terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mãe

Posso não ter outras virtudes, e realmente não as tenho. Mas sei escutar. Direi, com a maior e deslavada imodéstia, que sou um maravilhoso ouvinte. O homem precisa ouvir mais do que ver. Qualquer conversa me fascina e repito: — não há conversa intranscendente. E, se duas pessoas se falam, a minha vontade é parar e ficar escutando.

Uma simples frase, ainda que pouco inteligente, tem a sua melodia irresistível.

Ontem, por exemplo. Eu ia passando e vi duas senhoras no poste de ônibus. Conversavam. Estaquei e resolvi ouvi-las. Eram duas gordas e uma delas perguntava à outra: — "Sabe onde fica a praça Serzedelo Correia?". A outra respondeu: — "É pertinho daqui. Ali". E mostrava, com o dedo: — "Está vendo? Ali". A primeira olha e suspira: — "Então vou tomar o ônibus".

A distância que a separava da praça era de uma quadra. Comecei a ver, ali, um mistério insuportável. Por que tomar um ônibus para ir de uma esquina a outra esquina?

Foi mais ou menos o que disse a segunda senhora: — "Não precisa ônibus. Para que ônibus? Tão pertinho". Novo suspiro da primeira: — "Estou tão machucada. Vou mesmo de ônibus".

Foi aí, e só aí, que eu e a outra percebemos a evidência total. Estava, sim, bem machucada. Na minha infância, dizia-se "amarrotada". E ela estava amarrotada. O olho esquerdo, ou direito, tinha um halo negro, um halo que parecia feito de rolha queimada. Uma das orelhas (não vi a outra) estava enorme como a de um boxeur. Enorme e vermelha ou roxa. A simples palavra repercutia, dolorosamente, lá por dentro. E, então, compadecida, a outra quis saber: — "Mas que foi isso? Desastre?".

Parecia um bárbaro atropelamento. E havia, na conversa, um clima folhetinesco. Não perco uma palavra. Veio a resposta: — "Foi meu filho que me deu uma surra". Dizia isso sem nenhum horror, em tom castamente informativo.

Era como se não fosse ela a mãe, e fosse o espancador o filho da vizinha. A segunda senhora deixa passar um momento.

Ainda espicha o pescoço para ver o ônibus. E pergunta, com relativo interesse: — "Bateu na senhora?". Geme: — "Bateu".

E havia no que uma perguntava, e no que a outra dizia, uma naturalidade hedionda.

A primeira olha no relógio de pulso: — "Já são onze horas, meu Deus!". E, como o ônibus não vinha, a outra indaga: — "Bateu por quê?". Disse: — "Me pediu dinheiro. Eu não tinha. Já sabe. Meu filho tem um gênio que Deus te livre. Muito nervoso". A segunda olha no fim da rua: — "E esse ônibus que não vem?". Espia de novo o relógio. Suspira: — "Caso sério". A primeira está dizendo: — "Quando respiro...".

Respira fundo: — "Dói aqui". Espeta o dedo: — "Aqui".

E, súbito, chega o ônibus. Uma subiu, fácil e lépida. Mas a mãe espancada foi uma dificuldade. Dizia baixinho, como se o motorista pudesse ouvi-la: — "Espera, espera". O trocador fica olhando e reclamando: — "Como é, minha tia?".

Lá fui eu ajudá-la. Um outro apareceu. Foi empurrada, quase carregada. Gemia: — "Ai, ai". Finalmente, entrou. Arquejou para mim e para o outro: — "Deus te abençoe, Deus te abençoe!". O trocador deu o sinal, o ônibus partiu. Começou, para ela, a longa viagem de uma esquina para outra esquina.

