terça-feira, 26 de julho de 2011

Fauno de tapete

Não sei se já lhes contei de onde é que me veio essa expressão – fauno de tapete. Se não o fiz ainda, posso fazê-lo agora. E, no final, vocês verão que parece, ou melhor, é uma estória tirada das páginas da vida como ela é.

Eis o caso: - Eu tinha meus sete, oito anos e morávamos em Aldeia Campista, na rua Alegre, ao lado da farmácia. Foi numa tarde em que fazia um calor de rachar catedrais. Meu irmão – não recordo se o Mário ou o Milton – entra e vai despejando a novidade: numa vila próxima tinha acontecido um crime hediondo; a sobrinha de doze anos matara o tio que andava beirando os quarenta.

Tomou fôlego e acrescentou: estão dizendo que foi crime passional.

Houve uma nuvem de incredulidade entre os presentes. Meu irmão ignorou-a e continuou falando.

O tio, um pulha nato e vocacional, teria dito à sobrinha que era um vampiro, mas que a amava muito e tal e coisa. Assim, desde a mais tenra idade da criança ele insidiosamente a envolvia e conquistava com agrados, mimos e bom-bons.

Com que pertinácia, com que descaro seus olhos a buscavam obsessivamente. Depois de certo tempo deu de aparecer no quarto dela como se brotasse do breu da noite e das entranhas do silêncio. Aproximou-se, insinuou-se. Primeiro tocava-a quase que por acaso. E foi avançando. Sem pressa. Num dia beijou-a e já no outro, por dentro da camisa da pequena, com as costas da mão percorria o relevo do seio incipiente. Eram torpes carícias de mãos espertas e viajadas, no corpo e na pele diáfana da adolescente impúbere e ingênua. Em resumo, havia seduzido a sobrinha. Sussurrava-lhe aos ouvidos: - Sou louco por ti, sou louco por ti.

Vez por outra a menina pressentia o prêmio de um frívolo afeto nos olhos do tio a despertar-lhe a vaidade antes do desejo.

Como vocês podem ver, o biltre era, de fato, a flor da iniqüidade.

(Agora me lembro:- Era Milton mesmo quem contava o episódio.)

Eu bebia ávido cada sórdido detalhe daquela narrativa. A garota – só hoje e agora é que penso isso – é bem possível que a princípio recuasse crispada e indefesa na sua fragilidade infantil e que um belo dia, por fim, cedesse envergonhada num frêmito de lascívia.

Um pacto fora firmado nesse idílio bizarro entre a canalhice e a castidade. Ele havia dado a ela, já fazia um ano ou mais, uma estaca de pau. Juntos, todas as noites, se esmeravam em apontar e polir a estaca com a ajuda de um canivete. Meticulosa e silenciosamente a estaca se transformava num espeto afiadíssimo.

Repetira mil vezes para a sobrinha que a estaca era a única arma capaz de adormecer para sempre o vampiro que habitava dentro dele. Nenhuma outra arma, – e insistia, nenhuma –  poderia matar um vampiro. Só a estaca de madeira possuía esse dom, esse poder. Dissera-lhe que se um dia os lençóis traíssem o mais leve indício de sangue, o segredo deles estaria descoberto e ele teria que morrer. Ensaiava então cada pormenor dessa previsão funesta. Ensinava-lhe como empunhar a estaca e o local certo em que ela deveria penetrar-lhe o peito para atravessar o coração. O nível de minúcia tinha que ser total e absoluto. A estaca já era então um punhal esguio, finíssimo, letal. Ele, soez, fazia pose e mostrava no próprio peito: é aqui, exatamente aqui, que a estaca deve ser cravada.

Eis a verdade sinistra: - Dizia isso com a pretensão de revelar algum escrúpulo. Mas era só cinismo, ainda que as circunstâncias pudessem vaticinar uma iminente tragédia.

Lembro-me bem que meu irmão fez suspense antes de concluir a narrativa: Naquela noite, depois que o tio deixara a sobrinha e fora para o seu próprio quarto, a menina se fizera mulher. Tivera sua copiosa, abundante primeira menstruação. No meio da madrugada acorda e percebe tudo. Pela manhã todos saberão. Não haverá mais segredo. Estará tudo acabado, será a suprema, a máxima vergonha. É chegada a hora.

Apanha a estaca assassina e caminha até o quarto do tio. Abre a porta sem fazer ruído. Ele dorme com um esgar de sorriso. Ela sabe exatamente onde deve enterrar a estaca e desfere o golpe certeiro e mortal. O homem cai sobre o tapete e nessa queda seu peito esmaga e acaba por engolir o resto da estaca.

Quando os parentes começam a chegar, a menina está imóvel num canto, de cócoras, abraçada às próprias pernas. E não há sequer uma única e escassa lágrima a lhe escorrer pela face.

O tio é um cadáver inerte sobre o tapete ao lado da cama. E quando o corpo é removido vê-se que o sangue impregnou o tecido e caprichosamente se incorporou ao desenho  deixando impressa no tapete a figura do canalha obsceno: o fauno de tapete.
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Nelson Rodrigues (Nelson Falcão Rodrigues), dramaturgo, jornalista e escritor, nasceu na cidade do Recife, PE, em 23/08/1912, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21/12/1980. Oriundo da capital pernambucana e quinto de quatorze irmãos, Nelson Rodrigues mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança, onde viveria por toda sua vida. Seu pai, o ex-deputado federal e jornalista Mário Rodrigues, perseguido politicamente, resolveu estabelecer-se na então capital federal em julho de 1916, empregando-se no jornal Correio da Manhã, de propriedade de Edmundo Bittencourt.

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