quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O furioso Nelsinho Motta

Depois do último Carnaval, passei uma semana escrevendo sobre o mesmo assunto. Meus amigos me chamam de "Flor de Obsessão".

Ainda ontem, recebo uma carta de Roma. E lá vinha escrito, no envelope, "Nelson Rodrigues" e, por baixo do nome: — "Flor de Obsessão". (Há, em tal metáfora, como que um odor de folclore havaiano. Mas isso é outra conversa). Meus amigos não exageram. Eu sou assim, e digo mais: — convivo muito bem com as minhas idéias fixas.

E a minha fixação, nos quatro dias de Carnaval, foi a nudez unânime. Imaginem uma cidade que se despia, e com a agravante: — não se despia para o namorado, noivo, marido ou lá o que fosse. Não. Um, apenas um, seria muito pouco para o seu impudor. (Hoje, a própria palavra "pudor" é tão antiga e irreal como, como... Vejamos uma palavra bem fora de moda. Já sei: — "supimpa". Aí está: — supimpa).

Mas as mulheres se despiam para milhões de telespectadores. Milhões.

Não saí de casa. Fundei a minha solidão diante do vídeo. E, de repente, aparece uma conhecida minha, aliás uma menina linda, linda. Um mês antes perdera o marido, um jovem aviador, moreno como um galã do neo-realismo italiano. O jato batera numa montanha e não restara do ser amado, para a viúva, um relógio, uma aliança, uma obturação. E, um mês depois, ela pôs um sarongue em cima da eterna saudade e levou a viuvez para sambar.

Por uma fúnebre coincidência, as câmeras não tiraram o olho da viúva. Ela apareceu duzentas vezes em cada dia. O rosto era lindo. Todavia, ninguém estava lá para promover rostos. E a televisão só mostrava o umbigo, vejam vocês, o umbigo da menina. Minto. Mostrava também uma pequena cicatriz de apendicite. E o umbigo e a cicatriz, ampliados, tinham uma dimensão miguelangelesca.

Depois do Carnaval, andei tendo sonhos hediondos. E, no pesadelo, era atropelado por milhões de umbigos, por milhões de cicatrizes. Eis o que eu queria dizer: — na série de artigos em torno da festa de nus disse eu o que me parece ser uma verdade eterna: — nada mais feio do que a nudez sem amor. O ideal seria que só o bem-amado pudesse ver um decote. Dirá alguém que o decote é tão pouco. Sei que é tão pouco. Mas só o bem-amado devia olhar o decote.

Escrevi mais: — como é triste e mesmo vil a nudez que ninguém pediu, que ninguém quis ver e que nenhum desejo explica. A Marilyn Monroe também se despiu para uma folhinha. Mas teve um preço, um cachê. Era um impudor mercenário. Mas parece mais vil a nudez de graça, a nudez sem gratificação. Foi mais ou menos isso que escrevi em três ou quatro artigos.

E, um dia, recebo a carta de uma leitora indignada. Começou por me chamar de "velho". Até aí nada demais, porque sou realmente uma múmia. Mas ela continua e logo percebo que não se trata de uma velhice de idade, mas de espírito. E dizia mais que só um velho podia-se interessar pela nudez feminina. Os jovens tinham mais em que pensar etc. etc. Achei a carta da leitora uma delícia rara.

Dois ou três dias depois, conversei com um clínico famoso. E ele estava apavorado. Disse-me que nota nas novas gerações um ressentimento contra o sexo, contra o amor e contra a mulher. Isso da parte dos homens. E as meninas têm a mesma aridez. Os jovens de ambos os sexos sentem o tédio antes do amor e esquecem antes da posse.

Vejam bem. Se a leitora e o médico têm razão, os únicos homens válidos são os velhinhos nostálgicos e espectrais da porta da Colombo. E os moços plásticos, elásticos, ornamentais da praia? Bem. Sempre me pareceu que, aos vinte anos, o sujeito não sabe nem como se diz "bom dia" a uma mulher. Simplesmente não sabe como tratar uma mulher. Mas no passado a vitalidade o salvava. Vitalidade talvez cega, talvez obtusa, talvez brutal. Mas, repito, essa vitalidade era alguma coisa. E, de repente, vêm a leitora e o médico e dizem: — só os velhos ainda se interessam por amor, só os velhos ainda se interessam por sexo.

A princípio, fiquei em pânico. Mais tarde, pensando melhor, cuidei que tinha sido um exagero da leitora e do clínico. Não era possível. E, no entanto, vejam vocês: — acabei de ler um prodigioso artigo de Nelsinho Motta. Sim, o escritor, o jornalista, o ensaísta, o sociólogo, o letrista, o homem de televisão. Não sei se vocês o conhecem. Se não conhecem, tentarei descrevê-lo, por dentro e por fora.

Fisicamente, é pálido e diáfano como Werther ou, se preferirem, como o Alfredo da Traviata. Não sei se o tal Alfredo tinha costeletas. Mas quero acreditar que, de costeletas, o Nelsinho seria o próprio.

Ainda no terreno da ópera, lembra também o pajem do Rigoletto. E, por dentro, é de uma fragilidade ideal. Sua estrutura psíquica não resistiria a um sopro de apagar velinha de aniversário. (Por um lapso indesculpável, eu ia-me esquecendo de um dado fundamental: — nunca foi à praia.

No momento em que cada brasileiro é moreno como um havaiano de Hollywood, a palidez do Nelsinho Motta faria o maior sucesso nos velhos folhetins.

E foi essa flor de biscuit que, subitamente, escreveu um artigo feroz. Imaginem um javali com todas as cerdas eriçadas. Assim é Nelsinho Motta na primeira e admirável fúria de sua vida. O pretexto foi a música popular.

O autor fala como jovem e em nome dos jovens. Os idiotas da objetividade diriam que a ira do Nelsinho (só comparável à de Zola) tem motivos menos nobres e estritamente competitivos. Mas vejamos.

Ele arrasa os compositores que pretendem "uma música pura, romântica, que eleve a alma"; e que querem impressionar as meninas (o que é o caso de todos os brasileiros vivos e mortos). Diz o caro Nelsinho que essa espécie está-se extinguindo. Com um pouco mais, estaremos todos desinteressados de meninas. Essa castração do homem brasileiro chega a ser comovente. Em tom épico, fala da juventude que lutou nas ruas de Paris. Mas que luta? Contra os paralelepípedos, contra os carros virados? Não houve uma cabeça quebrada, uma fratura, nada. E continua o Nelsinho.

Fala nas passeatas brasileiras. Realmente, as passeatas! Alguém viu um negro um operário, um roto, um esfarrapado? Mas o autor afirma que as passeatas vão salvar o Brasil. E, súbito, ele cita o Chico Buarque de Holanda e o inclui na lista dos jovens que não gostam de amor. Mas é falso. O Chico é o anti-Roda viva. A Banda é o anti-Roda viva. Não há autor mais lírico, e que toque mais às meninas, e mais terno, e mais "sentimentalóide", e mais "desvinculado do mundo em que vivemos". Aí está: — o vil e canceroso mundo em que vivemos não admite, segundo o Nelsinho, nem amor, nem sexo, nem mulher e, muito menos, homem.

E mesmo o Nelsinho, que é o próprio Werther. Como ele se explica, como ele se justifica? Mas, de qualquer maneira, acredita em passeatas.

Na próxima, ponha um negro na marcha; um operário; um esfarrapado; um torcedor do Flamengo; uma crioula dando o peito seco ao filhinho recém-nascido. Não me comove a passeata das classes dominantes.

É preciso tirar a fome brasileira de sua hedionda solidão.

[1/8/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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