Pouco depois, estava eu no táxi. E pensava: — "Será que essa mãe não tem marido? Ou um outro filho? Ou vizinho?". Vamos crer que fosse viúva de filho único. Mas teria vizinhos. E, além disso, há a imprensa, o rádio, a televisão, as duas casas do Congresso, as Forças Armadas etc. etc. E toda essa maravilhosa estrutura não faz nada, não exala um pio? Um filho pode espancar a mãe e fica por isso mesmo? Admito que não se faça nada. Mas o que não entendo é que ninguém se espante. O brasileiro cada vez se espanta menos.

A própria vítima não me pareceu espantada. Vejam bem: — não a espantou a surra do filho, usara um tom impessoal e, repito, apenas informativo. Já falei das orelhas? Acho que não. Uma delas estava roxa, um roxo de orquídea e de gangrena. Agora me lembro: — falei, sim, da orelha.

Paciência. Lembro-me de que, ao contar a surra, inflexionava como se tivesse pena, não ódio (ódio nenhum), pena do filho. Era uma espécie de ternura apiedada. Se a outra condenasse o rapaz, ela o teria defendido, talvez. Talvez, não. Estou certo
de que o teria defendido. E, se a apertassem muito, acabaria dando razão à surra. E iria para o espelho acusar a própria imagem: — "Bem feito, bem feito!".

Eis o que eu queria dizer: — essa mãe, capaz de dar razão à surra, existe e aos milhares, existe aos milhões, em todas as terras e em todos os idiomas. É o próprio mundo — não, não —, é a própria família que atira pela janela todos os seus valores.

Há poucos dias, um pai amargurado escreveu-me: — "Meu filho sabe mais do que eu! Minha filha sabe mais do que a mãe!". Porque fez dezoito, ou vinte, ou 23 anos, o sujeito passa a ter a "verdade da idade", a "razão da idade", o "direito da idade", o "poder da idade", a "virtude da idade".

E todos assumem a mesma atitude da abdicação: — o jornalista, o político, o psicólogo, o sociólogo, o sacerdote, os artistas. O pintor Raul Brandão berrava numa galeria de pintura: — "O jovem tem todos os defeitos dos mais velhos e mais um: — a imaturidade!".

Outro dia, tivemos a jovem revolução francesa. Os estudantes da França explodiram. A princípio, pensou-se que eram as vítimas da fome, furiosas contra a fome. Mas logo se percebeu que era a antifome. Sim, a antifome que devastava a França. E o mundo viu os filhos da alta burguesia virando carros, arrancando paralelepípedos. Ninguém entendia nada.

Certo parisiense, perfeito idiota da objetividade, escreveu: — "A desgraça da França são os franceses". Outro propôs uma Resistência contra os franceses. Um terceiro queria uma nova invasão da Normandia que salvasse a França da brutal ocupação francesa.

E eram os jovens, os jovens, os jovens. Como eram os jovens, todo mundo lhes deu razão. Cabe a pergunta: — e que fizeram eles, além de arrancar paralelepípedos e de quebrar vidraças? Foram pichar as obras-primas do teatro Odeon. Passaram a gilete ou a brocha nas telas famosíssimas. Por que esse ódio, esse estupro plástico? Porque os estudantes eram contra a "arte oficial". Mas fecharam a Bienal, por se tratar de arte moderna, capitalista etc. etc. O festival de Cannes foi também fechado, a tapa. Alguém que acordasse, de repente, havia de imaginar que era uma nova ocupação nazista.

Os nazistas nunca se lembraram de humilhar, degradar os belos quadros, as obras-primas de todos os tempos. E o curioso é que jamais ocorreu aos estudantes franceses que eram eles a alta burguesia, eles o capitalismo, eles as classes dominantes.

Volto à mãe que apanhou do filho e deu razão à surra.

Foi um pouco o papel da França ao ser agredida pela própria juventude. Lá ninguém insinuou um protesto. Igualmente suicida é a posição da família diante dos seus filhos.

Dizia-me, ontem, um padre de passeata: — "A família tem seus dias contados". Viu a minha perplexidade e perguntou: — "Ou você não percebe que a família é uma instituição falida?".

Bem. Não direi falida. Suicida, talvez.
[5/8/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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