dezembro, Raul, vestido de Carimbador Maluco, cantou no estádio do Maracanã, na festa de chegada do Papai Noel, ao lado da Turma do Balão Mágico, Didi, Dedé, Mussum e Zacarias.

O cansaço físico e profissional falou mais alto que a boa fase "família" do cantor. Raul voltou a beber, e muito. Kika deixou-o em 1984. "Minha filha já estava crescendo e o pai dela bebendo o tempo todo", lembra. "Nos últimos anos Raul não tomava mais banho, estava sempre deprimido, não comia mais alimentos sólidos, se urinava sempre. Mas nunca perdeu a força de vontade, sempre de bom humor, fazendo planos para o futuro". Wanderléa, que conheceu Raul nos anos 60 e chegou a dividir com ele os vocais da faixa "Eu Quero Mais" (do LP Raul Seixas, de 1983), lembra que Raul passava os dias sozinho, trancado em seu apartamento: "De meias, chinelos, às vezes de luvas, assistindo a horas e horas de vídeos de seus heróis de adolescência, Jerry Lee Lewis, Little Richard, Elvis Presley". O mesmo cantor que bradava contra a nostalgia em 1975 transformava-se em um personagem saudoso e reacionário. "A partir de determinado momento, aqueles vídeos passaram a ser a única relação dele com o ambiente que amava, que um dia o motivara a cantar", lembra.

Do início ao fim, a década de 80 viu Raul entregando-se a seus excessos, deixando-se devorar pelo monstro que se formava ao redor de seu nome. Desistindo de viver. "Ele perdeu o interesse pela carreira", analisa Marcelo Nova. "O que o desmotivou, eu não sei. Ele era muito popular, e isso implica muita solidão, porque todo mundo te conhece, mas você não conhece ninguém", cogita. "Ele era muito simples e as pessoas abusavam um pouco disso. Mas o que o teria desanimado dessa forma ainda é uma incógnita".

O Fim

Raul dos Santos Seixas morreu aos 49 anos, de parada cardíaca. Já vivia havia nove anos sem dois terços do pâncreas. Diabético, driblava como podia as injeções de insulina ("Odeio injeção, por isso nunca fui junkie", dizia), mas não dispensava chocolate. Alcoólatra, seu café da manhã consistia de um copo de vodca com suco de laranja no bar mais próximo de casa, seguido de doses paulatinas de éter ao longo do dia. Separado de sua quinta esposa, Lena Coutinho, desde 1988 morava sozinho num pequeno flat alugado no Centro de São Paulo. Num destes cavalos-de-pau que o destino dá, um homem que odiava apresentar-se ao vivo e digladiava-se com gravadoras morreu descansando de uma maratona de 50 shows realizados ao lado do fã e último parceiro, Marcelo Nova. Naquela mesma semana, chegaria às lojas A Panela do Diabo, disco da dupla lançado pela multinacional WEA. E mais shows estavam programados até dezembro, quando a turnê seria encerrada com uma festa no ginásio do Ibirapuera, em São Paulo.

"Muita gente dizia que esta turnê não daria em nada: 'ah, o porralouca do Marcelo e o cachaceiro do Raul', mas Raul excursionou, fez 50 shows e não faltou em nenhum, mesmo quando estava com crise de diabetes", lembra Marcelo. "Por que, eu não sei. Raul só fazia o que queria e não havia ninguém no mundo para convencê-lo do contrário."

Toca, Raul!

Amigos desde 1984, a relação entre Raul e Marcelo Nova (ex-membro do grupo de rock baiano Camisa de Vênus) cresceu inicialmente movida pela paixão comum pelo blues e o rock dos anos 50. A parceria musical surgiu quatro anos depois, quando Marcelo decidiu visitar o amigo e deu-se conta do estágio terminal de sua vida e sua carreira. "Na verdade, não havia mais carreira. Ele estava parado há quatro anos, longe de seu público. Um dia cheguei em sua casa e ele estava sem um dente, abatido, bêbado, pesando 55 quilos. Alguma coisa precisava ser feita, não dava para assistir aquilo de braços cruzados. Levei Raul ao médico da minha família, que o examinou do cabelo à unha do pé e me disse que a única coisa a receitar era trabalho, já que ele se recusava a parar de beber", lembra.

"O esforço do indivíduo Raul Seixas em estar presente naquela turnê sempre foi subestimado", acredita Marcelo. "Já li muito sobre o 'andar trôpego e cambaleante' de Raul, mas, independentemente disso, ele pegava o microfone e, bem ou mal, com energia ou sem, subia no palco e cantava. Quem sabia dos problemas pessoais e físicos que ele enfrentava, sabe que se tratava de um esforço quase heróico".

Durante as gravações de A Panela do Diabo, o esforço de Raul atingiu seu ponto mais alto de emoção e simbolismo, como bem lembra o produtor Pena Schimidt: "O ritmo das gravações obedecia ao ritmo de Raul. Gravávamos uma estrofe de manhã, parávamos à tarde, retornávamos no dia seguinte e assim foi durante o tempo todo". Este ritmo seria seguido até o momento de gravar o número solo de Raul no LP, uma faixa chamada "Nuit", que ele havia composto em 1981 e, inexplicavelmente, mantinha inédita. Pena lembra que, neste dia, ele se viu diante do velho Raul Seixas hipnótico e poderoso que conhecera no Festival de Saquarema, em 1975. "Ele pediu para que todas as luzes fossem desligadas e exigiu gravar os vocais numa tacada só, sem retoques", lembra. "E assim foi, apesar de Raul Ter perdido a voz nos últimos versos. Quando as luzes se acenderam, todos no estúdio estavam com os olhos rasos d'água, porque entendiam que aquela letra era um bilhete de despedida". Versos como "quão longa é a noite/ a noite eterna do tempo/ se comparada ao curto sonho da vida" não deixam dúvidas - e os motivos que levaram a canção a permanecer reservada por tanto tempo foram finalmente esclarecidos.

