terça-feira, 1 de novembro de 2011

Nesta data querida

O calor, a vontade de tomar um banho e uma terrível dor de cabeça levaram-no a abandonar o escritório, num desejo incontido de descansar o corpo e distrair o mau humor.

Fechado no elevador, teve o seu primeiro sintoma de alegria ao pensar que estava prestes a chegar, pensamento que se esvaiu ao ouvir a algazarra que vinha lá de dentro do apartamento. Correu, meteu a chave na porta, abriu-a e ficou sem entender.

Eram bem umas trinta crianças, entre brinquedos, bolas de encher, docinhos, apitos, babás e mamães.

Saiu da surpresa para o encabulamento.

Esquecera completamente o aniversário da filha. Que vergonha! E todos ali olhando para ele — o dono da casa.

O jeito foi disfarçar, dizer "boas tardes" gerais, cumprimentar as mães mais próximas e alisar a cabeça das crianças que lhe atravan¬cavam o caminho.

Passado o primeiro momento, voltou o barulho infernal. Novamente apitos, choros, gritos, risos, reco-recos, etc. A mulher, sem que ninguém percebesse, passou-lhe um embrulho, dizendo:

— Toma, é o seu presente para a SUA filha.

Esse "sua" aí foi assim mesmo, com maiúsculas na voz. Fingiu não notar, abraçou-se com a filha e entregou-lhe o pacote, sem disfarçar a própria curiosidade em saber o que era.

Era um urso de pelúcia, com uma caixinha de música dentro.

— Quanto custou? — perguntou à mulher, num sussurro.

— Dois contos! — respondeu ela, aumentando o preço e diminuindo a voz.

Só então lembrou-se de que tudo aquilo estava correndo por sua conta. Os doces, as bolas de encher (quantas!) penduradas na parede, os salgadinhos, Coca-Colas, guaranás, pacotes de balas, cometas e até sessão de cinema, programada para o seu escritório, onde já havia um camarada a ligar fios e tomadas.

E dizer-se que tinha vindo para casa mais cedo devido a uma terrível dor de cabeça! Agora nem uma tonelada de aspirinas adiantaria tal era o barulho que a criançada fazia.

Assim mesmo tomou um soporífico na cozinha, ocasião em que a empregada avisou-o que a água acabara e que toda a louça da festa ficaria para ser lavada no dia seguinte.

Não se sentiu com disposição pra "fazer sala". Chamou a mulher e explicou o seu estado. Ela limitou-se a dizer:

— Vá para o quarto então. Você não ajudou nada mesmo.

Era evidente a zanga, mas isso ficaria para ser ajeitado depois. Afinal não tinha culpa de sua falta de memória.

E foi entrar no quarto e levar aquele susto. Um garoto de cabelo arrepiado, envolto na sua capa de borracha, abrira todas as gavetas da cômoda, subia por elas e, lá de cima, se atirava na cama.

— Que é isso menino?

— Sou o Homem-Pássaro — respondeu o garoto, e voltou a se atirar sobre as pobres molas do colchão.

Expulsou o intruso com capa e tudo. Depois ficou ali no quarto, esperando que acabasse a farra. O silêncio bom que reinou em volta, ao fechar a porta, foi recebido com um suspiro de alívio. Deitou-se na cama imaginando o que veria no dia seguinte: seus livros atirados no chão, doces esborrachados no tapete, Coca-Cola no sofá da sala, copos por toda parte, inclusive dentro da vitrola, e, sobretudo, uma imensa conta para pagar.

Lá pelas 9 da noite, a mulher entrou no quarto e não respeitou o seu sono. Foi logo dizendo:

— Bonito, hein? Além de esquecer a data ainda me deixa sozinha com as visitas. Nem ao menos conversou um pouco com o Senador.

— Senador? — perguntou ele, tonto de sono.

— É sim. O Senador Castro foi tão gentil trazendo o filho e você nem foi cumprimentá-lo.

— Como era o filho dele? — quis saber, fingindo interesse.

— Um bonitinho, de cabelo arrepiado, que estava brincando com a sua capa.

— Ah, sei. O Homem-Pássaro.

E, após estas palavras, adormeceu profundamente, não sem antes ouvir um último comentário da mulher. Disse ela:

— Ainda por cima você está bêbado.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

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