On The Road

E mesmo na estrada, nos quase 12 meses de duração da turnê, a dupla manteve-se constantemente nos limites do imaginário rock'n'roll. Marcelo, num misto de sensibilidade histórica, ingenuidade adolescente e filantropia rocker; Raul, agarrando-se no fio de possibilidade que ainda lhe restava para provar, para si próprio, que a velha metamorfose ambulante poderia gingar feito Elvis. "Acredito que a turnê tenha dado motivação para o homem, não para o artista, que este não precisava", conta Marcelo. "Havia uma parte do meu coração querendo devolver um pouco de inspiração que ele havia me dado quando eu queria montar um grupo de rock na Bahia, aos 16 anos. Todos estavam muito motivados: no camarim, a banda era capaz de parar de beber para que Raul não visse que havia uísque, e ir lá conversar com ele, animá-lo, distraí-lo. Muitas vezes tivemos que tirar neguinho do quarto do Raul na porrada, porque os caras entravam lá no hotel com sacos enormes de cocaína, como presente para ele". No final, eram 18 pessoas trabalhando para que Raul Seixas "fosse aplaudido, como foi", depois de anos e anos à margem da cultura pop brasileira.

A morte

O escritor Paulo Coelho fazia sua segunda peregrinação depois da conversão ao cristianismo, o Caminho de Roma, também conhecido como Caminho Feminino. Era manhã de segunda-feira, 21 de agosto de 1989, quando Paulo interrompeu sua caminhada em um pequeno vilarejo perdido na cadeia montanhosa dos Pirineus, na França, e ligou para a esposa, Cristina Oiticica, no Rio de Janeiro. Com apenas três moedas no bolso, precisava falar rápido. "Olha, Paulo, não sei se devo te estragar o dia com notícias ruins", dizia a mulher do outro lado da linha, depois das necessárias saudações e troca de carinhos. "Pode falar, mas fala logo que a ligação vai cair", ele pediu com urgência. Cristina disse: "O Raul morreu". E a ligação caiu.

Paulo já havia escrito dois de seus grandes sucessos, Diário de um Mago e O Alquimista, mas muito de sua fama ainda se devia aos primeiros anos da década de 70, quando, ao lado de Raul Seixas, escreveu 65 canções, entre elas alguns dos maiores clássicos da música pop brasileira, como "Sociedade Alternativa", "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás" e "Medo da Chuva". "Quando a linha caiu, fiquei sem saber por que meu parceiro havia morrido, sem saber em que circunstâncias - só poderia ligar de volta à noitinha - mas senti uma profunda alegria, uma sensação muito positiva, como se Raul estivesse bastante feliz por haver morrido."

Durante o sono, às 5 horas da manhã daquela segunda-feira, Raul encerrava a luta que travava consigo mesmo havia mais de dez anos. Preso no emaranhado de mitos e lendas que ele próprio havia criado, o cantor passou toda a década de 80 deixando-se consumir pelo cansaço da batalha. Ao morrer, terminava uma história secreta, muito mais melancólica do que a que fora registrada em suas canções. Magia e rock'n'roll e carisma e insegurança e fanatismo e fraquezas alimentaram a trajetória mais estranha que o Brasil já presenciou - e que jamais procurou entender.

O dia em que Terra parou

O descontrole emocional da multidão, que Raul tanto temia em vida, viu-se multiplicado em muito no dia de sua morte. Como forma de homenagear o cantor, a gravadora WEA reservou o salão nobre do Palácio das Convenções do Anhembi para a despedida do público. Às dez horas daquele 21 de agosro, milhares de fãs tomaram os espaços do local gritando em uníssono: "Raul não morreu!" enquanto outros, de violão em punho, lembravam sucessos do cantor. Um fã mais ousado tentou beijar o rosto do músico, perdeu o equilíbrio e acabou quebrando o vidro do caixão.

As celebridades não apareceram, com exceção de Kiko Zambianchi, Marcelo Nova, do Maestro Miguel Cidras e Kid Vinil. Neste dia, Raul era do povo. Quando os bombeiros chegaram para levar o caixão para o aeroporto, a confusão começou. Alguns garotos se penduraram nas alças, outros jogavam bilhetes sobre o ataúde. Todos gritavam "Raul! Raul!". Na tentativa de chegar mais perto do ídolo, fãs quebraram os vidros do aeroporto de Congonhas.

Já na Bahia, além da família, apenas dois fãs aguardavam o avião - e um deles declarou que esperava ver o cantor levantar-se do esquife e pregar mais uma peça no "sistema". Multidão mesmo estava reunida no Cemitério Jardim da Saudade, esperando pela visitação pública ao caixão, que ficou na capela. Três horas depois, a missa de copo presente exigia que a capela fosse fechada, o que deu início a um tumulto e a nova tentativa de invasão.

Um ano depois do enterro, um fã de 21 anos, com o rosto de Raul tatuado no braço, roubou a lápide do cantor para transformá-la em item maior do "santuário" que montava em casa, ao lado de discos, cartazes, recortes e fotos. Uma nova tentativa de furto ocorreria dois anos depois. A direção do cemitério, cansada dos furtos, finalmente decidiu pregar a lápide com concreto. Hoje Raul descança em paz. (R.A.)

Matéria publicada pela revista Trip, nº 71, (agosto 1998)

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